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O
Rio Tamanduateí e o desenho urbano Amer
Nagib Moussa Introdução Dentro
do sistema capitalista no qual são construídas nossas
cidades hoje, o
planejamento urbano pontual se revela como ineficaz e paliativo, na
medida em
que o Estado acaba por favorecer a acumulação do capital
através da valorização
do espaço como mercadoria. “A terra enquanto localização,
longe de ser uma dádiva da
natureza, é um produto do trabalho que continuamente (re)produz
o espaço de
acordo com os requisitos sempre mutantes da acumulação”. [1] Apesar disso,
essa monografia abstrai a questão sistêmica do modo
totalitário de produção da
cidade, se colocando como um exercício de estudo e
crítica do processo
histórico e de projetos de possíveis
ocupações da várzea do Rio Tamanduateí -
exercitando apenas o desenho urbano em caráter de
intervenção. “Entre
todos os empreendimentos humanos e diante da consciência
ecológica que domina e
aproxima a humanidade, o desenho da cidade é o que expressa de
modo efetivo e
também simbólico, como nenhum outro, a capacidade do
homem para formalizar e
imprimir uma outra configuração da natureza enquanto
lugar, onde representa a
sua presença desejada no universo”.[2] Hoje, o papel
do Rio Tamanduateí na Zona Metropolitana de São Paulo
encontra-se em segundo
plano, sendo visto sempre como entrave ao desenvolvimento e barreira
geográfica
a ser superada. Seu curso foi canalizado e a orla, loteada e vendida.
Porém,
outras possibilidades de desenho urbano podem ser criadas, tendo em
vista uma
interpretação mais humana e utilitária do rio. Atualmente,
alguns projetos foram pensados para essa região visando reverter
esse quadro de
morte e confinamento do Rio Tamanduateí. Serão aqui
analisados três deles: o Fura-Fila,
projeto de transporte público elaborado pelo prefeito de
São Paulo Celso Pitta,
1997-2000; o Projeto Eixo Tamanduatehy,
da
Prefeitura de Santo André, 1998; e o projeto para a orla fluvial
da grande São
Paulo contido na dissertação “Os rios e o desenho da
cidade”, de Alexandre
Delijaicov, 1998.
O PrincípioO Rio Tamanduateí, que em tupi significa “rio de muitas voltas”, nasce na Serra do Mar, mais precisamente na cidade de Mauá, e deságua no Rio Tietê, passando pelas cidades de Santo André, São Caetano e São Paulo. Foi amplamente utilizado pelos índios que aqui habitavam, já que fazia a conexão do litoral com o interior paulista, ligando a Serra do Mar ao Rio Tietê, o qual adentra o Estado de São Paulo. Os portugueses também fizeram uso inteligente dos leitos navegáveis. Como utilizaram as trilhas indígenas associadas aos caminhos fluviais, muitas vilas foram fundadas ao longo dos rios paulistas.Assim
aconteceu com a Vila de Piratininga, que foi fundada em uma colina 20
metros
acima da Várzea do Carmo. Este local foi escolhido por que
permitia fácil
acesso ao litoral, ao mesmo tempo em que possibilitava avistar qualquer
inimigo
que se aproximasse da Vila via Rio Tamanduateí. Segundo
Benedito de Toledo[3],
o desenvolvimento da Vila de Piratininga nos três primeiros
séculos logo após a
sua fundação se deu praticamente dentro da colina
histórica. Fora dela, moravam
os pobres e a população de baixa renda. Tal fato se
justifica pelas cheias
periódicas do Rio Tamanduateí, que limitavam a
ocupação e dificultavam o acesso
a Zona Leste da cidade, como a região do Brás e da
Moóca. Apesar disso, o Rio
beneficiava a Vila com o trafego de mercadorias vindas do litoral,
configurando
a várzea como área de intenso comércio, ao mesmo
tempo em que lavadeiras de
toda a parte brigavam todos os dias por um espaço do leito onde
pudessem lavar
a roupa dos seus senhores. A transposição
