AUP 272:
Organização urbana e planejamento

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Criado:
2000.11.30
Atualizado:
2000.11.30
CD, JS

AUP 272: Organização urbana e planejamento    FAUUSP/ Departamento de projeto 
Ano letivo 2000                                                                 Grupo de Disciplinas de Planejamento 
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Trabalho de aluno
 

outubro de 2000

Habitação no centro de São Paulo x Segregação socio -econômico -espacial

Denise Invamoto
Monografia - AUP 272
 
 

apresentação

O objetivo desta monografia é discutir as questões julgadas pertinentes para subsidiar o desenvolvimento de uma proposta, na segunda etapa do trabalho, no campo das políticas urbanas voltadas para a região metropolitana de São Paulo. Será enfocada a problemática do chamado centro principal, e em especial, as possibilidades de se desenvolver uma política de habitação de interesse social.

 De partida já encontramos uma delicadeza na definição da dita problemática do centro principal e sua relação com a RMSP.  Nos deparamos com o discurso dominante da “deterioração” (apodrecimento), da “decadência” (perda de “aura”), da necessária “revitalização” (pois o centro está “morto”), etc. Encontramos também dificuldade em separar no território as especificidades das localizações nele inseridas (centro, centro expandido, periferia...) e suas relações com problemas  estruturais impossíveis de serem isolados para análise (dos problemas habitacionais, de circulação aos problemas sociais, políticos e econômicos).

É  necessário discutir cuidadosamente o centro pois esses dois pontos assinalados podem tanto enriquecer o debate quanto nos fazer perder a linha crítica e conjuntural do problema – o primeiro pela deturpada “imersão ideológica” do problema e o segundo pela facilidade de nos perdermos no estabelecimento de relações das variáveis, esferas, atores, etc.

Foi sentida a necessidade de se buscar uma reflexão crítica acerca do novo interesse que o Estado e a sociedade civil organizada vêm apresentando em intervir e transformar o espaço da região central de São Paulo, e é isso que motivou o desenvolvimento do presente trabalho.
 

 introdução

Para entendermos a problemática do centro de São Paulo, devemos em primeiro lugar compreender o que são as aglomerações urbanas. Fruto de uma relação socialitária entre os homens, a aglomeração é uma condição necessária à cooperação. “ A determinação última que leva os homens a se organizar em aglomerações é a mesma que os leva a desenvolver qualquer força produtiva: é o seu impulso inato no sentido de poupar o desgaste  físico e mental envolvido no trabalho” (Villaça). As aglomerações existiriam então devido ao desgaste envolvido nos deslocamentos espaciais necessários para que o homem trabalhe, produza e reproduza sua vida material.

 Como não há como a aglomeração concentrar-se em um ponto, deve-se ocorrer afastamentos. O centro da aglomeração se formaria exatamente neste ponto onde todos gostariam de se localizar.  Toda  e qualquer aglomeração sócio espacial humana desenvolve apenas um centro principal : “Não existe realidade urbana sem um centro: comercial, simbólico, de informações, de decisão, etc.”(Lefebvre citado por Villaça).
 Desta forma, a apropriação do espaço urbano pelo homem se dá através das diferentes localizações que o mesmo produz. A localização se define pelos contatos diretos e indiretos que ela propicia, pela capacidade que determinado ponto do território tem em relacionar-se com os demais pontos da cidade.

 Os contatos diretos seriam aqueles  que não envolvem o deslocamento do ser humano, nos quais as localizações se caracterizam pela disponibilidade de infra-estrutura (exceto a de transporte). São produzidas pelo trabalho humano e podem por este ser reproduzido.

 Os contatos indiretos seriam aqueles que envolvem ou exigem o  deslocamento, sendo as localizações produzidas pelo trabalho humano mas impossível de serem reproduzidas. “Não é  possível reproduzir a esquina da Av. Rio Branco com a Av. Presidente Vargas enquanto localização”(Villaça).

 Em toda aglomeração, há uma lógica que preside a produção das diferentes localizações. Em nosso caso, trata-se da lógica do capitalismo contemporâneo, materializado pelo mercado. Em uma sociedade organizada em classes sociais, surge então uma disputa pelas melhores localizações – Devido em primeira instância à necessidade de se Ter o controle das condições de deslocamentos.

