Desigualdades
e segregação na metrópole
Mariana Lucato
Monografia para a disciplina FAUUSP-AUP
272 (12-2000)
São inúmeros os problemas
atuais existentes na metrópole paulistana, que todo dia transformam-se
em manchetes de jornal. Podem ser aqui mencionadas as deficiências
no transporte, na habitação, nas redes de infra-estrutura
urbana, além das carências de empregos, escolas, postos de
saúde e cultura.
Porém, toda essa problemática
não reside de forma homogênea em São Paulo, mas subsiste
de forma gritante somente em parte do território.
É nas áreas mais pobres da
metrópole, ou seja, nas periferias, que as piores situações
são encontradas, desde o uso do solo e configuração
espacial, até o difícil acesso aos transportes, ao saneamento
básico, à educação e saúde, e à
cidadania.
Ao mesmo tempo, em outra esfera, São
Paulo dispõe de áreas valorizadas, elitizadas, onde a rede
de infra-estrutura cobre toda a extensão, e os investimentos
públicos e privados encarregam-se de impedir qualquer carência
ou deficiência que implique em queda na qualidade de vida para os
habitantes dessas regiões.
Tais observações, apontam
para um conflito de extrema significância nos processos metropolitanas:
o contraste, a segregação e a exclusão no território.
Chega-se à conclusão de que a metrópole acontece com
duas dinâmicas distintas, paralelas justamente porque não
se cruzam, não interagem. Além das diferentes condições
sócio-econômicas e físico-espaciais, que configuram
cada uma das partes, as atitudes governamentais mudam de uma para a outra,
a aplicação de planos e regulamentações muda,
os critérios são outros. Enfim, falar de São Paulo
é tratar de dois universos: o das periferias e o das áreas
mais ricas e beneficiadas.
Curioso, é que a questão
da exclusão abrange outras escalas ainda maiores. Tem-se a impressão
de que o planeta funciona como um fractal. Primeiramente há segregação
dos países ricos e pobres. Dentro dos países, há distinção
entre regiões desenvolvidas (no caso do Brasil o sul e sudeste)
e atrasadas. Por sua vez, nas regiões excluem-se os municípios
pobres e subdesenvolvidos. Dentro da metrópole, como foi dito, temos
as desigualdades entre o centro desenvolvido e as periferias. Por fim,
dentro de um trecho de São Paulo ainda encontramos segregação,
como acontece por exemplo na região do Morumbi, onde de sacadas
de apartamentos de 500 m² pode-se avistar imensas favelas.
A escala global é impensável,
tamanho o número de suas implicações, mas amenizar
a exclusão e desigualdade no âmbito metropolitano deve ser
uma idéia seriamente considerada para que não caminhemos
para um colapso total das relações sociais, espaciais
e das questões ambientais paulistanas.
Para tratar da dualidade existente em São
Paulo é preciso levar em consideração o modo como
se pensa, constrói e governa a região metropolitana.
De modo geral, o urbanismo brasileiro não
tem um comprometimento com a realidade concreta da cidade, mas somente
com parte dela (Maricato, 1999). São Paulo é um exemplo típico,
em que apenas parte do território é de fato assumido como
cidade, a chamada cidade oficial, e uma grande parcela é negada,
tanto pela elite, quanto pelo próprio governo.
Para a primeira, negligenciar as áreas
periféricas, mais pobres, é alimentar uma certa fantasia
de viver em uma ilha de primeiro mundo em que tudo funciona. Para o governo,
negligenciar a periferia é muito conveniente, pois uma vez negada,
ela oficialmente não existe, e assim teoricamente torna o governo
isento de quaisquer compromissos com a provisão de infra-estrutura
e qualidade de vida para essa população. As eventuais melhoras
e investimentos para a periferia mais parecem um favor, filantropia do
governo.
