AUP 272:
Organização urbana e planejamento

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Criado:
2000.11.30
Atualizado:
2000.11.30
CD, JS

AUP 272: Organização urbana e planejamento    FAUUSP/ Departamento de projeto 
Ano letivo 2000                                                                 Grupo de Disciplinas de Planejamento 
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Trabalho de aluno
 

Desigualdades e segregação na metrópole
 

Mariana Lucato
Monografia para a disciplina FAUUSP-AUP 272 (12-2000)
 
 
 

São inúmeros os problemas atuais existentes na metrópole paulistana, que todo dia transformam-se em manchetes de jornal. Podem ser aqui mencionadas as deficiências no transporte, na habitação, nas redes de infra-estrutura urbana, além das carências de empregos, escolas, postos de saúde e cultura.
Porém, toda essa problemática não reside de forma homogênea em São Paulo, mas subsiste de forma gritante somente em parte do território.

É nas áreas mais pobres da metrópole, ou seja, nas periferias, que as piores situações são encontradas, desde o uso do solo e configuração espacial, até o difícil acesso aos transportes, ao saneamento básico, à educação e saúde, e à cidadania.

Ao mesmo tempo, em outra esfera, São Paulo dispõe de áreas valorizadas, elitizadas, onde a rede de infra-estrutura cobre toda a extensão, e os investimentos  públicos e privados encarregam-se de impedir qualquer carência ou deficiência que implique em queda na qualidade de vida para os habitantes dessas regiões.

Tais observações, apontam para um conflito de extrema significância nos processos metropolitanas: o contraste, a segregação e a exclusão no território. Chega-se à conclusão de que a metrópole acontece com duas dinâmicas distintas, paralelas justamente porque não se cruzam, não interagem. Além das diferentes condições sócio-econômicas e físico-espaciais, que configuram cada uma das partes, as atitudes governamentais mudam de uma para a outra, a aplicação de planos e regulamentações muda, os critérios são outros. Enfim, falar de São Paulo é tratar de dois universos: o das periferias e o das áreas mais ricas e beneficiadas.

Curioso, é que a questão da exclusão abrange outras escalas ainda maiores. Tem-se a impressão de que o planeta funciona como um fractal. Primeiramente há segregação dos países ricos e pobres. Dentro dos países, há distinção entre regiões desenvolvidas (no caso do Brasil o sul e sudeste) e atrasadas. Por sua vez, nas regiões excluem-se os municípios pobres e subdesenvolvidos. Dentro da metrópole, como foi dito, temos as desigualdades entre o centro desenvolvido e as periferias. Por fim, dentro de um trecho de São Paulo ainda encontramos segregação, como acontece por exemplo na região do Morumbi, onde de sacadas de apartamentos de 500 m² pode-se avistar imensas favelas.

A escala global é impensável, tamanho o número de suas implicações, mas amenizar a exclusão e desigualdade no âmbito metropolitano deve ser uma idéia seriamente considerada para que não caminhemos para um colapso total das relações sociais,  espaciais e das questões ambientais paulistanas.
 

Para tratar da dualidade existente em São Paulo é preciso levar em consideração o modo como se pensa, constrói e governa a região metropolitana.

De modo geral, o urbanismo brasileiro não tem um comprometimento com a realidade concreta da cidade, mas somente com parte dela (Maricato, 1999). São Paulo é um exemplo típico, em que apenas parte do território é de fato assumido como cidade, a chamada cidade oficial, e uma grande parcela é negada, tanto pela elite, quanto pelo próprio governo.

Para a primeira, negligenciar as áreas periféricas, mais pobres, é alimentar uma certa fantasia de viver em uma ilha de primeiro mundo em que tudo funciona. Para o governo, negligenciar a periferia é muito conveniente, pois uma vez negada, ela oficialmente não existe, e assim teoricamente torna o governo isento de quaisquer compromissos com a provisão de infra-estrutura e qualidade de vida para essa população. As eventuais melhoras e investimentos para a periferia mais parecem um favor, filantropia do governo.

Em busca do porquê do descaso com a periferia paulistana, que gera exclusão dentro da metrópole, é preciso averiguar a questão da produção desse território, evento que ocorreu com o assentamento da classe trabalhadora, de forma ilegal e clandestina. Esta variável foi fundamental para o tipo de expansão urbana horizontal, difuso, segregado e excludente assumido por São Paulo a partir da década de 40.
 

Até o advento da indústria, São Paulo tinha seu núcleo urbano restrito, com uma concentração relativamente pequena de prestadores de serviços e casarões dos barões de café. Foi com a industrialização que a população paulistana cresceu vertiginosamente, principalmente pela migração de grandes massas em busca de emprego nas fábricas.

Inicialmente, a população operária assentou-se no centro, adensando a região. Por volta de 1880, a demanda por habitação tornou-se maior do que o núcleo central podia oferecer, e tornou-se necessário ocupar novas áreas.