 A localização é um valor de uso, que se manifesta no valor da terra urbana. Diferentes localizações criam diferentes valores e nesse sentido, as classes sociais disputam a apropriação diferenciada desse valor. Este valor se difere da mais-valia capturada no local de trabalho, mas no entanto a propriedade desse valor captura parte do trabalho social despendido na produção da cidade toda.

 Quanto mais centrais as localizações, maior é o seu valor de uso. Melhores são suas condições de se relacionar com o restante da cidade. Por isso, é o centro o local em que há a maior quantidade de trabalho socialmente necessário despendido na produção da aglomeração e pela aglomeração. A partir desse valor material constrói-se o valor simbólico. A grande importância comunitária e social do centro o transforma em objeto de grande valorização simbólica. Portanto ao valor de troca de um “espaço” deve-se incluir não só a  acessibilidade, as distancias relativas aos outros componentes da cidade, o emprego do tempo, etc., mas também os signos que o distingue dos demais locais – signos construídos  publicitariamente ou não, vendendo prestígio, felicidade, estilo de vida, etc. Isso se aplica não só ao centro, mas também ao “não-centro”, onde se vende muitas vezes signos do sucesso para compensar as desvantagens do lugar.

Devido a diferenciação do valor de uso X localização, é que a segregação sócio-espacial se torna um processo necessário para a apropriação diferenciada desse valor.
Entende-se por segregação “a alta concentração de camadas sociais em determinada parcela do espaço urbano” (Villaça). Através da segregação, a elite domina o espaço urbano não só produzindo suas residências, seus locais de trabalho e de lazer nas áreas que consideram mais agradáveis, mas também atuando sobre toda a estrutura urbana segundo seus interesses. O objeto desta monografia é um claro exemplo desse tipo de atuação, como veremos a diante.

Basicamente, são através de três esferas que a classe dominante controla a produção e o consumo do espaço urbano: Econômica, política e ideológica. Na esfera econômica, destaca-se o controle do mercado imobiliário; na política, o controle do Estado, que se manifesta através do controle da localização da infra-estrutura urbana, da localização dos aparelhos do Estado e da legislação urbanística; na esfera ideológica, desenvolvendo uma ideologia, como todas as ideologias, visando auxiliar a dominação e torná-la aceitável pelos dominados.

Pensamos ser necessário uma ação do Estado na “geração direta ou indireta de bens e serviços que se tornem elementos indispensáveis para a reprodução de força de trabalho e para a expansão do capital” (Kowarick) de forma “politizada”, ou seja, de forma a internalizar as lutas/ os conflitos de classes. O Estado deve ser o núcleo dos conflitos, deve ser o alvo das pressões e reivindicações. Não deve ser unilateral, voltado para as elites.

Neste sentido, pensamos ser o desenvolvimento de uma política urbana para o centro de São Paulo que inclua uma política de habitação de interesse social necessariamente uma ação que combata a prática da segregação e uma forma de “politizar” o Estado – principalmente se houver mecanismos de participação direta no processo.
O presente trabalho objetiva compreender a formação da metrópole paulista, do seu centro principal, do processo de  produção do espaço e a atual configuração relacionada com a lógica exposta anteriormente. Pretende diagnosticar os problemas do centro da cidade, para que na próxima etapa do trabalho se possa desenvolver propostas relacionadas a ele.
 

panorama

São Paulo apresenta uma  estrutura urbana que assemelha muito com inúmeras cidades do sul do Brasil atravessadas por ferrovias no final do século XIX, permitindo-se enquadrá-la em um modelo de urbanização. Trata-se de uma metrópole interiorana, expansível a 360?, ou seja, a todas as direções, ocupando um fundo de vale dividido por um rio, o Tamanduateí, e pela linha do trem.

Esse conjunto forma uma barreira que divide o centro do não centro, locais com custos e tempos de deslocamentos diferentes. A cidade expandiu, em um primeiro momento, na direção do Anhangabaú (oeste), rumo ao espigão (da atual Av. Paulista), pois seu vale representava um obstáculo muito mais fácil de se superar do que a transposição do rio Tamanduateí, na direção leste. Na direção do Anhangabaú não havia ferrovia, e o rio tinha uma pequena várzea inundável, muito  menor do que do Tamanduateí. A cidade também poderia se expandir na direção da cumeeira divisória de águas entre os dois rios (onde já estava a cidade), na direção do Bixiga e da Liberdade, que não exigia a transposição de nenhum obstáculo. Porém, tratava-se de um sítio estreito.