Em busca do porquê do descaso com
a periferia paulistana, que gera exclusão dentro da metrópole,
é preciso averiguar a questão da produção desse
território, evento que ocorreu com o assentamento da classe trabalhadora,
de forma ilegal e clandestina. Esta variável foi fundamental para
o tipo de expansão urbana horizontal, difuso, segregado e excludente
assumido por São Paulo a partir da década de 40.
Até o advento da indústria,
São Paulo tinha seu núcleo urbano restrito, com uma concentração
relativamente pequena de prestadores de serviços e casarões
dos barões de café. Foi com a industrialização
que a população paulistana cresceu vertiginosamente, principalmente
pela migração de grandes massas em busca de emprego nas fábricas.
Inicialmente, a população
operária assentou-se no centro, adensando a região. Por volta
de 1880, a demanda por habitação tornou-se maior do que o
núcleo central podia oferecer, e tornou-se necessário ocupar
novas áreas.
A iniciativa pioneira de lotear novas glebas
veio da parte dos capitalistas. Foi nesses primeiros loteamentos que a
idéia de segregar as classes e excluir os operários do centro
valorizado começou a ser concretamente espacializada. Foram precisamente
distintas as áreas a serem ocupadas pela elite e pelos trabalhadores.
A justificativa para tal conceito era o princípio de produzir loteamentos
adequados às necessidades específicas de cada classe, mas
na realidade os loteamentos deixavam clara a estratificação
do território.
Dessa forma, próximo ao centro,
foram criados bairros para os ricos, como Campos Elíseos, de 1880/1890,
Higienópolis, de 1890, Avenida Paulista, em 1890, e os bairros jardins,
criados pela Cia. City (de capital inglês) a partir de 1914.
Para essas áreas foi estabelecido
um código regulamentador do uso do solo, que previa recuos generosos,
jardins particulares, ruas largas e arborizadas, além de uso estritamente
residencial. A regulamentação foi capaz de garantir a qualidade
e beleza dos espaços mais valorizados da cidade.
Os loteamentos para a massa operária
por sua vez, foram localizados no primeiro anel circundante do centro,
próximos às fabricas. Era justamente o que a elite queria:
desadensar o centro expulsando os mais pobres para a periferia. A postura
governamental neste momento era de conivência com os interesses elitistas,
e a construção de vilas operárias junto às
indústrias era estimulada. O governo praticamente legitimou a segregação
no uso do solo urbano a partir de então.
Os conjuntos residenciais dos trabalhadores
criaram uma paisagem predominantemente horizontal, mas não tinham
qualquer plano ou regulamentação urbanística, sendo
praticamente marginalizados por qualquer lei que previsse um mínimo
de qualidade de vida aos trabalhadores. Esse cenário ainda pode
ser visto nos bairros do Brás, Mooca, Barra Funda, Lapa e outros.
Durante a década de 20, determinadas
práticas políticas mostraram interesse por parte do governo
em garantir uma maior racionalidade na construção da cidade
crescente. Em 1929 foram propostos o Plano de Avenidas de Prestes Maia,
e o Código de Obras Arthur Saboya (Grostein, 1998). Entretanto,
foi nas lacunas da lei e nas regiões sem plano, como a periferia,
que a cidade de fato se expandiu, ilegal e precária. Apesar de a
cidade contar com leis modernas, não havia um plano geral de extensão
da cidade, e o crescimento praticamente escapou ao controle urbanístico.
No I Congresso de Habitação,
em 1931, já foi constatado que a cidade clandestina era maior que
a cidade oficial regulamentada. Até a década de 30, a falta
de rede de transportes que garantisse acessibilidade às periferias
segurou a construção das mesmas. Foi a partir da década
de 40, consolidado o processo industrial paulistano e ampliada a rede de
ônibus, que o modelo de produção de moradia e de ocupação
(no centro e ao longo dos caminhos de bondes e trens, denso e pontual)
começou a ser substituído pela expansão difusa, periférica
e rarefeita no território.