A iniciativa pioneira de lotear novas glebas veio da parte dos capitalistas. Foi nesses primeiros loteamentos que a idéia de segregar as classes e excluir os operários do centro valorizado começou a ser concretamente espacializada. Foram precisamente distintas as áreas a serem ocupadas pela elite e pelos trabalhadores. A justificativa para tal conceito era o princípio de produzir loteamentos adequados às necessidades específicas de cada classe, mas na realidade os loteamentos deixavam clara a estratificação do território.

Dessa forma, próximo ao centro, foram criados bairros para os ricos, como Campos Elíseos, de 1880/1890, Higienópolis, de 1890, Avenida Paulista, em 1890, e os bairros jardins, criados pela Cia. City (de capital inglês) a partir de 1914.

Para essas áreas foi estabelecido um código regulamentador do uso do solo, que previa recuos generosos, jardins particulares, ruas largas e arborizadas, além de uso estritamente residencial. A regulamentação foi capaz de garantir a qualidade e beleza dos espaços mais valorizados da cidade.

Os loteamentos para a massa operária por sua vez, foram localizados no primeiro anel circundante do centro, próximos às fabricas. Era justamente o que a elite queria: desadensar o centro expulsando os mais pobres para a periferia. A postura governamental neste momento era de conivência com os interesses elitistas, e a construção de vilas operárias junto às indústrias era estimulada. O governo praticamente legitimou a segregação no uso do solo urbano a partir de então.

Os conjuntos residenciais dos trabalhadores criaram uma paisagem predominantemente horizontal, mas não tinham qualquer plano ou regulamentação urbanística, sendo praticamente marginalizados por qualquer lei que previsse um mínimo de qualidade de vida aos trabalhadores. Esse cenário ainda pode ser visto nos bairros do Brás, Mooca, Barra Funda, Lapa e outros.

Durante a década de 20, determinadas práticas políticas mostraram interesse por parte do governo em garantir uma maior racionalidade na construção da cidade crescente. Em 1929 foram propostos o Plano de Avenidas de Prestes Maia, e o Código de Obras Arthur Saboya (Grostein, 1998). Entretanto, foi nas lacunas da lei e nas regiões sem plano, como a periferia, que a cidade de fato se expandiu, ilegal e precária. Apesar de a cidade contar com leis modernas, não havia um plano geral de extensão da cidade, e o crescimento praticamente escapou ao controle urbanístico.

No I Congresso de Habitação, em 1931, já foi constatado que a cidade clandestina era maior que a cidade oficial regulamentada. Até a década de 30, a falta de rede de transportes que garantisse acessibilidade às periferias segurou a construção das mesmas. Foi a partir da década de 40, consolidado o processo industrial paulistano e ampliada a rede de ônibus, que o modelo de produção de moradia e de ocupação (no centro e ao longo dos caminhos de bondes e trens, denso e pontual) começou a ser substituído pela expansão difusa, periférica e rarefeita no território.

Interessante é notar que a produção de espaços ilegais não só não foi combatida (insere-se aqui o descaso com a periferia) por regulamentações urbanísticas ou planos, como também foi em parte estimulada pela normativa. A lei que permitia abertura de passagens para acessar e aproveitar os miolos de quadra, por exemplo, propiciou a clandestinidade, sem falar na desqualificação espacial, com recorrente formação de cortiços de altas densidades.

A urbanização que se processa a partir de 1940 nas periferias é criminosa, pois não preserva espaços livres, e ocupa exageradamente o solo. A idéia de vila operária, presente nos primeiros loteamentos de periferia do início do século XX, incluía áreas livres públicas e semipúblicas para o lazer e as relações de vizinhança. Aqui, a vila é substituída pela casa, e o conceito de moradia dissocia-se da garantia de acesso a infra-estrutura urbana (dificultado pela desorganizada ocupação do solo) e habitabilidade que o conjunto (a vila) previa.

Essa ocupação foi a estratégia desencadeada pela indústria para assegurar habitação para uma população de baixos salários, para a qual o Estado não foi capaz de produzir moradia. Inclusive, foi um processo cômodo ao governo, uma vez que viabilizava a habitação (de modo informal) sem a necessidade de investimentos públicos. A casa própria apoiou-se então no binômio loteamento periférico-autoconstrução.
A partir de então, a mancha urbana expande-se continuamente de forma clandestina e rarefeita ao longo da periferia.

O país esperou até a Era Vargas e o modelo de substituição das importações para que se criasse o primeiro programa de habitação social empreendido pelo governo. Com a criação do IAP (Instituto de Aposentadorias e Pensões), recursos foram centralizados e estatizados para produzir os primeiros conjuntos habitacionais. Mais uma vez, a política determinou o aprofundamento do modelo de expansão periférica, e as insuficientes habitações produzidas em São Paulo (tendo em vista a grande demanda) foram construídas pelo Estado nas periferias (Bonduki, 1998).

Ainda hoje os vetores de estruturação espacial urbana constituem-se de lote clandestino, ruas precárias, falta de saneamento e rede de água e esgoto, pontos de ônibus lotados, depredação ambiental, falta de espaços livres, e má qualidade de vida.
 
