outubro de 2000
Habitação
no centro de São Paulo x Segregação socio -econômico
-espacial
Denise Invamoto
Monografia - AUP 272
apresentação
O objetivo desta monografia é discutir
as questões julgadas pertinentes para subsidiar o desenvolvimento
de uma proposta, na segunda etapa do trabalho, no campo das políticas
urbanas voltadas para a região metropolitana de São Paulo.
Será enfocada a problemática do chamado centro principal,
e em especial, as possibilidades de se desenvolver uma política
de habitação de interesse social.
De partida já encontramos
uma delicadeza na definição da dita problemática do
centro principal e sua relação com a RMSP. Nos deparamos
com o discurso dominante da “deterioração” (apodrecimento),
da “decadência” (perda de “aura”), da necessária “revitalização”
(pois o centro está “morto”), etc. Encontramos também dificuldade
em separar no território as especificidades das localizações
nele inseridas (centro, centro expandido, periferia...) e suas relações
com problemas estruturais impossíveis de serem isolados para
análise (dos problemas habitacionais, de circulação
aos problemas sociais, políticos e econômicos).
É necessário discutir
cuidadosamente o centro pois esses dois pontos assinalados podem tanto
enriquecer o debate quanto nos fazer perder a linha crítica e conjuntural
do problema – o primeiro pela deturpada “imersão ideológica”
do problema e o segundo pela facilidade de nos perdermos no estabelecimento
de relações das variáveis, esferas, atores, etc.
Foi sentida a necessidade de se buscar
uma reflexão crítica acerca do novo interesse que o Estado
e a sociedade civil organizada vêm apresentando em intervir e transformar
o espaço da região central de São Paulo, e é
isso que motivou o desenvolvimento do presente trabalho.
introdução
Para entendermos a problemática
do centro de São Paulo, devemos em primeiro lugar compreender o
que são as aglomerações urbanas. Fruto de uma relação
socialitária entre os homens, a aglomeração é
uma condição necessária à cooperação.
“ A determinação última que leva os homens a se organizar
em aglomerações é a mesma que os leva a desenvolver
qualquer força produtiva: é o seu impulso inato no sentido
de poupar o desgaste físico e mental envolvido no trabalho”
(Villaça). As aglomerações existiriam então
devido ao desgaste envolvido nos deslocamentos espaciais necessários
para que o homem trabalhe, produza e reproduza sua vida material.
Como não há como a
aglomeração concentrar-se em um ponto, deve-se ocorrer afastamentos.
O centro da aglomeração se formaria exatamente neste ponto
onde todos gostariam de se localizar. Toda e qualquer aglomeração
sócio espacial humana desenvolve apenas um centro principal : “Não
existe realidade urbana sem um centro: comercial, simbólico, de
informações, de decisão, etc.”(Lefebvre citado por
Villaça).
Desta forma, a apropriação
do espaço urbano pelo homem se dá através das diferentes
localizações que o mesmo produz. A localização
se define pelos contatos diretos e indiretos que ela propicia, pela capacidade
que determinado ponto do território tem em relacionar-se com os
demais pontos da cidade.
Os contatos diretos seriam aqueles
que não envolvem o deslocamento do ser humano, nos quais as localizações
se caracterizam pela disponibilidade de infra-estrutura (exceto a de transporte).
São produzidas pelo trabalho humano e podem por este ser reproduzido.
Os contatos indiretos seriam aqueles
que envolvem ou exigem o deslocamento, sendo as localizações
produzidas pelo trabalho humano mas impossível de serem reproduzidas.
“Não é possível reproduzir a esquina da Av.
Rio Branco com a Av. Presidente Vargas enquanto localização”(Villaça).
Em toda aglomeração,
há uma lógica que preside a produção das diferentes
localizações. Em nosso caso, trata-se da lógica do
capitalismo contemporâneo, materializado pelo mercado. Em uma sociedade
organizada em classes sociais, surge então uma disputa pelas melhores
localizações – Devido em primeira instância à
necessidade de se Ter o controle das condições de deslocamentos.
A localização é
um valor de uso, que se manifesta no valor da terra urbana. Diferentes
localizações criam diferentes valores e nesse sentido, as
classes sociais disputam a apropriação diferenciada desse
valor. Este valor se difere da mais-valia capturada no local de trabalho,
mas no entanto a propriedade desse valor captura parte do trabalho social
despendido na produção da cidade toda.
