AUP 272:
Organização urbana e planejamento

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Criado:
2000.11.30
Atualizado:
2000.11.30
CD, JS

AUP 272: Organização urbana e planejamento    FAUUSP/ Departamento de projeto 
Ano letivo 2000                                                                 Grupo de Disciplinas de Planejamento 
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Trabalho de aluno
 
 

O papel da Legislação Urbana
 

Cláudia Querci Filardo

Monografia
AUP 272 – Organização urbana e planejamento
 
 

 “Toda lei, não ratificada pelo Povo em pessoa, é nula; não é lei.”
“Quereis, portanto, dar consistência ao Estado? Aproximai os graus extremos, tanto quanto possível; não suporteis nem opulentos nem indigentes. Essas duas condições, naturalmente inseparáveis, são igualmente funestas ao bem comum... Que nenhum cidadão seja assaz opulento para poder comprar outro e que nenhum seja bastante pobre para se achar constrangido a vender-se.”
Rousseau


Introdução

A forma como uma cidade se organiza espacialmente está intimamente ligada a um conjunto de regras e posturas que compõem a legislação urbanística. No caso de São Paulo e muitas outras cidades brasileiras sua espacialidade é determinada por essa legislação de duas formas: pelo respeito a ela e por sua contravenção. Em outras palavras, a legalidade e a ilegalidade são as duas faces complementares da mesma realidade, a metrópole de São Paulo.

Freqüentemente ouvimos diversas pessoas reclamarem. Suas principais observações se referem ao caos urbano, à violência, ao trânsito e a como o poder público é ineficaz no que se refere ao controle da cidade em geral.

Por trás desse tipo de observação está um imaginário de cidade ideal onde tudo possa ser absolutamente planejado, controlado, limpo, em que os problemas possam ser rapidamente resolvidos através de instrumentos eficientes, em que as pessoas possam viver em paz e com tranqüilidade, ou seja, o típico ideal da classe média em que não existem contradições. Sua pretensão é de que o Estado se organize para que a norma seja cumprida e que os que a contrariam sejam punidos (Maricato, 1996). É a construção do discurso de uma sociedade que se diz democrática mas nega a realidade da luta de classe e da exploração capitalista, camuflando-a de modo que as coisas acabam sendo entendidas como processos naturais, ou seja, é um discurso com lacunas pois não explica tudo. É a forma de se ocultar o fracasso das classes dominantes e do Estado em resolver os problemas urbanos. No contexto atual ligado à globalização e ao liberalismo que informa a condução da política governamental, o discurso sobre a cidade é feito com base nas idéias de produtividade, eficiência e competitividade intensificando ainda mais a angústia diante do caos urbano.

Para que o discurso hegemônico seja rompido é necessário perguntar a razão pela qual o estado de ilegalidade urbana supera a legalidade. Cabe verificar a relação do conjunto de forças e interesses que compõem a região metropolitana de São Paulo, sua real espacialidade e a legislação que a definiria por um conjunto de regras, como forma de sair do senso comum e aprofundar o entendimento sobre o espaço e sua produção.

Por trás da lei

Ao constatarmos o tamanho da ilegalidade urbana, algumas perguntas iniciais nos vêem à cabeça. Será que o problema está na lei de um modo geral, na incompetência quanto à fiscalização ou as coisas são da forma que são para atender ao interesse de alguém? Qual a real função da legislação urbana em São Paulo?

A busca por essas respostas revela que o problema apresenta diversas facetas não podendo ser tratado como uma realidade homogênea, tanto no que se refere aos grupos de interesse quanto nas diversas esferas de atuação do instrumento legal. Ainda assim, percebemos uma certa tendência na produção da cidade.

Marilena Chauí, ao definir alguns traços referentes ao autoritarismo social no Brasil, coloca a lei nos seguintes termos: “(...) estruturada (a sociedade brasileira) a partir das relações familiares de mando e obediência, nela se impõe a recusa tácita e às vezes explícita, de operar com o mero princípio liberal da igualdade jurídica, e a dificuldade para lutar contra formas de opressão social e econômica. Para os grandes, a lei é privilégio, para as camadas populares ela é repressão. A lei não pode e não deve figurar o pólo público do poder e da regulamentação dos conflitos. Ela não pode no Brasil definir direitos e deveres dos cidadãos. Por quê? Porque a tarefa da lei no Brasil é a da conservação dos privilégios e do exercício da repressão. Não é que as leis do Brasil são falhas. Elas são perfeitas. Elas cumprem perfeitamente a função econômica, social e política que elas devem ter. (...)”   Sendo assim, a construção de um discurso por parte da classe dominante, que mascare as verdadeiras relações de poder, faz-se necessária para que essa situação se perpetue.