A cidade se expandiu em todas as direções, porém, seletivamente. Até atingir a marca de 2 milhões de habitantes, era possível dividir a cidade em apenas duas partes, a leste e a oeste. Na parte oeste, transpassando o Anhangabaú, o sitio apresentava uma topografia levemente ondulada, crescente em direção ao espigão, conferindo certa beleza ambiental. O centro foi se desenvolvendo nessa direção, aonde se constatava a presença de todas as classes sociais até o terceiro quartel do século XIX. “As elites paulistanas estavam espalhadas ao longo do centro, como numa típica cidade pequena. Estavam em cinco locais (não se poderia sequer chamá-los de bairros): Na Glória, no Carmo e na Liberdade(...), na Luz e em Santa Efigênia” (Villaça).

Porém, com o crescimento do cultivo do café (já com mão de obra assalariada), a posição estratégica da cidade entre os pólos produtores e o Porto exportador interligados pela ferrovia e a sua condição de centro administrativo, comercial e cultural da  região, fizeram com que a cidade logo sofresse um rápido processo de urbanização. Instalava-se na cidade a oligarquia cafeeira, ex-escravos e imigrantes, instituições bancárias, imobiliárias, comércio, indústrias (surgidas através da transferência de capital da cafeicultura), serviços, instituições culturais, etc. Para se Ter idéia da escala do crescimento da cidade, de cerca de 31 mil habitantes em 1872, a população passou a cerca de 65 mil em 1890, chegando a 240 mil em 1900 e 357 mil em 1910  .

Se na porção oeste da cidade estavam presentes todas as classes sociais, na porção leste, de difícil acesso através de pontes, com um sítio plano e monótono aos gostos da época, habitava somente as camadas populares. Formavam-se aos poucos, novos bairros operários ao redor das fábricas. É interessante como o crescimento das camadas populares urbanas coincide com o desigual crescimento urbano; como o crescimento da massa trabalhadora coincide com o crescimento na parte “pior” da cidade. Em 1890, 72% dos habitantes de São Paulo moravam a oeste do Tamanduateí e apenas 28% moravam a leste. Em 1920, 57% e em 1950, 40,6% da população da cidade encontrava-se a oeste, demonstrando como a maior participação das camadas populares na região leste fez com que ela crescesse mais rapidamente que a oeste. Deve-se ressalvar, porém, que a partir de 1950, quando a cidade atingia seus 2 milhões de habitantes, já não havia como dividir a cidade em apenas leste e oeste: o ABC contava com 8% da população da metrópole e a zona norte, com 11% .

No braço de acesso à zona leste, formava-se o primeiro subcentro de comércio e serviços daquela região, de caráter mais popular, no Brás (como é até hoje). Conforme a cidade ia crescendo e se consolidavam as relações internas, não mais do capitalismo mercantil, mas despontando para o industrial, ficava mais evidente os traços de segregação sócioeconômico-espacial.

Do lado do centro, as elites começavam a se separar das camadas populares, nos loteamentos dos Campos Elíseos , na Santa Cecília (que deu origem a Higienópolis), na Vila Buarque até chegar na Avenida Paulista. A classe média fez surgir no início do século, bairros como a Vila Mariana, Vila Clementino, o Ipiranga, Perdizes, Cerqueira César, Vila Romana, etc. – A maior parte dessa classe também se encontrava a oeste da cidade. A classe baixa, também muito presente na parcela oeste da  cidade, estava em todos os lugares do centro. Villaça observa que segregação entendida por “alta concentração de camadas sociais em determinada parcela do espaço urbano” (ou que em nenhuma outra parte essa concentração é maior) não significa que nessa parte haja predominância e muito menos exclusividade dessas camadas. Pois numericamente, a camada popular era maior na região do centro do que a elite, mas a elite, como classe se concentrava mais lá do que em qualquer outro lugar – Até poderia haver famílias isoladas da elite morando na zona leste, mas não enquanto grupo social.