Quanto mais centrais as localizações,
maior é o seu valor de uso. Melhores são suas condições
de se relacionar com o restante da cidade. Por isso, é o centro
o local em que há a maior quantidade de trabalho socialmente necessário
despendido na produção da aglomeração e pela
aglomeração. A partir desse valor material constrói-se
o valor simbólico. A grande importância comunitária
e social do centro o transforma em objeto de grande valorização
simbólica. Portanto ao valor de troca de um “espaço” deve-se
incluir não só a acessibilidade, as distancias relativas
aos outros componentes da cidade, o emprego do tempo, etc., mas também
os signos que o distingue dos demais locais – signos construídos
publicitariamente ou não, vendendo prestígio, felicidade,
estilo de vida, etc. Isso se aplica não só ao centro, mas
também ao “não-centro”, onde se vende muitas vezes signos
do sucesso para compensar as desvantagens do lugar.
Devido a diferenciação do
valor de uso X localização, é que a segregação
sócio-espacial se torna um processo necessário para a apropriação
diferenciada desse valor.
Entende-se por segregação
“a alta concentração de camadas sociais em determinada parcela
do espaço urbano” (Villaça). Através da segregação,
a elite domina o espaço urbano não só produzindo suas
residências, seus locais de trabalho e de lazer nas áreas
que consideram mais agradáveis, mas também atuando sobre
toda a estrutura urbana segundo seus interesses. O objeto desta monografia
é um claro exemplo desse tipo de atuação, como veremos
a diante.
Basicamente, são através
de três esferas que a classe dominante controla a produção
e o consumo do espaço urbano: Econômica, política e
ideológica. Na esfera econômica, destaca-se o controle do
mercado imobiliário; na política, o controle do Estado, que
se manifesta através do controle da localização da
infra-estrutura urbana, da localização dos aparelhos do Estado
e da legislação urbanística; na esfera ideológica,
desenvolvendo uma ideologia, como todas as ideologias, visando auxiliar
a dominação e torná-la aceitável pelos dominados.
Pensamos ser necessário uma ação
do Estado na “geração direta ou indireta de bens e serviços
que se tornem elementos indispensáveis para a reprodução
de força de trabalho e para a expansão do capital” (Kowarick)
de forma “politizada”, ou seja, de forma a internalizar as lutas/ os conflitos
de classes. O Estado deve ser o núcleo dos conflitos, deve ser o
alvo das pressões e reivindicações. Não deve
ser unilateral, voltado para as elites.
Neste sentido, pensamos ser o desenvolvimento
de uma política urbana para o centro de São Paulo que inclua
uma política de habitação de interesse social necessariamente
uma ação que combata a prática da segregação
e uma forma de “politizar” o Estado – principalmente se houver mecanismos
de participação direta no processo.
O presente trabalho objetiva compreender
a formação da metrópole paulista, do seu centro principal,
do processo de produção do espaço e a atual
configuração relacionada com a lógica exposta anteriormente.
Pretende diagnosticar os problemas do centro da cidade, para que na próxima
etapa do trabalho se possa desenvolver propostas relacionadas a ele.
panorama
São Paulo apresenta uma estrutura
urbana que assemelha muito com inúmeras cidades do sul do Brasil
atravessadas por ferrovias no final do século XIX, permitindo-se
enquadrá-la em um modelo de urbanização. Trata-se
de uma metrópole interiorana, expansível a 360?, ou seja,
a todas as direções, ocupando um fundo de vale dividido por
um rio, o Tamanduateí, e pela linha do trem.
Esse conjunto forma uma barreira que divide
o centro do não centro, locais com custos e tempos de deslocamentos
diferentes. A cidade expandiu, em um primeiro momento, na direção
do Anhangabaú (oeste), rumo ao espigão (da atual Av. Paulista),
pois seu vale representava um obstáculo muito mais fácil
de se superar do que a transposição do rio Tamanduateí,
na direção leste. Na direção do Anhangabaú
não havia ferrovia, e o rio tinha uma pequena várzea inundável,
muito menor do que do Tamanduateí. A cidade também
poderia se expandir na direção da cumeeira divisória
de águas entre os dois rios (onde já estava a cidade), na
direção do Bixiga e da Liberdade, que não exigia a
transposição de nenhum obstáculo. Porém, tratava-se
de um sítio estreito.
