O
papel da Legislação Urbana
Cláudia Querci Filardo
Monografia
AUP 272 – Organização urbana
e planejamento
“Toda lei,
não ratificada pelo Povo em pessoa, é nula; não é
lei.”
“Quereis, portanto, dar
consistência ao Estado? Aproximai os graus extremos, tanto quanto
possível; não suporteis nem opulentos nem indigentes. Essas
duas condições, naturalmente inseparáveis, são
igualmente funestas ao bem comum... Que nenhum cidadão seja assaz
opulento para poder comprar outro e que nenhum seja bastante pobre para
se achar constrangido a vender-se.”
Rousseau
Introdução
A forma como uma cidade se organiza espacialmente
está intimamente ligada a um conjunto de regras e posturas que compõem
a legislação urbanística. No caso de São Paulo
e muitas outras cidades brasileiras sua espacialidade é determinada
por essa legislação de duas formas: pelo respeito a ela e
por sua contravenção. Em outras palavras, a legalidade e
a ilegalidade são as duas faces complementares da mesma realidade,
a metrópole de São Paulo.
Freqüentemente ouvimos diversas pessoas
reclamarem. Suas principais observações se referem ao caos
urbano, à violência, ao trânsito e a como o poder público
é ineficaz no que se refere ao controle da cidade em geral.
Por trás desse tipo de observação
está um imaginário de cidade ideal onde tudo possa ser absolutamente
planejado, controlado, limpo, em que os problemas possam ser rapidamente
resolvidos através de instrumentos eficientes, em que as pessoas
possam viver em paz e com tranqüilidade, ou seja, o típico
ideal da classe média em que não existem contradições.
Sua pretensão é de que o Estado se organize para que a norma
seja cumprida e que os que a contrariam sejam punidos (Maricato, 1996).
É a construção do discurso de uma sociedade que se
diz democrática mas nega a realidade da luta de classe e da exploração
capitalista, camuflando-a de modo que as coisas acabam sendo entendidas
como processos naturais, ou seja, é um discurso com lacunas pois
não explica tudo. É a forma de se ocultar o fracasso das
classes dominantes e do Estado em resolver os problemas urbanos. No contexto
atual ligado à globalização e ao liberalismo que informa
a condução da política governamental, o discurso sobre
a cidade é feito com base nas idéias de produtividade, eficiência
e competitividade intensificando ainda mais a angústia diante do
caos urbano.
Para que o discurso hegemônico seja
rompido é necessário perguntar a razão pela qual o
estado de ilegalidade urbana supera a legalidade. Cabe verificar a relação
do conjunto de forças e interesses que compõem a região
metropolitana de São Paulo, sua real espacialidade e a legislação
que a definiria por um conjunto de regras, como forma de sair do senso
comum e aprofundar o entendimento sobre o espaço e sua produção.
Por trás da lei
Ao constatarmos o tamanho da ilegalidade
urbana, algumas perguntas iniciais nos vêem à cabeça.
Será que o problema está na lei de um modo geral, na incompetência
quanto à fiscalização ou as coisas são da forma
que são para atender ao interesse de alguém? Qual a real
função da legislação urbana em São Paulo?
A busca por essas respostas revela que
o problema apresenta diversas facetas não podendo ser tratado como
uma realidade homogênea, tanto no que se refere aos grupos de interesse
quanto nas diversas esferas de atuação do instrumento legal.
Ainda assim, percebemos uma certa tendência na produção
da cidade.
Marilena Chauí, ao definir alguns
traços referentes ao autoritarismo social no Brasil, coloca a lei
nos seguintes termos: “(...) estruturada (a sociedade brasileira) a partir
das relações familiares de mando e obediência, nela
se impõe a recusa tácita e às vezes explícita,
de operar com o mero princípio liberal da igualdade jurídica,
e a dificuldade para lutar contra formas de opressão social e econômica.
Para os grandes, a lei é privilégio, para as camadas populares
ela é repressão. A lei não pode e não deve
figurar o pólo público do poder e da regulamentação
dos conflitos. Ela não pode no Brasil definir direitos e deveres
dos cidadãos. Por quê? Porque a tarefa da lei no Brasil é
a da conservação dos privilégios e do exercício
da repressão. Não é que as leis do Brasil são
falhas. Elas são perfeitas. Elas cumprem perfeitamente a função
econômica, social e política que elas devem ter. (...)”
Sendo assim, a construção de um discurso por parte da classe
dominante, que mascare as verdadeiras relações de poder,
faz-se necessária para que essa situação se perpetue.
Flávio Villaça (1999b) coloca
que a segregação espacial dentro da cidade é necessária
para que exista uma “dominação pelo espaço urbano
e através dessa dominação haja apropriação
diferenciada do produto do trabalho”, entendendo que o espaço urbano
é o produto do trabalho de todos os que habitam e trabalham na cidade.