Tanto nas áreas mais centrais como nos novos bairros, os trabalhadores da indústria e do comércio moravam em cômodos alugados em porões e em construções precárias em fundo de lotes – em cortiços. Extremamente precários, com falta de esgotos, drenagem, de coleta de lixo, com problemas de umidade, de falta de ventilação e iluminação, superlotação, logo viraram foco de doenças, contaminações, etc. O cientificismo do início do século e o desenvolvimento da Saúde Pública somado à sintonia da nova burguesia urbana ao gosto e aos valores europeus, desencadearam um conjunto de intervenções urbanísticas de natureza sanitarista, higienista e de embelezamento. Era preciso adequar o espaço central da metrópole para atender as novas funções, sanar os problemas de saúde, e “modernizar” seu espaço, apagar seu passado colonial e provinciano.

Com a presença das oligarquias no comando da cidade, logo se fizeram obras na cidade para deixá-la com aparência rica, semelhante às cidades européias, principalmente francesas. Implantou-se iluminação pública elétrica, bonde elétrico, grande arborização das alargadas avenidas, construiu-se o Teatro Municipal, máxima dos ideais burgueses/franceses de beleza. Vale observar que o teatro foi construído na direção da concentração dos bairros de alta renda. O caminho torna-se claro ao observarmos a progressão/sucessão de obras: O viaduto do Chá, para transpor o Anhangabaú, o Teatro, a Mappin Stores em frente a ele, a Biblioteca Municipal (a Av. São Luís abrigava grandes mansões).

As demolições necessárias para o alargamento das avenidas (como do plano concebido por Bouvard), muitas vezes coincidiam, provavelmente não por acaso, com os locais de maior concentração de cortiços, mendigos, prostitutas, marginais. Havia uma idéia arraigada ( até hoje) de que os pobres “sujavam” o centro. A limpeza sanitarista passava também por um processo de expulsão da população de baixa renda, seja através das demolições (que chegavam a derrubar quarteirões inteiros), dos despejos, seja através de instrumentos legais, como a criação da lei de inquilinato (mais para a frente), seja através da valorização imobiliária decorrente de todos os investimentos feitos .
Não se tirou toda a população das camadas populares do centro, mas configurou-se uma bipartição do centro entre a elite e o proletário, respectivamente em “centro novo” e “centro velho”, sendo o primeiro alvo de grandes investimentos e o segundo abandonado pela elite, pelo Estado, pelo mercado – Fato bem aproveitado pela população de baixa renda que permaneceu lá.

Com todos os investimentos aplicados na região, “as terras centrais passam a ser utilizadas no sentido de possibilitar o máximo de rendimento” (Silva), pressionando a legislação urbanística a permitir uma maior verticalização e adensamento no centro. O ponto culminante dessa prática, foi a construção do edifício Martinelli, que utiliza um coeficiente de aproveitamento de 22 vezes. O adensamento descrito também é coincidente com o processo de metropolização de São Paulo. A cidade se transformava no polo econômico nacional, criando e concentrando indústria, comércio, instituições culturais, serviços os mais diversificados possíveis.

Constituindo um grande local de destino e de passagem, já em 1920, terminadas as obras do Anhangabaú e iniciando-se as obras do Parque Dom Pedro II, as principais ruas do centro encontravam-se congestionadas pelos 2 mil automóveis existentes; Praças e largos já se transformavam em estacionamento. Em 1929, Prestes Maia propunha o seu “Plano de avenidas”, com o objetivo de ampliar o centro e modernizar o sistema viário central. Claramente uma  escolha que beneficiou as elites e trouxe mais problemas ao centro. Trouxe grandes benefícios de valorização imobiliária ao longo de toda extensão das novas avenidas, mas o principal benefício foi o da mobilidade propiciada pelas vias. Privilegiando o automóvel particular em detrimento dos meios de transporte coletivos, é evidente o seu caráter. Toda a cultura automobilística permitiu que a elite pudesse sair da “mistura social” do centro e se isolar de vez em bairros destinados à sua classe, com lotes grandes, com padrão de casa isolada e jardim. Permitiu que o comércio e os serviços mais “refinados” acompanhassem a sua saída.
Ao mesmo tempo em que as obras viárias “integravam” o tecido urbano, abriam do centro para as bordas, trazia mais carros para a região e rasgava totalmente o tecido existente. O Plano de Avenidas por exemplo, como a maioria das obras de cunho viário, visava resolver o problema de circulação do ponto de vista metropolitano, sem conseguir dar conta de resolver os conflitos que o projeto criava com a escala local.