Interessante é notar que a produção
de espaços ilegais não só não foi combatida
(insere-se aqui o descaso com a periferia) por regulamentações
urbanísticas ou planos, como também foi em parte estimulada
pela normativa. A lei que permitia abertura de passagens para acessar e
aproveitar os miolos de quadra, por exemplo, propiciou a clandestinidade,
sem falar na desqualificação espacial, com recorrente formação
de cortiços de altas densidades.
A urbanização que se processa
a partir de 1940 nas periferias é criminosa, pois não preserva
espaços livres, e ocupa exageradamente o solo. A idéia de
vila operária, presente nos primeiros loteamentos de periferia do
início do século XX, incluía áreas livres públicas
e semipúblicas para o lazer e as relações de vizinhança.
Aqui, a vila é substituída pela casa, e o conceito de moradia
dissocia-se da garantia de acesso a infra-estrutura urbana (dificultado
pela desorganizada ocupação do solo) e habitabilidade que
o conjunto (a vila) previa.
Essa ocupação foi a estratégia
desencadeada pela indústria para assegurar habitação
para uma população de baixos salários, para a qual
o Estado não foi capaz de produzir moradia. Inclusive, foi um processo
cômodo ao governo, uma vez que viabilizava a habitação
(de modo informal) sem a necessidade de investimentos públicos.
A casa própria apoiou-se então no binômio loteamento
periférico-autoconstrução.
A partir de então, a mancha urbana
expande-se continuamente de forma clandestina e rarefeita ao longo da periferia.
O país esperou até a Era
Vargas e o modelo de substituição das importações
para que se criasse o primeiro programa de habitação social
empreendido pelo governo. Com a criação do IAP (Instituto
de Aposentadorias e Pensões), recursos foram centralizados e estatizados
para produzir os primeiros conjuntos habitacionais. Mais uma vez, a política
determinou o aprofundamento do modelo de expansão periférica,
e as insuficientes habitações produzidas em São Paulo
(tendo em vista a grande demanda) foram construídas pelo Estado
nas periferias (Bonduki, 1998).
Ainda hoje os vetores de estruturação
espacial urbana constituem-se de lote clandestino, ruas precárias,
falta de saneamento e rede de água e esgoto, pontos de ônibus
lotados, depredação ambiental, falta de espaços livres,
e má qualidade de vida.
Encontramos na breve descrição
da produção do território metropolitano as raízes
históricas da segregação e expulsão. Elas deixaram
como legado a esquizofrenia de São Paulo, a existência de
duas faces, duas personalidades, sendo que uma delas é precária,
ilegal, ignorada.
A questão de grande parte da metrópole
ter se constituído na clandestinidade é significativa para
o fato de pouco ser sabido sobre a periferia. As dimensões e a representação
exatas não são conhecidas, nem a população,
nem as dinâmicas que regem esse território; ele não
está na maioria dos levantamentos e não é alvo dos
interesses imobiliários (Maricato, 1999). Torna-se então
mais difícil legislar a região, e a gestão urbana,
ao invés de aceitar o desafio de conhecer e planejar a periferia,
opta por excluí-la da metrópole oficial, deixando a esta
última a exclusividade de um aparato legal e de planejamento urbano.
Uma solução paliativa que
vem sendo aplicada é o uso de alguns instrumentos legislativos que
se encarregam de anistiar a clandestinidade dos espaços periféricos.
Porém, funcionam como anestésicos do real problema de exclusão,
pois apesar de a periferia ser legalmente anexada à cidade oficial,
ela continua segregada em termos de qualidade. Continua sendo carente de
infra-estruturas, acessibilidade e qualidade espacial, pois os planos respondem
somente aos interesses do capital empreendedor.