A cidade se expandiu em todas as direções,
porém, seletivamente. Até atingir a marca de 2 milhões
de habitantes, era possível dividir a cidade em apenas duas partes,
a leste e a oeste. Na parte oeste, transpassando o Anhangabaú, o
sitio apresentava uma topografia levemente ondulada, crescente em direção
ao espigão, conferindo certa beleza ambiental. O centro foi se desenvolvendo
nessa direção, aonde se constatava a presença de todas
as classes sociais até o terceiro quartel do século XIX.
“As elites paulistanas estavam espalhadas ao longo do centro, como numa
típica cidade pequena. Estavam em cinco locais (não se poderia
sequer chamá-los de bairros): Na Glória, no Carmo e na Liberdade(...),
na Luz e em Santa Efigênia” (Villaça).
Porém, com o crescimento do cultivo
do café (já com mão de obra assalariada), a posição
estratégica da cidade entre os pólos produtores e o Porto
exportador interligados pela ferrovia e a sua condição de
centro administrativo, comercial e cultural da região, fizeram
com que a cidade logo sofresse um rápido processo de urbanização.
Instalava-se na cidade a oligarquia cafeeira, ex-escravos e imigrantes,
instituições bancárias, imobiliárias, comércio,
indústrias (surgidas através da transferência de capital
da cafeicultura), serviços, instituições culturais,
etc. Para se Ter idéia da escala do crescimento da cidade, de cerca
de 31 mil habitantes em 1872, a população passou a cerca
de 65 mil em 1890, chegando a 240 mil em 1900 e 357 mil em 1910 .
Se na porção oeste da cidade
estavam presentes todas as classes sociais, na porção leste,
de difícil acesso através de pontes, com um sítio
plano e monótono aos gostos da época, habitava somente as
camadas populares. Formavam-se aos poucos, novos bairros operários
ao redor das fábricas. É interessante como o crescimento
das camadas populares urbanas coincide com o desigual crescimento urbano;
como o crescimento da massa trabalhadora coincide com o crescimento na
parte “pior” da cidade. Em 1890, 72% dos habitantes de São Paulo
moravam a oeste do Tamanduateí e apenas 28% moravam a leste. Em
1920, 57% e em 1950, 40,6% da população da cidade encontrava-se
a oeste, demonstrando como a maior participação das camadas
populares na região leste fez com que ela crescesse mais rapidamente
que a oeste. Deve-se ressalvar, porém, que a partir de 1950, quando
a cidade atingia seus 2 milhões de habitantes, já não
havia como dividir a cidade em apenas leste e oeste: o ABC contava com
8% da população da metrópole e a zona norte, com 11%
.
No braço de acesso à zona
leste, formava-se o primeiro subcentro de comércio e serviços
daquela região, de caráter mais popular, no Brás (como
é até hoje). Conforme a cidade ia crescendo e se consolidavam
as relações internas, não mais do capitalismo mercantil,
mas despontando para o industrial, ficava mais evidente os traços
de segregação sócioeconômico-espacial.
Do lado do centro, as elites começavam
a se separar das camadas populares, nos loteamentos dos Campos Elíseos
, na Santa Cecília (que deu origem a Higienópolis), na Vila
Buarque até chegar na Avenida Paulista. A classe média fez
surgir no início do século, bairros como a Vila Mariana,
Vila Clementino, o Ipiranga, Perdizes, Cerqueira César, Vila Romana,
etc. – A maior parte dessa classe também se encontrava a oeste da
cidade. A classe baixa, também muito presente na parcela oeste da
cidade, estava em todos os lugares do centro. Villaça observa que
segregação entendida por “alta concentração
de camadas sociais em determinada parcela do espaço urbano” (ou
que em nenhuma outra parte essa concentração é maior)
não significa que nessa parte haja predominância e muito menos
exclusividade dessas camadas. Pois numericamente, a camada popular era
maior na região do centro do que a elite, mas a elite, como classe
se concentrava mais lá do que em qualquer outro lugar – Até
poderia haver famílias isoladas da elite morando na zona leste,
mas não enquanto grupo social.
Tanto nas áreas mais centrais como
nos novos bairros, os trabalhadores da indústria e do comércio
moravam em cômodos alugados em porões e em construções
precárias em fundo de lotes – em cortiços. Extremamente precários,
com falta de esgotos, drenagem, de coleta de lixo, com problemas de umidade,
de falta de ventilação e iluminação, superlotação,
logo viraram foco de doenças, contaminações, etc.
O cientificismo do início do século e o desenvolvimento da
Saúde Pública somado à sintonia da nova burguesia
urbana ao gosto e aos valores europeus, desencadearam um conjunto de intervenções
urbanísticas de natureza sanitarista, higienista e de embelezamento.