Quanto à população da classe baixa, mesmo diante das pressões para sua saída do centro, não tinham até então condições de morar longe do local de trabalho. Somente a partir da década de 40, com a criação da CMTC, as camadas populares ocupam em massa as periferias longínquas da cidade, através de loteamentos populares ou irregulares e autoconstrução. Da década de 40 até 60 essa foi a forma predominante de abrigar a massa de migrantes vinda de todo o país. A incerteza do aluguel e do despejo, em meio a um período de bastante inflação deram lugar à garantia de possuir uma casa própria, um bem de troca disponível.

Com a entrada dos militares no poder, observou-se a adoção de um modelo de aceleração do crescimento econômico cuja lógica apoiava-se no acirramento da pobreza. Adotou-se uma política compensatória para a classe média, enquanto a classe baixa assistia a uma forte redução dos salários reais– reduziu-se então drasticamente a possibilidade dessa camada comprar seus lotes. A partir da década de 70, dessa forma, caracteriza-se pela explosão das  favelas, ocupando áreas verdes, de lazer e equipamentos coletivos e pelos cômodos precários, alugados, construídos no fundo de lote nas periferias. Mas a pressão dos aluguéis continuava empurrando as famílias para loteamentos e favelas mais distantes e precários.

Apesar da maioria da população de baixa renda Ter buscado a casa própria periférica como solução de moradia, o centro continuava a abrigar um grande número de famílias, que encontravam vantagens nessa solução, e de certa forma se beneficiaram com o abandono propiciado pelas elites, pelo desinteresse mercadológico e pelas intervenções catastróficas do Estado (todas ligadas ao problema de circulação – Viaduto Costa e Silva, Radial Leste, Praça Roosvelt, nova Praça da Sé).

A entrada da industria automobilística no Brasil, a difusão do seu uso (nas classes mais abastadas), e o intenso investimento no sistema viário pelo poder público, trouxe, a partir da década de 50 algumas outras transformações. Os bancos saíram do centro e foram para a Paulista, as classes dominantes cada vez mais abandonavam o centro como local de moradia, o comércio de luxo as acompanhavam, etc., como já vinha acontecendo anteriormente. Porém, a difusão do automóvel nesse período pôde fazer com que as classes dominantes pudessem trocar o centro como local de emprego por novas “centralidades” não contínuas a ele, como por exemplo a Faria Lima. Eram localizações que, ao contrário do que pressupõe um centro mesmo, eram fragmentadas, dispersas, com usos não muito diversificados. Haviam, pelo contrário, corredores especializados em uma ou outra atividade. Porém, com o desenvolvimento dessas áreas, costumou-se denominá-las como integrantes do “centro expandido”. Enquanto o centro antigo era compacto e relativamente fácil de se delimitar, a delimitação do “centro expandido” é controvertida e complexa, englobando até a Berrini, a região da Faria Lima, a da Marginal do rio Pinheiros. Villaça mostra como é necessária a construção ideológica da noção de que o centro está se deslocando (quando na verdade é a elite que se desloca) – Falaremos dessa questão adiante.

Na década de 80, o centro já estava quase totalmente tomado pelas camadas populares. “Aquilo a que se chama ideologicamente de ‘decadência’ do centro é tão somente sua tomada pelas camadas populares, justamente sua tomada pela maioria da população. Nessas condições, sendo o centro realmente da maioria, ele é centro da cidade”(Villaça).
 

 o centro atualmente

Dentro dessa idéia de que o centro está deteriorado, de que sofre um processo de decadência, que está morto, orquestra-se atualmente algumas iniciativas para que a elite volte a investir e utilizar o centro. De um lado, temos as iniciativas do governo do estado de São Paulo, emergidas numa concepção de intervenção gentrificadora (cujo objetivo é fazer com que ele volte a Ter a dignidade outrora conquistada), pontual, cenográfica e voltada para as elites. Investindo em recuperação de patrimônio histórico para uso cultural (de elite), cria-se pontos irradiadores de valorização imobiliária e de usufruto por parte dessa elite – que chega de carro no estacionamento gratuito da Sala São Paulo, por exemplo, e vai embora desapercebida. De outro lado, temos a associação Viva o centro, criada no início da década de 90 por empresários com empresas sediadas ali e investidores imobiliários, basicamente. Também dentro dessa visão, a prefeitura de São Paulo criou o PROCENTRO e instituiu a operação urbana centro, objetivando atrair novos investimentos, driblando a legislação.