Como foi dito anteriormente, se a periferia
não é área de interesse da especulação,
e não proporciona lucros, os empreendedores não investem
nela. Este entrave tange outra questão: a de usar o capital privado
a favor das necessidades da metrópole, e não como ditador
do que deve ser feito em São Paulo. A realidade paulistana é
de submissão aos empreendedores, quando deveria ocorrer justamente
o contrário, para que não houvesse segregação
de investimentos e os benefícios não fossem restritos a determinadas
áreas.
Um dado que denuncia a desigualdade existente
hoje é a realização de onze mega-obras na cidade,
sendo que somente duas foram empreendidas em áreas carentes (Maricato,
1999). Por outro lado, as novas centralidades, o banquete dos investidores,
foram contempladas com nove dessas obras.
A região das marginais, por exemplo,
que recentemente vem agregando funções, serviços e
capital, e começa a constituir um subcentro, desde 1996 já
recebeu a Operação Urbana Faria Lima, a Avenida água
Espraiada, o prolongamento da linha de trem, alterações de
zoneamento, melhoria viárias, cabeamento óptico (na Vila
Olímpia), dentre outros investimentos.
Enquanto isso, as obras realizadas na periferia
cumpriram papéis pontuais, não abrangendo (beneficiando)
a totalidade dessa área. O espaço real continua sendo produzido
sem plano, sem projete ou desenho urbano. Como ninguém atua efetivamente
na cidade ilegal, prevalece o laissez faire, que rege a ocupação
de áreas de mananciais, encostas e áreas de preservação.
O povoamento sem critérios agrava
ainda mais os problemas urbanos, pois degrada os recursos ambientais (já
que há lançamento de esgoto nos mananciais, desmatamento
de morros, etc), oferece riscos à população de áreas
sujeitas a desmoronamentos, e piora os danos com enchentes.
E então, como abordar um entrave
tão complexo de segregação e exclusão na metrópole?
Não se pode esquecer de que a cidade
é produzida por dinâmicas políticas, econômicas
e sociais. Estas variáveis são responsáveis pela construção
do espaço.
Se o território de São Paulo
vem se expandindo e conformando do mesmo modo desde os primórdios
de sua urbanização (com ocupação periférica,
horizontal, provocando desigualdade e exclusão), é porque,
de certa forma, a postura perante a cidade e as relações
políticas, econômicas e sociais que nela acontecem ainda são
as mesmas.
A unidade do território pressupõe
assumi-lo em sua totalidade, conhece-lo.
Talvez esteja aí a chave do problema.
É possível que o início de um processo de mudanças
esteja em gestões interessadas na totalidade do território,
na utilização dos capitais para benefícios mais abrangentes,
na possibilidade da cidade para todos. Só então o planejamento
urbano é capaz de mudar São Paulo.
O conceito do plano global, que até
pouco tempo determinou as práticas urbanísticas talvez não
funcione mais, tendo em vista a complexidade que o território assume
a cada dia, mas a metrópole deve ser ao menos pensada de modo unitário,
para que os pequenos planos, de acordo com as especificidades de cada área,
sejam encadeados em uma única dinâmica, em um universo.
Bibliografia:
BONDUKI, Nabil. Origens da habitação
social no Brasil. São Paulo, FAPESP, 1998.
GROSTEIN, Marta Dora. Expansão Urbana
e habitação de classe trabalhadora: da vila operária
ao lote popular, in: Habitação e cidade. São Paulo,
FAUUSP, 1998.
GROSTEIN, Marta Dora. A cidade clandestina:
os ritos e os mitos, tese de doutoramento. FAUUSP, 1987.
MARICATO, Ermínia. As idéias
fora do lugar e o lugar fora das idéias, in: A cidade do pensamento
único. São Paulo, Editora Vozes, 1999.
Plano metropolitano da Grande São
Paulo. São Paulo, EMPLASA, 1994.
WHITAKER, João. São Paulo
metrópole subdesenvolvida: para que (m) serve a globalização?,
extraído do site da FAUUSP, 2000.