do Rio já se fazia necessária, e, em 1810, foi
construída a ponte do Carmo,
ligando a Ladeira do Carmo ao Aterrado do Brás (Atual Av. Rangel
Pestana),
tendo grande importância por dar saída para o Rio de
Janeiro. Já nessa época a
cidade poluía o rio, despejando em seu leito o lixo produzido e
o esgoto, sem
tratamento. Em 1867 foi
construída a estrada de ferro Santos/Jundiaí, que teve
como seu eixo condutor
as margens do rio e que servia para despachar a produção
de café do interior
para o litoral. Em 1894 teve início a implantação
parcial do Projeto Carlos
Bresser de retificação do Rio Tamanduateí, o qual,
junto com a estrada de ferro,
atraiu muitas indústrias para a Região do ABC. As
áreas aterradas do
Tamanduateí, que poderiam ter sido dedicadas ao uso publico,
foram conferidas
aos industriais, que por muitas décadas se aproveitaram da
água e do trem para
desenvolver seus negócios particulares. A partir daí, o
rio abandonou de vez a
possibilidade de se tornar uma área de lazer da cidade, com
possíveis parques
lineares. Com isso, a
futura região metropolitana de São Paulo foi se
configurando, em meados do
século passado, um grande pólo industrial brasileiro,
atraindo imigrantes de
diversos lugares do mundo, criando algumas vilas operárias – nos
bairros do
Brás, Moóca, Pari e Belém, além de
proporcionar grande inchaço nas cidades do
ABC, como São Bernardo e São Caetano. A
contradição da ocupação industrial
trouxe muito desenvolvimento para os municípios da
região, mas por outro lado
acelerou brutalmente o processo de poluição, já
que não havia um sistema eficaz
de tratamento dos resíduos industrias, que eram despejados no
rio. A retificação
do rio contribuiu também para o aumento da vazão das
águas, já que acabou com
os meandros naturais do leito, acelerando a correnteza, favorecendo as
enchentes nos pontos de estrangulamento. Na época do primeiro
projeto de
canalização, de 1890, a vazão prevista era de 30m3/s;
e, no segundo
projeto, em 1930, a vazão dobrou para 60m3/s. O
projeto final
executado, em 1978, tinha que suportar uma vazão de 484m3/s. [4] Este
crescimento na vazão do Rio Tamanduateí também foi
decorrente do ritmo de
expansão da mancha urbana e, conseqüentemente, da
área impermeabilizada na sua
bacia. Simulações realizadas pelo CTH (Centro
Tecnológico de Hidráulica), já
nos anos 90, indicam que, se a expansão da mancha urbana
continuar, com a bacia
totalmente impermeabilizada, a vazão na foz poderá
ultrapassar 800m³/s. Hoje o rio já
se encontra canalizado desde a foz do afluente Oratório
até a sua foz no Rio
Tietê, tendo a última obra sido concluída em 1998.
O Rio Tamanduateí segue por
todas as cidades em que corta sempre estrangulado por avenidas
estéreis,
configuradas na maioria das vezes por imensos galpões
industriais abandonados.
A Trilha dos Tupiniquim foi por muito
tempo utilizada por índios e portugueses para a subida da
serra,
passando nas cercanias do Rio Piratininga, futuro Rio
Tamanduateí
A
Várzea do Carmo em fins do século XIX. O vale do Rio era
acessível e aproveitável por todos os habitantes
Projetos O Fura Fila, lançado como um chamariz na campanha eleitoral do ex-prefeito de São Paulo, Celso Pitta, já trouxe muitos prejuízos para o município. Concebido como Veículo Leve sobre Pneus (VLP) em via segregada, com apenas oito quilômetros, ele foi uma invenção de marketing e, como modo de transporte, não estava vinculado a nenhuma estratégia para equacionar de forma mais geral o problema de mobilidade na cidade, quanto menos na metrópole. A demanda de passageiros da região no horário de pico é compatível com a suportada pelos ônibus, dispensando uma obra de infra-estrutura desse porte [5].