Porém, os dados desmistificam a idéia de que o centro está vazio, ocupado apenas por marginais. O centro tradicional continua sendo o foco irradiador da organização espacial urbana. Continua sendo a maior concentração de lojas, escritórios e serviços, além de empregos, da metrópole. É o local que atende  mais população do que qualquer outro centro da metrópole.  O centro obteve em 1995, 24,23% do total de destinos de viagem, São Bernardo do Campo, 11,06%, Paulista (considerada polo distinto do centro na pesquisa), 9,74%, Santo André, 7,68%, São Caetano do Sul, 6,53%, Pinheiros, 6,41%, Tatuapé, 5,4% e Lapa, 5,34%.

O centro tradicional, que inclui as zonas da Sé, Tabatinguera, Glicério, Liberdade, Bixiga e Consolação, em 1987 tinha 517.100 empregos contra 207.003 da região da Paulista (Paulista e Alamedas) e 364.140 do centro expandido (Região da Paulista, Jardins I, Jardins II, Itaim I, Vila Olímpia e Iguatemi). Considerando o grau de concentração que deve caracterizar, temos uma densidade de 772 empregos/ha no centro tradicional, 478 empregos/ha na região da Paulista, e 258 empregos/há no centro expandido, que inclui a região da Paulista e exclui o centro tradicional.   Quando se fala em “decadência” do centro, o que tem acontecido é que certas atividades (bancos ou cinemas, por exemplo) crescem mais fora daquela localidade. Novos tipos de atividades (como no ramo das altas tecnologias) também se desenvolvem em outros lugares, ou seja, há uma relatividade de valores, pois em números absolutos, não há queda de atividade. Outra ressalva a fazer é que claramente conforme a cidade se expande é normal o declínio relativo da participação do centro.

Essa era a primeira constatação a se fazer: o centro tradicional de São Paulo ainda é o centro principal, ao contrário do que diz  o discurso dominante que aparece nas mídias, nos trabalhos acadêmicos, no lugar comum. Outro ponto distorcido a respeito do centro é sobre a caracterização do problema dos cortiços e dos encortiçados. Há uma idéia de fundo de que cortiço é moradia fácil para pessoas que querem coisas fáceis; que é o espaço da marginalidade; que é mais barato que morar na favela, por isso as pessoas abrem mão da casa própria a troco de um local insalubre para morar, e assim por diante.
Oficialmente, são computados aproximadamente 600 mil moradores de cortiço (que utilizam instalações sanitárias coletivas), mas segundo lideranças de movimentos de encortiçados, esse numero já está na casa dos milhões. Pesquisa desenvolvida pela FIPE em 1997  tendo como amostra cortiços localizados nas regiões das administrações regionais da Sé, Móoca e Vila Prudente, mostrou que uma parcela significativa da população encortiçada participava de forma estruturada do mercado de trabalho, tinha estabilidade na modalidade e na localização da moradia e necessitava morar nas áreas centrais, pagando para isso aluguéis altíssimos, comprometendo grande parte de sua renda.

O estudo mostrava que 53% dos moradores eram trabalhadores assalariados com registro em carteira, e a renda familiar era relativamente alta. Renda média e mediana situava-se entre 5 e 6 salários mínimos, sendo que 38% recebia mais de 6,8 SM. Apresentavam certa estabilidade na condição e localização da moradia – 29% das famílias habitava há mais de 3 anos no mesmo cortiço, sendo expressivo também, o número de famílias que sempre morou em cortiços e no mesmo bairro.

Os dados mostram como a localização (proximidade do local de emprego, serviços públicos) é determinante na escolha dessa forma precária de habitar – sendo que as famílias têm renda e estabilidade para morar melhor. 48% das pessoas iam a pé para o trabalho e 21,2% utilizava o metrô. 74,6% levava menos de meia hora para fazer o trajeto casa/trabalho.

O estudo também revelou que o grau de comprometimento da renda daquelas famílias com o pagamento do aluguel era muito alto. Metade dos moradores gastava mais de 28% da renda familiar com o aluguel e um quarto daquela população gastava mais de 43% - Mais do que os órgãos de financiamento estabelecem como o máximo de comprometimento da renda com habitação – 25%.