Flávio Villaça (1999b) coloca que a segregação espacial dentro da cidade é necessária para que exista uma “dominação pelo espaço urbano e através dessa dominação haja apropriação diferenciada do produto do trabalho”, entendendo que o espaço urbano é o produto do trabalho de todos os que habitam e trabalham na cidade. Há, segundo o autor, um controle da classe dominante sobre a produção e o consumo do espaço na cidade através do mercado imobiliário que produz os espaços dessa classe; através do próprio Estado que controla a localização da infra-estrutura urbana, a localização de seus aparelhos e a legislação de uso e ocupação do solo. Há ainda  toda uma ideologia a respeito do espaço urbano que mascara a dominação, perpetuando-a.

A cidade real, segundo Raquel Rolnik, é resultante da relação entre o modelo contido na lei e o funcionamento do mercado imobiliário, o que define territórios dentro e fora da legalidade. De um lado tem-se áreas onde a cidadania fica comprometida devido ao não reconhecimento oficial de sua responsabilidade com relação àqueles que lá habitam. Há uma tolerância em relação a esse território. Em contraposição há espaços de alta renda, altamente regulados onde as áreas mais lucrativas são ou as que podem suportar uma maior  intensidade de ocupação, ou os espaços de caráter exclusivo e diferenciado, áreas de alta qualidade de vida onde moram as classes de alto poder aquisitivo. Protege-se a área de interesse financeiro contra usos degradantes, do ponto de vista da classe dominante, e tolera-se o uso indiscriminado de áreas de pouco valor situadas de maneira a não haver “contaminação”.

Para se ter idéia de como dispositivos legais determinam a segregação, só pelo fato de em uma determinada área os recuos obrigatórios serem grandes, já se pressupõe que os terrenos devem ter dimensões generosas e, portanto, não são acessíveis a determinado nível de renda. O zoneamento, dispositivo que diz o que se pode construir ou que tipo de atividade pode-se ter em determinada área da cidade,  por si só já faz a separação das pessoas que podem ou não estar em certa região. Desde o século passado já existiam leis que proibiam cortiços e vilas operárias em certas áreas, mas não em toda a cidade.

Analisando-se, ao longo da história da cidade de São Paulo, como os dispositivos legais foram se modificando, percebe-se que a lei funciona como instrumento para construir a cidade segundo os interesses das elites. Enquanto na República Velha as eleições eram feitas com cartas marcadas e a questão social era vista como “caso de polícia”, a cidade era construída para as elites de forma assumida. Era a época dos planos de embelezamento inspirados nos modelos europeus e que queriam distância das áreas onde morava a população pobre, tais como os cortiços.  Os serviços de infra-estrutura eram concessões privadas que visavam o lucro e, portanto, só investiam em áreas onde os moradores pudessem pagar.

A partir da década de 30, com a participação política dessa população antes ignorada, a ilegalidade passa a ser tolerada de forma seletiva e essas áreas passaram a ser “contempladas” com o direito de ter infra-estrutura. Cria-se uma relação em que o Estado doa ao povo e este deve, então, retribuir (Rolnik, 1999). É a origem do populismo e do clientelismo em que a situação de ilegalidade e de carência de melhorias é moeda de troca para a obtenção de votos: “(...) a partir dos anos 30 estabelece-se um pacto territorial, no qual a  ilegalidade é tolerada para poder ser posteriormente negociada, pelo Estado. Uma das condições para que esse pacto possa ocorrer é o Estado assumir o papel de provedor e o território ilegal, de devedor de um favor do Estado, já que, do ponto estritamente legal, ali caberiam punições e não responsabilidades e direitos. Isso ocorreu quando, no contexto da redemocratização, melhorias urbanas na periferia ilegal se transformaram em votos e lideranças de bairro em cabos eleitorais.”

Assim, até hoje existe o interesse político na manutenção da ilegalidade ou da extra-legalidade. Essa manutenção implica na utilização do instrumento ideológico. Raquel Rolnik atenta para a idéia de provisoriedade do território ilegal como muito presente em nossa cultura urbanística. É a idéia de que se o plano fosse devidamente aplicado, através de instrumentos eficientes de mapeamento e fiscalização, a lei seria respeitada e tudo seria diferente. Tem a ver com o que Villaça analisa quando estuda o sentido dos Planos Diretores ao longo da história. Para o autor, para que se diga que existe planejamento e preocupação com as questões sociais urbanas, estimula-se a crença em Planos Diretores que seriam eficientes pois inserem-se na lógica da ciência e da técnica, base de toda a nossa sociedade. Na prática, são aprovados no final das gestões como um conjunto de leis que, de fato, muito pouco mudam em relação às questões mais graves. As elites continuam fazendo o que querem mas não de maneira assumida, é o Plano Diretor como discurso ideológico.

Isso pode em um primeiro momento nos parecer contraditório, mas a contradição desaparece quando concluímos que a cidade é fonte de lucro e privilégios, que é construída para atender os interesses das elites, e que estas não têm o mínimo interesse em que as coisas mudem ou que a lei seja de fato para todos. Lucra-se com a ilegalidade.