 

Encontramos na breve descrição da produção do território metropolitano as raízes históricas da segregação e expulsão. Elas deixaram como legado a esquizofrenia de São Paulo, a existência de duas faces, duas personalidades, sendo que uma delas é precária, ilegal, ignorada.

A questão de grande parte da metrópole ter se constituído na clandestinidade é significativa para o fato de pouco ser sabido sobre a periferia. As dimensões e a representação exatas não são conhecidas, nem a população, nem as dinâmicas que regem esse território; ele não está na maioria dos levantamentos e não é alvo dos interesses imobiliários (Maricato, 1999). Torna-se então mais difícil legislar a região, e a gestão urbana, ao invés de aceitar o desafio de conhecer e planejar a periferia, opta por excluí-la da metrópole oficial, deixando a esta última a exclusividade de um aparato legal e de planejamento urbano.

Uma solução paliativa que vem sendo aplicada é o uso de alguns instrumentos legislativos que se encarregam de anistiar a clandestinidade dos espaços periféricos. Porém, funcionam como anestésicos do real problema de exclusão, pois apesar de a periferia ser legalmente anexada à cidade oficial, ela continua segregada em termos de qualidade. Continua sendo carente de infra-estruturas, acessibilidade e qualidade espacial, pois os planos respondem somente aos interesses do capital empreendedor.

Como foi dito anteriormente, se a periferia não é área de interesse da especulação, e não proporciona lucros, os empreendedores não investem nela. Este entrave tange outra questão: a de usar o capital privado a favor das necessidades da metrópole, e não como ditador do que deve ser feito em São Paulo. A realidade paulistana é de submissão aos empreendedores, quando deveria ocorrer justamente o contrário, para que não houvesse segregação de investimentos e os benefícios não fossem restritos a determinadas áreas.

Um dado que denuncia a desigualdade existente hoje é a realização de onze mega-obras na cidade, sendo que somente duas foram empreendidas em áreas carentes (Maricato, 1999). Por outro lado, as novas centralidades, o banquete dos investidores, foram contempladas com nove dessas obras.
A região das marginais, por exemplo, que recentemente vem agregando funções, serviços e capital, e começa a constituir um subcentro, desde 1996 já recebeu a Operação Urbana Faria Lima, a Avenida água Espraiada, o prolongamento da linha de trem, alterações de zoneamento, melhoria viárias, cabeamento óptico (na Vila Olímpia), dentre outros investimentos.

Enquanto isso, as obras realizadas na periferia cumpriram papéis pontuais, não abrangendo (beneficiando) a totalidade dessa área. O espaço real continua sendo produzido sem plano, sem projete ou desenho urbano. Como ninguém atua efetivamente na cidade ilegal, prevalece o laissez faire, que rege a ocupação de áreas de mananciais, encostas e áreas de preservação.

O povoamento sem critérios agrava ainda mais os problemas urbanos, pois degrada os recursos ambientais (já que há lançamento de esgoto nos mananciais, desmatamento de morros, etc), oferece riscos à população de áreas sujeitas a desmoronamentos, e piora os danos com enchentes.
 

E então, como abordar um entrave tão complexo de segregação e exclusão na metrópole?
Não se pode esquecer de que a cidade é produzida por dinâmicas políticas, econômicas e sociais. Estas variáveis são responsáveis pela construção do espaço.

Se o território de São Paulo vem se expandindo e conformando do mesmo modo desde os primórdios de sua urbanização (com ocupação periférica, horizontal, provocando desigualdade e exclusão), é porque, de certa forma, a postura perante a cidade e as relações políticas, econômicas e sociais que nela acontecem ainda são as mesmas.

A unidade do território pressupõe assumi-lo em sua totalidade, conhece-lo.
Talvez esteja aí a chave do problema. É possível que o início de um processo de mudanças esteja em gestões interessadas na totalidade do território, na utilização dos capitais para benefícios mais abrangentes, na possibilidade da cidade para todos. Só então o planejamento urbano é capaz de mudar São Paulo.
O conceito do plano global, que até pouco tempo determinou as práticas urbanísticas talvez não funcione mais, tendo em vista a complexidade que o território assume a cada dia, mas a metrópole deve ser ao menos pensada de modo unitário, para que os pequenos planos, de acordo com as especificidades de cada área, sejam encadeados em uma única dinâmica, em um universo.
 

Bibliografia:

BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo, FAPESP, 1998.

GROSTEIN, Marta Dora. Expansão Urbana e habitação de classe trabalhadora: da vila operária ao lote popular, in: Habitação e cidade. São Paulo, FAUUSP, 1998.

GROSTEIN, Marta Dora. A cidade clandestina: os ritos e os mitos, tese de doutoramento. FAUUSP, 1987.

MARICATO, Ermínia. As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias, in: A cidade do pensamento único. São Paulo, Editora Vozes, 1999.

Plano metropolitano da Grande São Paulo. São Paulo, EMPLASA, 1994.

WHITAKER, João. São Paulo metrópole subdesenvolvida: para que (m) serve a globalização?, extraído do site da FAUUSP, 2000.