metros. O Rio
Tamanduateí, já esmagado, foi precariamente “tampado” em
alguns trechos para a
passagem do VLP. O Fura-Fila já
consumiu cerca de R$ 600 milhões de recursos públicos,
apenas para a construção
da estrutura. Recentemente, surgiu uma proposta da
administração Serra de
utilizar as vias elevadas já construídas como parte de um
corredor de ônibus
até a Cidade Tiradentes, no total de 27 quilômetros, Ainda
assim, o Fura-Fila é um projeto que já nasceu equivocado,
na medida em que
oprime ainda mais o Rio Tamanduateí, colaborando para o seu
eterno
confinamento, e que ignora a linha D da CPTM, a qual corre paralela ao
rio e
que tem muito mais potencialidade de transporte público de
massa, pois corta
outras cidades da RMSP, saindo da Luz e chegando até Rio Grande
da Serra. È um
projeto que não vem acompanhado de um desenho urbano
transformador; é apenas
uma afirmação da destruição do rio. Outro proposta
contemporânea para a região é o Projeto Eixo
Tamanduatehy (1998), elaborado pela Prefeitura de Santo André. A
área de
intervenção abrange 12,8 km2, situados entre a
várzea do Rio
Tamandauteí e a Ferrovia, em uma extensão de 10,5 km,
dentro do município de
Santo André. A
idéia principal do projeto é desenvolver um novo centro
regional na cidade, que
seja menos dependente da forte centralidade que a cidade de São
Paulo exerce
sobre o resto da metrópole. Além disso, pretende-se costurar as
duas metades de Santo André, historicamente divididas pelo eixo.
Para que isso
ocorra, é prevista a construção de prédios
de escritórios, hotéis, centro de
convenções, espaço para feiras e
exposições, restaurantes, cinemas, grandes
equipamentos culturais e outros elementos hoje ausentes na
região, além de uma
requalificação do transporte metropolitano que cruza a
área (CPTM), tornando-o
mais popular entre todos os habitantes. Edifícios de
habitação de interesse
social também deverão ser incorporados à nova
área. Apesar das
boas intenções, o projeto se demonstra ingênuo em
diversas concepções. Segundo
Nadia Somekh, Secretária
de Desenvolvimento
Econômico da Prefeitura Municipal de Santo André,
“O projeto Eixo
Tamanduatehy prevê a criação de espaços
públicos, apostando na idéia de que a democratização
desses espaços constitui um
processo de redistribuição de renda
e de inclusão social. Esta poderá ocorrer não
apenas por meio da ampliação do
convívio social democrático nas novas áreas a
serem criadas, mas também através
da criação de programas de geração de
trabalho e renda, nos moldes construídos
pelo processo de articulação regional”.[6]
Tal premissa deixa transparecer um desconhecimento das
relações de trabalho
humanas em que se
pautam
nosso sistema. Além do mais, o projeto incentiva a
iniciativa privada em
atuações como shoppings centers e grandes supermercados,
reproduzindo a forma
de exploração do capital via concessões do Estado,
em áreas que deveriam ser de
utilidade pública por definição (a várzea
do rio). O Rio
Tamanduateí, em meio a tudo isso, permanece confinado e sem
utilidade, o que
mostra uma falta de preocupação e ousadia do projeto em
relação ao desenho
urbano, que certamente não reflete os anseios contidos nos
longos textos
explicativos que a prefeitura divulga.[7]
A própria secretária admite ser incerto o futuro do projeto em seu desenvolvimento sustentável, já que este depende de políticas públicas de amplas esferas (desde municipais até nacionais) e que é
preciso um comprometimento dos futuros governos no papel do Estado enquanto interventor e
sustentador, para
que não
cause gentrificação na área. Sabemos que este
processo, além de oneroso para as
contas públicas, raras vezes obtém sucesso. O Projeto Eixo
Tamanduatehy já expõe desde o inicio a incapacidade do
planejamento urbano de resolver os problemas sociais
oriundos da desigualdade das classes. O
que ele
cria, no máximo, são melhores
condições
espaciais para que se o capital possa
desenvolver seus negócios.