Era preciso adequar o espaço central da metrópole para atender
as novas funções, sanar os problemas de saúde, e “modernizar”
seu espaço, apagar seu passado colonial e provinciano.
Com a presença das oligarquias no
comando da cidade, logo se fizeram obras na cidade para deixá-la
com aparência rica, semelhante às cidades européias,
principalmente francesas. Implantou-se iluminação pública
elétrica, bonde elétrico, grande arborização
das alargadas avenidas, construiu-se o Teatro Municipal, máxima
dos ideais burgueses/franceses de beleza. Vale observar que o teatro foi
construído na direção da concentração
dos bairros de alta renda. O caminho torna-se claro ao observarmos a progressão/sucessão
de obras: O viaduto do Chá, para transpor o Anhangabaú, o
Teatro, a Mappin Stores em frente a ele, a Biblioteca Municipal (a Av.
São Luís abrigava grandes mansões).
As demolições necessárias
para o alargamento das avenidas (como do plano concebido por Bouvard),
muitas vezes coincidiam, provavelmente não por acaso, com os locais
de maior concentração de cortiços, mendigos, prostitutas,
marginais. Havia uma idéia arraigada ( até hoje) de que os
pobres “sujavam” o centro. A limpeza sanitarista passava também
por um processo de expulsão da população de baixa
renda, seja através das demolições (que chegavam a
derrubar quarteirões inteiros), dos despejos, seja através
de instrumentos legais, como a criação da lei de inquilinato
(mais para a frente), seja através da valorização
imobiliária decorrente de todos os investimentos feitos .
Não se tirou toda a população
das camadas populares do centro, mas configurou-se uma bipartição
do centro entre a elite e o proletário, respectivamente em “centro
novo” e “centro velho”, sendo o primeiro alvo de grandes investimentos
e o segundo abandonado pela elite, pelo Estado, pelo mercado – Fato bem
aproveitado pela população de baixa renda que permaneceu
lá.
Com todos os investimentos aplicados na
região, “as terras centrais passam a ser utilizadas no sentido de
possibilitar o máximo de rendimento” (Silva), pressionando a legislação
urbanística a permitir uma maior verticalização e
adensamento no centro. O ponto culminante dessa prática, foi a construção
do edifício Martinelli, que utiliza um coeficiente de aproveitamento
de 22 vezes. O adensamento descrito também é coincidente
com o processo de metropolização de São Paulo. A cidade
se transformava no polo econômico nacional, criando e concentrando
indústria, comércio, instituições culturais,
serviços os mais diversificados possíveis.
Constituindo um grande local de destino
e de passagem, já em 1920, terminadas as obras do Anhangabaú
e iniciando-se as obras do Parque Dom Pedro II, as principais ruas do centro
encontravam-se congestionadas pelos 2 mil automóveis existentes;
Praças e largos já se transformavam em estacionamento. Em
1929, Prestes Maia propunha o seu “Plano de avenidas”, com o objetivo de
ampliar o centro e modernizar o sistema viário central. Claramente
uma escolha que beneficiou as elites e trouxe mais problemas ao centro.
Trouxe grandes benefícios de valorização imobiliária
ao longo de toda extensão das novas avenidas, mas o principal benefício
foi o da mobilidade propiciada pelas vias. Privilegiando o automóvel
particular em detrimento dos meios de transporte coletivos, é evidente
o seu caráter. Toda a cultura automobilística permitiu que
a elite pudesse sair da “mistura social” do centro e se isolar de vez em
bairros destinados à sua classe, com lotes grandes, com padrão
de casa isolada e jardim. Permitiu que o comércio e os serviços
mais “refinados” acompanhassem a sua saída.
Ao mesmo tempo em que as obras viárias
“integravam” o tecido urbano, abriam do centro para as bordas, trazia mais
carros para a região e rasgava totalmente o tecido existente. O
Plano de Avenidas por exemplo, como a maioria das obras de cunho viário,
visava resolver o problema de circulação do ponto de vista
metropolitano, sem conseguir dar conta de resolver os conflitos que o projeto
criava com a escala local.