O judiciário, poder ao qual podem recorrer os proprietários das terras urbanas, age em relação às ocupações ilegais de forma flexível, ora aplicando a lei ora não. Geralmente o critério utilizado tem relação com o valor de mercado da terra. Se o imóvel não possui alto valor de mercado a invasão é feita sem interferência do Estado, se o seu valor é alto, recorre-se à lei (Maricato 1996).  Pensando nesta flexibilidade de intenções, surge a questão da fiscalização que é a aplicação prática da lei.

Em uma entrevista com um fiscal da Prefeitura percebe-se que existe fiscalização eficiente quando se trata do setor de tributos. Ele nos conta que a falha do sistema está na fragmentação da fiscalização em diversos departamentos, diz ele: “Então, a própria organização da fiscalização em São Paulo  já é feita para que  a fiscalização não tenha força. Quem manda é o político da hora porque eu chego no lugar, vejo o passeio quebrado e não posso fazer nada, entendeu?  São Paulo é uma cidade em que manda quem pode e a lei existe para os pobres, mais ou menos é isso São Paulo. Quem tem dinheiro não obedece a coisa nenhuma faz o que quer, enfim. Um fiscal forte é um obstáculo a esse tipo de postura. (...) A má política se aproveita da fraqueza da fiscalização. Enquanto houver a fragmentação da fiscalização como tem São Paulo ou fiscais sem a estabilidade, você tem a fiscalização fraca, sujeita à política.”. Além disso, a complexidade da lei que é rigorosa e detalhista coloca o imóvel na ilegalidade por qualquer coisinha. Diz ele ainda: “A lei de postura, de uso e ocupação do solo é uma lei complicada. O povo que vem do nordeste não quer saber, comprou um tijolo baiano, cimento, vê uma nesga de terra na periferia, sobe parede. Aqueles corredorzinhos pequenininhos, aqueles esgotos caindo. Eles não tem opção, antes eles viviam pior.”. Maricato coloca-nos que o rigor prescrito pela lei dá espaço para a corrupção e o clientelismo político. Um exemplo deste último é a anistia periódica para os imóveis ilegais. Afinal, qual o sentido de um conjunto de leis urbanas que criminaliza uma certa prática e de tempos em tempos perdoa todas as irregularidades? É uma lei que reconhece em si mesma sua ineficiência, ou é perfeita para os fins políticos a que se destina?

Conclusões

A legislação urbana constitui-se de uma série de regras que norteiam a ocupação e determinam a organização espacial da região metropolitana de São Paulo. Contata-se na prática que essa espacialidade que está sendo construída compõe-se de um lado por uma série de privilégios para uma determinada classe social de maior poder aquisitivo e, de outro, por uma grande situação de carência para as classes populares habitantes da periferia.

A complexidade da lei deixa claro que só quem possui um determinado poder aquisitivo pode possuir uma área bem localizada na cidade, em termos de infra-estrutura, e suficientemente grande para que todas as regras e posturas sejam respeitadas. A ilegalidade coloca a maior parte da população como não possuidora de direitos, mas devedora de favores concedidos por políticos, o que é fundamental para que essa população não tenha consciência sobre sua cidadania.

Já que a moradia dentro da cidade está tão vinculada ao poder aquisitivo, a situação de precariedade interessa à manutenção dos baixos custos da mão de obra, bem como a ilegalidade gera a idéia de que o Estado e a sociedade não têm responsabilidade sobre essa situação. Afinal, quem mandou essas pessoas migrarem e invadirem terras alheias?

Assim, pode-se dizer que a legislação urbana e sua aplicação pelo Estado visam garantir os lucros dos setores que utilizam a cidade como um grande negócio, garantir a alta qualidade de vida das classes dominantes, protegendo suas áreas da “contaminação” da população de baixa renda ou, como no caso dos bairros Z1, até mesmo da sombra que a verticalização pode provocar sobre suas ricas mansões e, principalmente, manter a dominação pela precariedade de vida dos trabalhadores e pela segregação espacial.
A legislação é um instrumento muito forte em nossa sociedade pois constitui a base do Estado de Direito, é a formalização do pacto social que organiza uma sociedade, além de, em termos urbanos, ser  fundamental para o Planejamento. Este, na forma como vem sendo feito, é um claro instrumento de dominação, de modo que deve ser urgentemente revisto para que seja utilizado na construção de uma sociedade que se identifique, de forma a respeitar suas próprias leis e regras por reconhecê-las legítimas.
 

Bibliografia

ROLNIK, Raquel. São Paulo: Crise e Mudança. Prefeitura de São Paulo. Ed. Brasiliense, 1990.
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_  “Para além da lei: legislação urbanística e cidadania (São Paulo 1886-1936)”. in: SOUZA, Maria Adélia A. e outros. Metrópole e Globalização, conhecendo a cidade de São Paulo. São Paulo, Cedesp, 1999.
FERREIRA, João S. W. São Paulo metrópole subdesenvolvida: para que(m) serve a globalização? FAUUSP, 2000.
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CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São Paulo, Brasiliense, 1980.
ROUSSEAU, J. J. “Do Contrato social” in: CHEVALLIER, J. J. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. 3ª Ed. Rio de Janeiro, 1976.