Dados da tese de mestrado de Luís Kohara  são também bastante reveladores. Obtidos em abril de 1998 a partir de 60 cortiços, 120 famílias, no Bom Retiro, revelaram informações sobre o custo das moradias e condições de conforto. Segundo essa pesquisa, a área média dos domicílios (desconsiderando banheiros e áreas comuns) era de 11,9 m2 . Entre as famílias, 78,9%residiam em espaços inferiores a 15 m2; 77,8% habitavam em apenas um cômodo; o número de bacias sanitárias era de 1 para 25 pessoas.

As informações mais intrigantes são as relacionadas com os gastos com a moradia. 42,9% das famílias pagavam aluguéis entre R$ 196 e R$260; o valor médio dos aluguéis era de R$191, e o valor médio das despesas com água e energia era de R$ 39,70. Nessa pesquisa o dado de comprometimento da renda com o aluguel é um pouco mais detalhado que o da outra pesquisa: 31,1% das famílias comprometem mais que 30%; 45,6% comprometem entre 31% e 60%; e 23,3% comprometem mais de 60%. Enquanto isso, no mercado formal, o valor médio do aluguel de uma quitinete era de R$300, e o de um apartamento com um dormitório, R$ 450.

Os  dados sobre emprego confirma os dados da pesquisa da FIPE: nessa amostragem, a porcentagem de empregados com registro em carteira são de apenas 28,9% (maiores de 15 anos). Sem registro, são 22,9%; trabalhando por conta própria, 18,2%, sendo um terço como ambulantes; desempregados, 17,4% - ou seja, 70% das pessoas trabalhando. O problema é que 48,7% das famílias pesquisadas não possuía nenhum membro com registro em carteira, não podendo comprovar a renda junto às operações de crédito.

O metro quadrado da unidade de cortiço é relativamente o mais caro da cidade (levando-se em conta a localização e as qualidades oferecidas). Comparando o valor do aluguel nos cortiços com os preços praticados no mercado, concluiu-se que o valor do m2 do cortiço é 78% superior ao de casas térreas, 41% superior ao de apartamentos e 30,4% superior ao aluguel de sobrelojas e salas comerciais – a alta rentabilidade desse tipo de imóvel, no entanto, é distribuída entre proprietários e intermediários.
Os dados mostram como é necessário e viável desenvolver uma política de habitação na área central de São Paulo, do ponto de vista dos ‘sem teto’ – As soluções tradicionais dos conjuntos periféricos não respondem a suas necessidades e eles têm plenas condições de pagar pela moradia no centro. Por outro lado, há uma série de entraves fundiários, legais e ligados às formas atuais de financiamento que dificultam o desenvolvimento daquela política. No entanto, há uma série de outros pontos favoráveis à sua adoção, não só do ponto de vista dos ‘sem teto’, mas da cidade como um todo.
Em síntese, “ No modelo convencional, gera-se uma cidade segmentada e segregada, criando-se bairros onde inexistem empregos, serviço  e comércio e onde a implantação da infra-estrutura é difícil e cara. Gera-se uma demanda exagerada de transporte coletivo em uma única direção: de manhã no sentido das áreas polarizadoras de emprego e no final da tarde em direção aos bairros dormitórios, como se verifica na recente pesquisa origem-destino do Metrô. A conseqüência é a super lotação dos ônibus metrô num sentido e subutilização no outro, com enorme deseconomia. O mesmo ocorre com todas as redes de infra-estrutura, que ficam ociosas durante o dia e supercarregadas durante a noite”  (Bonduki).

No centro, temos exatamente o oposto dessa situação: sua completa rede de infra-estrutura fica ociosa ou subutilizada no período da noite, além dos finais de semana. Apesar da grande concentração de  empregos e atividades, no setor de habitação, o centro vem perdendo gente ao longo das décadas, devido aos problemas expostos anteriormente.

Até a eficiência econômica da cidade fica comprometida: Os altos gastos com transporte têm que ser incorporados no pagamento dos trabalhadores, além do elevado tempo gasto com deslocamento reduzir a sua produtividade. Esse tempo gasto também encerra a possibilidade deles se requalificarem (termo valorizado nos dias atuais) e praticamente elimina o tempo livre, necessário para o cultivo do lazer e da cultura.
Um programa habitacional massivo, que atendesse não só os encortiçados, mas também os trabalhadores que foram jogados para a periferia, poderia, além de viabilizar moradia em condições dignas em boas localizações, traria efeitos na demanda de transporte e reduziria os deslocamentos pela cidade; evitaria a criação de novas demandas de infra-estruturas e equipamentos sociais, além do inchamento da mancha urbana .