Quanto à população
da classe baixa, mesmo diante das pressões para sua saída
do centro, não tinham até então condições
de morar longe do local de trabalho. Somente a partir da década
de 40, com a criação da CMTC, as camadas populares ocupam
em massa as periferias longínquas da cidade, através de loteamentos
populares ou irregulares e autoconstrução. Da década
de 40 até 60 essa foi a forma predominante de abrigar a massa de
migrantes vinda de todo o país. A incerteza do aluguel e do despejo,
em meio a um período de bastante inflação deram lugar
à garantia de possuir uma casa própria, um bem de troca disponível.
Com a entrada dos militares no poder, observou-se
a adoção de um modelo de aceleração do crescimento
econômico cuja lógica apoiava-se no acirramento da pobreza.
Adotou-se uma política compensatória para a classe média,
enquanto a classe baixa assistia a uma forte redução dos
salários reais– reduziu-se então drasticamente a possibilidade
dessa camada comprar seus lotes. A partir da década de 70, dessa
forma, caracteriza-se pela explosão das favelas, ocupando
áreas verdes, de lazer e equipamentos coletivos e pelos cômodos
precários, alugados, construídos no fundo de lote nas periferias.
Mas a pressão dos aluguéis continuava empurrando as famílias
para loteamentos e favelas mais distantes e precários.
Apesar da maioria da população
de baixa renda Ter buscado a casa própria periférica como
solução de moradia, o centro continuava a abrigar um grande
número de famílias, que encontravam vantagens nessa solução,
e de certa forma se beneficiaram com o abandono propiciado pelas elites,
pelo desinteresse mercadológico e pelas intervenções
catastróficas do Estado (todas ligadas ao problema de circulação
– Viaduto Costa e Silva, Radial Leste, Praça Roosvelt, nova Praça
da Sé).
A entrada da industria automobilística
no Brasil, a difusão do seu uso (nas classes mais abastadas), e
o intenso investimento no sistema viário pelo poder público,
trouxe, a partir da década de 50 algumas outras transformações.
Os bancos saíram do centro e foram para a Paulista, as classes dominantes
cada vez mais abandonavam o centro como local de moradia, o comércio
de luxo as acompanhavam, etc., como já vinha acontecendo anteriormente.
Porém, a difusão do automóvel nesse período
pôde fazer com que as classes dominantes pudessem trocar o centro
como local de emprego por novas “centralidades” não contínuas
a ele, como por exemplo a Faria Lima. Eram localizações que,
ao contrário do que pressupõe um centro mesmo, eram fragmentadas,
dispersas, com usos não muito diversificados. Haviam, pelo contrário,
corredores especializados em uma ou outra atividade. Porém, com
o desenvolvimento dessas áreas, costumou-se denominá-las
como integrantes do “centro expandido”. Enquanto o centro antigo era compacto
e relativamente fácil de se delimitar, a delimitação
do “centro expandido” é controvertida e complexa, englobando até
a Berrini, a região da Faria Lima, a da Marginal do rio Pinheiros.
Villaça mostra como é necessária a construção
ideológica da noção de que o centro está se
deslocando (quando na verdade é a elite que se desloca) – Falaremos
dessa questão adiante.
Na década de 80, o centro já
estava quase totalmente tomado pelas camadas populares. “Aquilo a que se
chama ideologicamente de ‘decadência’ do centro é tão
somente sua tomada pelas camadas populares, justamente sua tomada pela
maioria da população. Nessas condições, sendo
o centro realmente da maioria, ele é centro da cidade”(Villaça).
o centro atualmente
Dentro dessa idéia de que o centro
está deteriorado, de que sofre um processo de decadência,
que está morto, orquestra-se atualmente algumas iniciativas para
que a elite volte a investir e utilizar o centro. De um lado, temos as
iniciativas do governo do estado de São Paulo, emergidas numa concepção
de intervenção gentrificadora (cujo objetivo é fazer
com que ele volte a Ter a dignidade outrora conquistada), pontual, cenográfica
e voltada para as elites. Investindo em recuperação de patrimônio
histórico para uso cultural (de elite), cria-se pontos irradiadores
de valorização imobiliária e de usufruto por parte
dessa elite – que chega de carro no estacionamento gratuito da Sala São
Paulo, por exemplo, e vai embora desapercebida. De outro lado, temos a
associação Viva o centro, criada no início da década
de 90 por empresários com empresas sediadas ali e investidores imobiliários,
basicamente. Também dentro dessa visão, a prefeitura de São
Paulo criou o PROCENTRO e instituiu a operação urbana centro,
objetivando atrair novos investimentos, driblando a legislação.
Porém, os dados desmistificam a
idéia de que o centro está vazio, ocupado apenas por marginais.