Há, segundo o autor, um controle da classe dominante sobre a produção
e o consumo do espaço na cidade através do mercado imobiliário
que produz os espaços dessa classe; através do próprio
Estado que controla a localização da infra-estrutura urbana,
a localização de seus aparelhos e a legislação
de uso e ocupação do solo. Há ainda toda uma
ideologia a respeito do espaço urbano que mascara a dominação,
perpetuando-a.
A cidade real, segundo Raquel Rolnik, é
resultante da relação entre o modelo contido na lei e o funcionamento
do mercado imobiliário, o que define territórios dentro e
fora da legalidade. De um lado tem-se áreas onde a cidadania fica
comprometida devido ao não reconhecimento oficial de sua responsabilidade
com relação àqueles que lá habitam. Há
uma tolerância em relação a esse território.
Em contraposição há espaços de alta renda,
altamente regulados onde as áreas mais lucrativas são ou
as que podem suportar uma maior intensidade de ocupação,
ou os espaços de caráter exclusivo e diferenciado, áreas
de alta qualidade de vida onde moram as classes de alto poder aquisitivo.
Protege-se a área de interesse financeiro contra usos degradantes,
do ponto de vista da classe dominante, e tolera-se o uso indiscriminado
de áreas de pouco valor situadas de maneira a não haver “contaminação”.
Para se ter idéia de como dispositivos
legais determinam a segregação, só pelo fato de em
uma determinada área os recuos obrigatórios serem grandes,
já se pressupõe que os terrenos devem ter dimensões
generosas e, portanto, não são acessíveis a determinado
nível de renda. O zoneamento, dispositivo que diz o que se pode
construir ou que tipo de atividade pode-se ter em determinada área
da cidade, por si só já faz a separação
das pessoas que podem ou não estar em certa região. Desde
o século passado já existiam leis que proibiam cortiços
e vilas operárias em certas áreas, mas não em toda
a cidade.
Analisando-se, ao longo da história
da cidade de São Paulo, como os dispositivos legais foram se modificando,
percebe-se que a lei funciona como instrumento para construir a cidade
segundo os interesses das elites. Enquanto na República Velha as
eleições eram feitas com cartas marcadas e a questão
social era vista como “caso de polícia”, a cidade era construída
para as elites de forma assumida. Era a época dos planos de embelezamento
inspirados nos modelos europeus e que queriam distância das áreas
onde morava a população pobre, tais como os cortiços.
Os serviços de infra-estrutura eram concessões privadas que
visavam o lucro e, portanto, só investiam em áreas onde os
moradores pudessem pagar.
A partir da década de 30, com a
participação política dessa população
antes ignorada, a ilegalidade passa a ser tolerada de forma seletiva e
essas áreas passaram a ser “contempladas” com o direito de ter infra-estrutura.
Cria-se uma relação em que o Estado doa ao povo e este deve,
então, retribuir (Rolnik, 1999). É a origem do populismo
e do clientelismo em que a situação de ilegalidade e de carência
de melhorias é moeda de troca para a obtenção de votos:
“(...) a partir dos anos 30 estabelece-se um pacto territorial, no qual
a ilegalidade é tolerada para poder ser posteriormente negociada,
pelo Estado. Uma das condições para que esse pacto possa
ocorrer é o Estado assumir o papel de provedor e o território
ilegal, de devedor de um favor do Estado, já que, do ponto estritamente
legal, ali caberiam punições e não responsabilidades
e direitos. Isso ocorreu quando, no contexto da redemocratização,
melhorias urbanas na periferia ilegal se transformaram em votos e lideranças
de bairro em cabos eleitorais.”
Assim, até hoje existe o interesse
político na manutenção da ilegalidade ou da extra-legalidade.
Essa manutenção implica na utilização do instrumento
ideológico. Raquel Rolnik atenta para a idéia de provisoriedade
do território ilegal como muito presente em nossa cultura urbanística.
É a idéia de que se o plano fosse devidamente aplicado, através
de instrumentos eficientes de mapeamento e fiscalização,
a lei seria respeitada e tudo seria diferente. Tem a ver com o que Villaça
analisa quando estuda o sentido dos Planos Diretores ao longo da história.
Para o autor, para que se diga que existe planejamento e preocupação
com as questões sociais urbanas, estimula-se a crença em
Planos Diretores que seriam eficientes pois inserem-se na lógica
da ciência e da técnica, base de toda a nossa sociedade. Na
prática, são aprovados no final das gestões como um
conjunto de leis que, de fato, muito pouco mudam em relação
às questões mais graves. As elites continuam fazendo o que
querem mas não de maneira assumida, é o Plano Diretor como
discurso ideológico.