Tratamos até
aqui de esferas de atuação políticas municipais. O
que se pode concluir é que,
se não houver um projeto totalitário
abrangente para a bacia do
Tamanduateí, e, por que
não, para a Bacia do Tietê, os rios paulistas
permanecerão sem sentido na RMSP. Sob esse ponto
de vista, a dissertação de mestrado de Alexandre
Delijaicov, “Os rios e o
desenho urbano da cidade” apresenta um projeto amplo e
ousado para a
bacia do
Alto Tietê na RMSP. É uma proposta que não tem a
pretensão de resolver a
problemática do modo de construção das cidades
capitalistas contemporâneas,
apenas faz um redesenho dos leitos fluviais da metrópole,
atribuindo um sentido
central e utilitário para nossas águas. O projeto
fundamenta-se nos conceitos de cidade-porto fluvial e cidade-parque
fluvial;
assim, três idéias orientam o desenho proposto: portos,
parques e habitação.
Esse novo desenho deslocaria o ponto de observação e a
referencia urbana - o
símbolo e a imagem do desenho da metrópole passariam a
ser o rio e a
arquitetura da orla fluvial urbana, já que os rios passariam a
ser navegáveis. Os rios
transportariam pessoas, mas sem a pretensão de concorrer com
transportes de massa,
como o metrô. Seria apenas para aliviar os horários de
pico e para promover
passeios turísticos, revelando um outro olhar sobre a cidade.
Também seriam
transportadas embarcações com lixo, tal como feito em
Paris. Para a
implantação de uma rede hidroviária na Grande
São Paulo prevê-se a construção
de um canal de ligação entre as represas Billings e
Taiaçupeba, de 22km. O
restante do anel seria formado pelos rios Tietê e Pinheiros. Os
afluentes, como
o Tamanduateí, também estariam incluídos no
projeto, que configuraria 50km de
águas navegáveis só na metrópole. Obviamente,
obras de infra-estrutura como eclusas e barragens seriam
necessárias para
tornar alguns trechos navegáveis; Delijaicov mostra tecnicamente
que tais
construções são possíveis, baseando-se
sempre em canais urbanos europeus, como
os de Veneza e Amsterdã. Dentro desse
projeto, o Tamanduateí teria papel essencial na
ligação do Tietê com o litoral
(um canal artificial ligaria-o à Represa Billings, dando acesso
a Santos),
recuperando o seu caráter inicial na fundação da
cidade de São Paulo. Nele
estariam três portos: o de Santo André, o da Moóca
e o porto-lago do centro
histórico, atual parque D. Pedro II. Delijaicov faz
um desenho generoso, derrubando as grandes avenidas rodoviaristas que
se
espalharam pela cidade a partir do Plano de Avenidas de Prestes Maia,
de 1930.
Todos os portos e parques são pensados de maneira a incorporar
ciclistas e
pedestres, e também edifícios habitacionais de até
4 andares. O porto-lago do centro histórico é uma inundação do Tamanduateí em uma área da cidade que hoje está praticamente ignorada. Resgatar o potencial de leitura urbana que a várzea do Carmo oferece é primordial para que os paulistanos realmente compreendam a formação de sua cidade. Mais do que isso, o porto-lago nos recoloca em outro espaço-lugar, impondo à natureza os
Bibliografia
DEÁK,
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O Mercado e o Estado na organização espacial da
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