O centro tradicional continua sendo o foco irradiador da organização
espacial urbana. Continua sendo a maior concentração de lojas,
escritórios e serviços, além de empregos, da metrópole.
É o local que atende mais população do que qualquer
outro centro da metrópole. O centro obteve em 1995, 24,23%
do total de destinos de viagem, São Bernardo do Campo, 11,06%, Paulista
(considerada polo distinto do centro na pesquisa), 9,74%, Santo André,
7,68%, São Caetano do Sul, 6,53%, Pinheiros, 6,41%, Tatuapé,
5,4% e Lapa, 5,34%.
O centro tradicional, que inclui as zonas
da Sé, Tabatinguera, Glicério, Liberdade, Bixiga e Consolação,
em
1987 tinha 517.100 empregos contra 207.003 da região da Paulista
(Paulista e Alamedas) e 364.140 do centro expandido (Região da Paulista,
Jardins I, Jardins II, Itaim I, Vila Olímpia e Iguatemi). Considerando
o grau de concentração que deve caracterizar, temos uma densidade
de 772 empregos/ha no centro tradicional, 478 empregos/ha na região
da Paulista, e 258 empregos/há no centro expandido, que inclui a
região da Paulista e exclui o centro tradicional. Quando
se fala em “decadência” do centro, o que tem acontecido é
que certas atividades (bancos ou cinemas, por exemplo) crescem mais fora
daquela localidade. Novos tipos de atividades (como no ramo das altas tecnologias)
também se desenvolvem em outros lugares, ou seja, há uma
relatividade de valores, pois em números absolutos, não há
queda de atividade. Outra ressalva a fazer é que claramente conforme
a cidade se expande é normal o declínio relativo da participação
do centro.
Essa era a primeira constatação
a se fazer: o centro tradicional de São Paulo ainda é o centro
principal, ao contrário do que diz o discurso dominante que
aparece nas mídias, nos trabalhos acadêmicos, no lugar comum.
Outro ponto distorcido a respeito do centro é sobre a caracterização
do problema dos cortiços e dos encortiçados. Há uma
idéia de fundo de que cortiço é moradia fácil
para pessoas que querem coisas fáceis; que é o espaço
da marginalidade; que é mais barato que morar na favela, por isso
as pessoas abrem mão da casa própria a troco de um local
insalubre para morar, e assim por diante.
Oficialmente, são computados aproximadamente
600 mil moradores de cortiço (que utilizam instalações
sanitárias coletivas), mas segundo lideranças de movimentos
de encortiçados, esse numero já está na casa dos milhões.
Pesquisa desenvolvida pela FIPE em 1997 tendo como amostra cortiços
localizados nas regiões das administrações regionais
da Sé, Móoca e Vila Prudente, mostrou que uma parcela significativa
da população encortiçada participava de forma estruturada
do mercado de trabalho, tinha estabilidade na modalidade e na localização
da moradia e necessitava morar nas áreas centrais, pagando para
isso aluguéis altíssimos, comprometendo grande parte de sua
renda.
O estudo mostrava que 53% dos moradores
eram trabalhadores assalariados com registro em carteira, e a renda familiar
era relativamente alta. Renda média e mediana situava-se entre 5
e 6 salários mínimos, sendo que 38% recebia mais de 6,8 SM.
Apresentavam certa estabilidade na condição e localização
da moradia – 29% das famílias habitava há mais de 3 anos
no mesmo cortiço, sendo expressivo também, o número
de famílias que sempre morou em cortiços e no mesmo bairro.
Os dados mostram como a localização
(proximidade do local de emprego, serviços públicos) é
determinante na escolha dessa forma precária de habitar – sendo
que as famílias têm renda e estabilidade para morar melhor.
48% das pessoas iam a pé para o trabalho e 21,2% utilizava o metrô.
74,6% levava menos de meia hora para fazer o trajeto casa/trabalho.
O estudo também revelou que o grau
de comprometimento da renda daquelas famílias com o pagamento do
aluguel era muito alto. Metade dos moradores gastava mais de 28% da renda
familiar com o aluguel e um quarto daquela população gastava
mais de 43% - Mais do que os órgãos de financiamento estabelecem
como o máximo de comprometimento da renda com habitação
– 25%.