Isso pode em um primeiro momento nos parecer
contraditório, mas a contradição desaparece quando
concluímos que a cidade é fonte de lucro e privilégios,
que é construída para atender os interesses das elites, e
que estas não têm o mínimo interesse em que as coisas
mudem ou que a lei seja de fato para todos. Lucra-se com a ilegalidade.
O judiciário, poder ao qual podem
recorrer os proprietários das terras urbanas, age em relação
às ocupações ilegais de forma flexível, ora
aplicando a lei ora não. Geralmente o critério utilizado
tem relação com o valor de mercado da terra. Se o imóvel
não possui alto valor de mercado a invasão é feita
sem interferência do Estado, se o seu valor é alto, recorre-se
à lei (Maricato 1996). Pensando nesta flexibilidade de intenções,
surge a questão da fiscalização que é a aplicação
prática da lei.
Em uma entrevista com um fiscal da Prefeitura
percebe-se que existe fiscalização eficiente quando se trata
do setor de tributos. Ele nos conta que a falha do sistema está
na fragmentação da fiscalização em diversos
departamentos, diz ele: “Então, a própria organização
da fiscalização em São Paulo já é
feita para que a fiscalização não tenha força.
Quem manda é o político da hora porque eu chego no lugar,
vejo o passeio quebrado e não posso fazer nada, entendeu?
São Paulo é uma cidade em que manda quem pode e a lei existe
para os pobres, mais ou menos é isso São Paulo. Quem tem
dinheiro não obedece a coisa nenhuma faz o que quer, enfim. Um fiscal
forte é um obstáculo a esse tipo de postura. (...) A má
política se aproveita da fraqueza da fiscalização.
Enquanto houver a fragmentação da fiscalização
como tem São Paulo ou fiscais sem a estabilidade, você tem
a fiscalização fraca, sujeita à política.”.
Além disso, a complexidade da lei que é rigorosa e detalhista
coloca o imóvel na ilegalidade por qualquer coisinha. Diz ele ainda:
“A lei de postura, de uso e ocupação do solo é uma
lei complicada. O povo que vem do nordeste não quer saber, comprou
um tijolo baiano, cimento, vê uma nesga de terra na periferia, sobe
parede. Aqueles corredorzinhos pequenininhos, aqueles esgotos caindo. Eles
não tem opção, antes eles viviam pior.”. Maricato
coloca-nos que o rigor prescrito pela lei dá espaço para
a corrupção e o clientelismo político. Um exemplo
deste último é a anistia periódica para os imóveis
ilegais. Afinal, qual o sentido de um conjunto de leis urbanas que criminaliza
uma certa prática e de tempos em tempos perdoa todas as irregularidades?
É uma lei que reconhece em si mesma sua ineficiência, ou é
perfeita para os fins políticos a que se destina?
Conclusões
A legislação urbana constitui-se
de uma série de regras que norteiam a ocupação e determinam
a organização espacial da região metropolitana de
São Paulo. Contata-se na prática que essa espacialidade que
está sendo construída compõe-se de um lado por uma
série de privilégios para uma determinada classe social de
maior poder aquisitivo e, de outro, por uma grande situação
de carência para as classes populares habitantes da periferia.
A complexidade da lei deixa claro que só
quem possui um determinado poder aquisitivo pode possuir uma área
bem localizada na cidade, em termos de infra-estrutura, e suficientemente
grande para que todas as regras e posturas sejam respeitadas. A ilegalidade
coloca a maior parte da população como não possuidora
de direitos, mas devedora de favores concedidos por políticos, o
que é fundamental para que essa população não
tenha consciência sobre sua cidadania.
Já que a moradia dentro da cidade
está tão vinculada ao poder aquisitivo, a situação
de precariedade interessa à manutenção dos baixos
custos da mão de obra, bem como a ilegalidade gera a idéia
de que o Estado e a sociedade não têm responsabilidade sobre
essa situação. Afinal, quem mandou essas pessoas migrarem
e invadirem terras alheias?
Assim, pode-se dizer que a legislação
urbana e sua aplicação pelo Estado visam garantir os lucros
dos setores que utilizam a cidade como um grande negócio, garantir
a alta qualidade de vida das classes dominantes, protegendo suas áreas
da “contaminação” da população de baixa renda
ou, como no caso dos bairros Z1, até mesmo da sombra que a verticalização
pode provocar sobre suas ricas mansões e, principalmente, manter
a dominação pela precariedade de vida dos trabalhadores e
pela segregação espacial.
A legislação é um
instrumento muito forte em nossa sociedade pois constitui a base do Estado
de Direito, é a formalização do pacto social que organiza
uma sociedade, além de, em termos urbanos, ser fundamental
para o Planejamento. Este, na forma como vem sendo feito, é um claro
instrumento de dominação, de modo que deve ser urgentemente
revisto para que seja utilizado na construção de uma sociedade
que se identifique, de forma a respeitar suas próprias leis e regras
por reconhecê-las legítimas.
Bibliografia
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