Como
uma teleobjetiva fotográfica que permite rapidamente transitar entre
visões aproximada e ampla, o presente trabalho partirá de um
diagnóstico hiper-limitado e quase amostral de alguns problemas
observados no planejamento urbano da cidade de São Paulo. A partir
desses, em um estágio mais afastado observar-se-á seus mecanismos de
atuação, e finalmente, num patamar amplo em que estes encontram-se
agrupados por suas manifestações elementares, observar como a estrutura
social brasileira segundo a ideologia vigente reflete e é reflexo dos
problemas urbanos apresentados.
Diagnóstico
Delimitamos
os exemplos citados à região sul do município de São Paulo. Ao
consultar os Planos Regionais Estratégicos (PRE) feitos pelas
Subprefeituras presentes nessas áreas é possível notar algumas
incongruências.
Na
divisa entre as Subprefeituras de Santo Amaro e Jabaquara, nota-se em
cada lado da Avenida Mascote diferentes densidades de ocupação
residencial. Essa situação exprime a falta de comunicação dentre as
diversas instâncias administrativas da cidade.
Outra
situação emblemática dessa descontinuidade entre os Planos Regionais
Estratégicos é vista na divisa entre a Subprefeitura de Santo Amaro e
Pinheiros: de um lado da avenida Santo Amaro é prevista uma operação
urbana, enquanto do outro lado, nada aconteceria.
Há
também casos de tecidos urbanos segmentados pela divisa entre duas
instâncias. Essa situação pode ser exemplificada na favela de
Paraisópolis, que é dividida entre a Subprefeitura do Campo Limpo e do
Butantã. Nesse local pode ser percebido um diferente tratamento
previsto nos Planos Regionais. Para o Campo Limpo, a favela está
inserida em uma ZEIS (Zona Especial de Interesse Social), enquanto que
do outro lado da rua, o Butantã prevê que a área, de mesmo tecido
urbano, seja uma zona de centralidade polar.
A
Subprefeitura de Pinheiros prevê, em seu PRE, na região das avenidas
Chucri Zaidan e Roque Petroni Júnior, uma área industrial, que não
seria compatível com o real uso do solo na região (escritórios,
shopping-centers, faculdades, lojas de decoração, etc.).
Quando
se compara os PREs com o Plano Diretor Estratégico realizado pela
prefeitura da cidade de São Paulo, percebe-se evidentes incongruências,
como, na mesma área citada, a previsão de uma área industrial em
recuperação localizada numa antiga zona industrial, já descaracterizada
e valorizada.
Outro
caso que pode ser citado é a incompatibilidade entre a lei e o que
ocorre na realidade. No caso das regiões de proteção ambiental essa
circunstância torna-se ainda mais grave. Um exemplo ocorre à beira da
represa Guarapiranga, onde existem diversos loteamentos clandestinos
irregulares, mas também condomínios reconhecidos pelas Subprefeitura da
Capela do Socorro, que desrespeitam a legislação ambiental. São áreas
pontuais em desacordo com o tecido urbano que as cerca.
No
planejamento urbano da cidade os cronogramas são muitas vezes mal
calculados, e o trabalho de realização, subestimado. Pode-se notar esse
fato na implantação de “Corredores Verdes” pela prefeitura, cujos
prazos previstos foram ultrapassados sem que nada ocorresse.
Mecanismo
O
que observamos até aqui foram manifestações de uma cidade num visível
estado de funcionalidade deficiente. Os mecanismos de atuação do
planejamento urbano demonstram aparente insuficiência e ineficiência.
Poderia-se, em uma primeira análise, afirmar que este inexiste.
Conseqüentemente, emerge a possibilidade de haver soluções que
respondam a estes questionamentos, que quando aplicadas sanariam a
cidade e, dentro dessa hipótese, teríamos uma máquina operante.
No
entanto, ao situar esses acontecimentos dentro da perspectiva da
acumulação entravada, como apresentada por Deák1, é possível apontar
uma causa anterior àquelas imediatamente próximas aos problemas
citados. O autor situa o Brasil num estágio intersticial entre a
acumulação extensiva e intensiva, com uma sociedade de elite egressa do
primeiro estágio impedindo, sob o risco de causar sua própria extinção,
o ingresso no segundo, este favorável ao fortalecimento de uma
burguesia detentora da produção. Num processo que teve início no final
da década de 1970, e que percorre o Brasil ao longo do fim do último
século e início do presente, organiza-se uma sociedade pautada numa
ideologia que a impede de adentrar o estágio intensivo e restrita em
sua capacidade de ter, em seu processo de acumulação, atributos
essenciais de otimização e performance. Para haver esta organização às
avessas é necessário planejamento, este com uma ação marcante para
manter tudo como está, contradizendo assim a afirmação inicial que
falta-se planejamento. Ele é existente, e age de maneira consciente e
eficiente na reprodução desta ideologia.
O
planejamento urbano paulistano, que é foco deste estudo, reafirmaria-se
ao longo das duas últimas décadas de maneira a perpetuar este
impedimento. Sua atuação deu-se de tal forma incapacitar os setores
produtivos de deflagrar sua própria otimização. Se Deák observa este
processo na expansão retraída da malha metroviária, que se afirma como
obstáculo às necessidades da produtividade do trabalho, observa-se nos
exemplos citados semelhantes métodos (e não “destinos”, dado a atuação
consciente do método) empregados. Ter uma cidade desconexa em sua
atividade e leitura, seja por parte de seu usuário ou do agente
planejador, tem como conseqüência evitar qualquer forma de
transformação social.
Proposta
Sob
o risco de provocar a mesma estagnação que a ideologia combatida prega,
não se deve considerar que qualquer medida a ser empregada está longe
das ações do planejamento urbano. Considerando sua condição dialética,
de simultaneidade entre causa e conseqüência, o planejamento urbano
deve reafirmar-se de tal forma responder à ineficiência gerada, atuando
a favor de sua capacidade de ‘desentravar’ os processos que restringem
a otimização. Com isso apresentado, as propostas que seguem referem-se
aos processos que geram as incongruências e deficiências descritas na
etapa inicial. São sobretudo primeiras abordagens sobre o tema;
hipóteses de resposta para aquilo que também é hipótese.
Para
os cronogramas inatingíveis, apresentados pelas diversas instâncias do
planejamento urbano municipal, deve-se ponderar onde está a restrição:
encontra-se ela no plano temporal, da fixação de cronograma, tendo
conseqüência a revisão desse, ou seria então fruto das limitações
desejadas à execução do plano? Não somente uma revisão de data,
encolhe-se ou elimina-se propostas para a cidade, sob o argumento que a
cidade (e leia-se aqui sua administração) é incapaz de realizá-las.
Mudanças de administração também poderiam ser apontadas como causas,
porém a inexistência de um verdadeiro projeto para a cidade é algo
anterior, quando poderia servir de base para qualquer administração se
pautar. Na cidade que tem sua leitura incapacitada, desenvolvê-la pode
possibilitar um plano coerente em sua plenitude e independente quanto a
administração.
Processo
semelhante encontram-se as incongruências entre o plano diretor
estratégico (PDE) e os planos regionais estratégicos (PRE). O Plano
Diretor apresenta uma visão de cidade que nem sempre condiz com as
especificidades locais, ao mesmo tempo que os PREs muitas vezes ignoram
as determinações do Plano Diretor do município. Tem-se um conjunto de
ações que resultam dessa visão global deficitária. Tem-se hoje uma
cidade em dezenas de subprefeituras, cada uma preocupada em elaborar um
plano regional que de maneira fragmentada não se articula com o de
subprefeituras limítrofes, muito menos com a instância municipal ou
metropolitana.
Encontramos
aqui o ponto-chave. No sentido contrário ao processo de
descentralização da administração pública e do planejamento urbano, em
aceleração desde a promulgação da Constituição de 1988, fortemente
municipalista, elucida-se a necessidade do fortalecimento de instâncias
superiores. Não somente das prefeituras em detrimento às
subprefeituras, como também das regiões metropolitanas, das instâncias
estaduais e federais. De fato, a criação das regiões metropolitanas em
1973 não tiveram praticamente nenhum efeito; para a administração
pública este é hoje apenas um inerte termo.
Não
se trata de ter um planejamento urbano centralizador e cego às
realidades locais, mas sim um capaz de articular todas as regiões da
cidade conforme um plano único e conseqüente. Com as metas asseguradas,
seria nas subdivisões municipais o papel da delineação do diagnóstico e
de possíveis planos de ação, porém a todo momento subordinada às metas
e requisitos determinados na instância superior. É uma hierarquização
que necessita da leitura feita pelas bases, porém capaz de atuar em
toda sua abrangência.
Nem
utópicos, nem de fácil e imediata aplicação, o cenário descrito
simultaneamente depende e condiciona a formação de uma alternativa para
o atual estado, o status quo, desta metrópole brasileira. O
planejamento urbano deve estar pronto para atuar no momento que tal
estado torna-se insustentável (sendo naturalmente melhor antes de
atingir tal estágio); quando a política urbana em vigor, acompanhada de
sua ideologia, se desestruturar e surgir a necessidade de recomposição
da sociedade sob a ótica da acumulação intensiva.
Bibliografia
DEÁK,
Csaba (1991) "Acumulação entravada no Brasil/ E a crise dos anos 80"
Espaço & Debates 32:32-46, republicado in Deák, Csaba e Schiffer,
Sueli (1999) O processo de urbanização no Brasil Edusp, São Paulo
DEÁK,
Csaba (2001) "The Partido dos Trabalhadores in São Paulo" Soundings
18:41-52
MARICATO,
Ermínia (2003) “Metrópole, legislação e desigualdade”. Estudos
Avançados 17 (48), 2003
SEMPLA
(2002) Plano Diretor 2002, São Paulo
1
"Acumulação entravada no Brasil/ E a crise dos anos 80", DEÁK (1991)