Dados da tese de mestrado de Luís
Kohara são também bastante reveladores. Obtidos em
abril de 1998 a partir de 60 cortiços, 120 famílias, no Bom
Retiro, revelaram informações sobre o custo das moradias
e condições de conforto. Segundo essa pesquisa, a área
média dos domicílios (desconsiderando banheiros e áreas
comuns) era de 11,9 m2 . Entre as famílias, 78,9%residiam em espaços
inferiores a 15 m2; 77,8% habitavam em apenas um cômodo; o número
de bacias sanitárias era de 1 para 25 pessoas.
As informações mais intrigantes
são as relacionadas com os gastos com a moradia. 42,9% das famílias
pagavam aluguéis entre R$ 196 e R$260; o valor médio dos
aluguéis era de R$191, e o valor médio das despesas com água
e energia era de R$ 39,70. Nessa pesquisa o dado de comprometimento da
renda com o aluguel é um pouco mais detalhado que o da outra pesquisa:
31,1% das famílias comprometem mais que 30%; 45,6% comprometem entre
31% e 60%; e 23,3% comprometem mais de 60%. Enquanto isso, no mercado formal,
o valor médio do aluguel de uma quitinete era de R$300, e o de um
apartamento com um dormitório, R$ 450.
Os dados sobre emprego confirma os
dados da pesquisa da FIPE: nessa amostragem, a porcentagem de empregados
com registro em carteira são de apenas 28,9% (maiores de 15 anos).
Sem registro, são 22,9%; trabalhando por conta própria, 18,2%,
sendo um terço como ambulantes; desempregados, 17,4% - ou seja,
70% das pessoas trabalhando. O problema é que 48,7% das famílias
pesquisadas não possuía nenhum membro com registro em carteira,
não podendo comprovar a renda junto às operações
de crédito.
O metro quadrado da unidade de cortiço
é relativamente o mais caro da cidade (levando-se em conta a localização
e as qualidades oferecidas). Comparando o valor do aluguel nos cortiços
com os preços praticados no mercado, concluiu-se que o valor do
m2 do cortiço é 78% superior ao de casas térreas,
41% superior ao de apartamentos e 30,4% superior ao aluguel de sobrelojas
e salas comerciais – a alta rentabilidade desse tipo de imóvel,
no entanto, é distribuída entre proprietários e intermediários.
Os dados mostram como é necessário
e viável desenvolver uma política de habitação
na área central de São Paulo, do ponto de vista dos ‘sem
teto’ – As soluções tradicionais dos conjuntos periféricos
não respondem a suas necessidades e eles têm plenas condições
de pagar pela moradia no centro. Por outro lado, há uma série
de entraves fundiários, legais e ligados às formas atuais
de financiamento que dificultam o desenvolvimento daquela política.
No entanto, há uma série de outros pontos favoráveis
à sua adoção, não só do ponto de vista
dos ‘sem teto’, mas da cidade como um todo.
Em síntese, “ No modelo convencional,
gera-se uma cidade segmentada e segregada, criando-se bairros onde inexistem
empregos, serviço e comércio e onde a implantação
da infra-estrutura é difícil e cara. Gera-se uma demanda
exagerada de transporte coletivo em uma única direção:
de manhã no sentido das áreas polarizadoras de emprego e
no final da tarde em direção aos bairros dormitórios,
como se verifica na recente pesquisa origem-destino do Metrô. A conseqüência
é a super lotação dos ônibus metrô num
sentido e subutilização no outro, com enorme deseconomia.
O mesmo ocorre com todas as redes de infra-estrutura, que ficam ociosas
durante o dia e supercarregadas durante a noite” (Bonduki).
No centro, temos exatamente o oposto dessa
situação: sua completa rede de infra-estrutura fica ociosa
ou subutilizada no período da noite, além dos finais de semana.
Apesar da grande concentração de empregos e atividades,
no setor de habitação, o centro vem perdendo gente ao longo
das décadas, devido aos problemas expostos anteriormente.
Até a eficiência econômica
da cidade fica comprometida: Os altos gastos com transporte têm que
ser incorporados no pagamento dos trabalhadores, além do elevado
tempo gasto com deslocamento reduzir a sua produtividade. Esse tempo gasto
também encerra a possibilidade deles se requalificarem (termo valorizado
nos dias atuais) e praticamente elimina o tempo livre, necessário
para o cultivo do lazer e da cultura.
Um programa habitacional massivo, que
atendesse não só os encortiçados, mas também
os trabalhadores que foram jogados para a periferia, poderia, além
de viabilizar moradia em condições dignas em boas localizações,
traria efeitos na demanda de transporte e reduziria os deslocamentos pela
cidade; evitaria a criação de novas demandas de infra-estruturas
e equipamentos sociais, além do inchamento da mancha urbana .