Outro aspecto positivo seria a real “revitalização” que traria. Áreas abandonadas, como dos galpões industriais da Móoca, por exemplo, voltariam a Ter vida. A apropriação do espaço do centro pela população assistida pela política seria interessante não só do ponto de vista da Conservação dos espaços públicos, mas poderia ser interessante do ponto de vista da preservação do patrimônio histórico arquitetônico. Ao invés de edificações históricas corresponderem a monumentos isolados, descolados no tempo, poderiam se transformar em museus vivos, reinseridos na história da cidade com seu  uso habitacional. Seriam então objetos de resignificação, que marcaria-os como uma produção de nosso tempo contemporâneo.

Os entraves de que falei, para o desenvolvimento de uma política habitacional, seriam de ordem fundiária, legal e de financiamento.

Apesar de haverem terrenos e prédios vazios, passíveis ou não de demolição, a sua aquisição tende a ser difícil. É preciso lidar com a valorização decorrente das intervenções públicas e dos próprios conjuntos; É necessário um banco de dados que forneça dados sobre os proprietários, sobre os encortiçados, entre outras coisas; É necessário definir como comprar/estocar terrenos ou desapropriar áreas construídas. Um dos problemas do ponto de vista fundiário recai sobre os problemas legais – pois os instrumentos urbanísticos criados para auxiliar a aquisição dos terrenos dependeriam da criação de novas leis ou de interpretação adequada das leis existentes.

Os entraves legais passam justamente pelo problemas criados pelo zoneamento, uso e ocupação do solo . Seria necessário uma revisão dos coeficientes de aproveitamento, das taxas de ocupação, das ZEIS, dos instrumentos urbanísticos, etc.

Os programas de financiamento existentes atualmente, PAR da Caixa Econômica Federal e PAC da CDHU, segundo Helena Menna Barreto Silva, seriam insuficientes para responder ao conjunto de problemas que uma solução massiva poderiam apresentar. Enumera-se os problemas do valor dos financiamentos, subsídios e modalidades de ocupação de moradias. Também existe o problema da comprovação de renda das famílias que precisariam ser atendidas, além dos programas atenderem somente a partir de uma faixa de renda de 10 salários mínimos aproximadamente – Além da média dos encortiçados.
 

conclusão

Pudemos perceber de um lado as vantagens e a própria necessidade de se adotar uma política habitacional para o centro de São Paulo, atrelada a uma política urbana estruturada. Do outro lado Observamos algumas dificuldades para o seu desenvolvimento. Porém, o que entrava realmente esse processo é a velha e repetida história da falta de vontade política. É a necessidade de consagrar o quadro de segregação e desigualdade sócio econômica e espacial; de manter o quadro de dominação política e exploração (não só através do trabalho, da mais-valia – mas da própria distribuição da riqueza e do trabalho social de forma desigual pela cidade).
Coloca-se muitos problemas no desenvolvimento de tais políticas, como a burocracia, os problemas de gestão e o problema de recursos. Porém, quando interessa à elite, mesmo obras colossais são feitas  - como o caso das reformas urbanas do começo do século e outras mais. O próprio centro de São Paulo foi objeto de muitas intervenções custosas e complicadas– quando a elite lá estava.

Hoje em dia, o centro de decisões se encontra dissociado do centro simbólico, comercial, etc. É necessário traze-lo de volta ao centro principal, sob a ótica de um Estado “politizado”, de uma sociedade participativa.
 

 bibliografia

Bonduki, Nabil, “Do cortiço à habitação digna: uma questão de vontade política”. em: revista URBS, nº 11, jan/mar. de 1999

Kowarick, Lúcio, “Espoliação urbana, lutas sociais e cidadania: fatias de nossa história recente” em: Espaços e debates  nº 40, 1997

Silva, Helena Menna Barreto, documento preparado para o encontro “Habitação no centro de SP: como viabilizar essa idéia? “

Villaça, Flávio, “Efeitos do espaço sobre o social na metrópole brasileira” em: Metrópole e Globalização, Unesp/Cedesp, 1999

___________, “capítulo 5 – A estrutura urbana básica”  e  “cap. 10 – Os centros principais”  em: