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Folha de S Paulo, 5 janeiro 2002:A3
TENDÊNCIAS/DEBATES

A Argentina dá mostras de caminhar para uma solução de sua crise?
 
As medidas anunciadas desde ontem mostram o governo [argentino] em busca desse delicado equilíbrio. O rumo geral é, claramente, o de distribuir perdas e, se possível, diluí-las no tempo.
Guilherme da Nóbrega
 

 
 NÃO

A fragilidade fiscal dificulta saídas
CARLOS EDUARDO CARVALHO

Um dos grandes obstáculos ao encaminhamento de soluções para a crise argentina é a persistente fragilidade fiscal que acompanha o país há décadas. Não são "dificuldades para zerar o déficit", mito a que se procurou reduzir o debate sobre finanças públicas nos últimos anos. O problema é mais amplo: o Estado tem baixa capacidade fiscal e financeira para atuar de modo contracíclico nas crises e para absorver e refinanciar os passivos gerados por crises cambiais em economias dependentes.

A receita do setor público é pequena, menos de 20% do PIB nos últimos anos (contra mais que 30% do PIB no Chile e no Brasil), e tende a cair com a desaceleração da atividade econômica, dado o peso exagerado dos impostos indiretos. É difícil obter receitas extraordinárias em momentos de crise: além da rigidez da estrutura tributária, as dimensões reduzidas do mercado financeiro doméstico dificultam a colocação de dívida adicional, a não ser por meios compulsórios. Resulta daí a tendência à imobilização do setor público nos momentos em que deveria se antecipar às crises.
A inusitada resistência da conversibilidade se explica em boa medida pela ausência de instrumentos que permitam ao setor público lidar com os violentos desequilíbrios financeiros que acompanham uma desvalorização. Além de sofrer perdas patrimoniais consideráveis, empresas e indivíduos que devem em dólares e têm receitas em pesos poderiam ser levados à inadimplência e arrastar o sistema bancário.

O problema não desapareceria com a "pesificação" prévia, a conversão compulsória dos contratos para pesos antes de flutuar o câmbio. Essa parece ser a proposta mais razoável e justa, pois eliminaria boa parte dos problemas imediatos das pessoas e das empresas pequenas e médias endividadas em dólar. Os problemas ficariam concentrados nos bancos e nas empresas endividadas no exterior. Também não seriam pequenos os riscos daí decorrentes.

A experiência das últimas décadas reafirmou que crises cambiais em economias dependentes tendem a ser acompanhadas por crises financeiras, cujo equacionamento demanda forte intervenção do Estado para arbitrar a assunção das perdas, estabilizar o sistema bancário e viabilizar a reciclagem dos passivos. Tudo isso requer capacidade fiscal e financeira do Estado.


 
 
 
 
 

 

A experiência brasileira é ilustrativa e sua análise ajuda a explicar por que foi difícil para os argentinos "fazer como o Brasil". No nosso caso, o regime cambial estava muito abalado em meados de 98 e a fuga generalizada a partir da crise russa ameaçava precipitar um desfecho dramático. Antes de desvalorizar, o Estado brasileiro ofereceu formas de proteção aos grandes investidores, aos bancos e às grandes empresas: o BC vendeu US$ 30 bilhões de suas reservas de agosto a setembro, o que permitiu a saída ordenada e a baixo custo dos mais afoitos; o Tesouro e o BC venderam US$ 60 bilhões de títulos indexados ao câmbio, comprados de início como "hedge" por quem devia em dólar e, nos momentos finais, por quem decidiu especular contra o Tesouro Nacional (boa parte dos superlucros dos bancos em 1999 veio daí, vale lembrar); e o BC operou no mercado futuro no auge da crise, o que transferiu mais US$ 4 bilhões para quem queria se proteger ou especular.

Quando o real caiu, a maior parte da dívida externa do setor privado estava protegida, os custos se transferiram para o setor público e quem especulou contra o Tesouro teve um belo lucro.

A experiência
brasileira

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Mas o problema ainda não estava equacionado. A dívida líquida total do setor público saltou de 34,5% do PIB, em dezembro de 97, para 42,6% do PIB, em dezembro de 98, e para pouco mais de 50% do PIB logo após a desvalorização. Era grande o risco de desconfiança crescente na solvência dos títulos públicos e, por extensão, na solidez do próprio sistema bancário, o que se evidenciou num princípio de pânico.

O governo reagiu com medidas drásticas para elevar a receita tributária e gerar um superávit primário de 3% a 3,5% do PIB, suficiente para conter o crescimento da dívida, garantir o pagamento dos juros e transferir ordenadamente os custos da desvalorização para a sociedade. Apesar do maior salto de endividamento público em prazo tão curto já visto no país, o governo manteve a imagem de campeão do equilíbrio fiscal.

A experiência brasileira oferece algumas referências para as dolorosas opções colocadas para a sociedade argentina. Além das medidas de curto prazo, difíceis e complexas, a saída consistente da crise exigirá ampla reforma fiscal. Não para "zerar o déficit", mas para capacitar o setor público a absorver os choques da economia. A natureza dessas medidas deve ser objeto de ampla discussão, até para impedir que sejam usadas apenas para socialização das perdas dos mais ricos, como no Brasil.


Carlos Eduardo Carvalho, 48, doutor em economia pela Unicamp, é professor da PUC-SP.
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