Outro aspecto positivo seria a real “revitalização”
que traria. Áreas abandonadas, como dos galpões industriais
da Móoca, por exemplo, voltariam a Ter vida. A apropriação
do espaço do centro pela população assistida pela
política seria interessante não só do ponto de vista
da Conservação dos espaços públicos, mas poderia
ser interessante do ponto de vista da preservação do patrimônio
histórico arquitetônico. Ao invés de edificações
históricas corresponderem a monumentos isolados, descolados no tempo,
poderiam se transformar em museus vivos, reinseridos na história
da cidade com seu uso habitacional. Seriam então objetos de
resignificação, que marcaria-os como uma produção
de nosso tempo contemporâneo.
Os entraves de que falei, para o desenvolvimento
de uma política habitacional, seriam de ordem fundiária,
legal e de financiamento.
Apesar de haverem terrenos e prédios
vazios, passíveis ou não de demolição, a sua
aquisição tende a ser difícil. É preciso lidar
com a valorização decorrente das intervenções
públicas e dos próprios conjuntos; É necessário
um banco de dados que forneça dados sobre os proprietários,
sobre os encortiçados, entre outras coisas; É necessário
definir como comprar/estocar terrenos ou desapropriar áreas construídas.
Um dos problemas do ponto de vista fundiário recai sobre os problemas
legais – pois os instrumentos urbanísticos criados para auxiliar
a aquisição dos terrenos dependeriam da criação
de novas leis ou de interpretação adequada das leis existentes.
Os entraves legais passam justamente pelo
problemas criados pelo zoneamento, uso e ocupação do solo
. Seria necessário uma revisão dos coeficientes de aproveitamento,
das taxas de ocupação, das ZEIS, dos instrumentos urbanísticos,
etc.
Os programas de financiamento existentes
atualmente, PAR da Caixa Econômica Federal e PAC da CDHU, segundo
Helena Menna Barreto Silva, seriam insuficientes para responder ao conjunto
de problemas que uma solução massiva poderiam apresentar.
Enumera-se os problemas do valor dos financiamentos, subsídios e
modalidades de ocupação de moradias. Também existe
o problema da comprovação de renda das famílias que
precisariam ser atendidas, além dos programas atenderem somente
a partir de uma faixa de renda de 10 salários mínimos aproximadamente
– Além da média dos encortiçados.
conclusão
Pudemos perceber de um lado as vantagens
e a própria necessidade de se adotar uma política habitacional
para o centro de São Paulo, atrelada a uma política urbana
estruturada. Do outro lado Observamos algumas dificuldades para o seu desenvolvimento.
Porém, o que entrava realmente esse processo é a velha e
repetida história da falta de vontade política. É
a necessidade de consagrar o quadro de segregação e desigualdade
sócio econômica e espacial; de manter o quadro de dominação
política e exploração (não só através
do trabalho, da mais-valia – mas da própria distribuição
da riqueza e do trabalho social de forma desigual pela cidade).
Coloca-se muitos problemas no desenvolvimento
de tais políticas, como a burocracia, os problemas de gestão
e o problema de recursos. Porém, quando interessa à elite,
mesmo obras colossais são feitas - como o caso das reformas
urbanas do começo do século e outras mais. O próprio
centro de São Paulo foi objeto de muitas intervenções
custosas e complicadas– quando a elite lá estava.
Hoje em dia, o centro de decisões
se encontra dissociado do centro simbólico, comercial, etc. É
necessário traze-lo de volta ao centro principal, sob a ótica
de um Estado “politizado”, de uma sociedade participativa.
bibliografia
Bonduki, Nabil, “Do cortiço à
habitação digna: uma questão de vontade política”.
em: revista URBS, nº 11, jan/mar. de 1999
Kowarick, Lúcio, “Espoliação
urbana, lutas sociais e cidadania: fatias de nossa história recente”
em: Espaços e debates nº 40, 1997
Silva, Helena Menna Barreto, documento
preparado para o encontro “Habitação no centro de SP: como
viabilizar essa idéia? “
Villaça, Flávio, “Efeitos
do espaço sobre o social na metrópole brasileira” em: Metrópole
e Globalização, Unesp/Cedesp, 1999
___________, “capítulo 5 – A estrutura
urbana básica” e “cap. 10 – Os centros principais”
em: