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840
.Dossiê |
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Versão
em html cd 04.11.20
MS,
1996
URBANIZAÇÃO
E AMBIENTE: APONTAMENTOS A RESPEITO DA DEVASTAÇÃO DO LITORAL
PAULISTA
Klára
Kaiser Mori
Os três
deuses que em A alma boa de Setsuan descem à terra, indagando
sobre a bondade intrínseca do homem, acabam retornando sem realizarem
seu intento. Nem poderia ser diferente, uma vez que esse supunha a avaliação
em termos absolutos de algo que só adquire significado -- porque
só pode se realizar -- como uma relação social.
Da mesma forma
que a busca daquela 'bondade em si' da peça de Brecht, a formação
de juízo pode se colocar como uma armadilha teórica para
sua própria realização. No que nos interessa aqui,
é o que se dá no mais das vezes quando seu foco é
o espaço urbano. Mas, se o enredo da peça citada conduz ao
impasse precisamente para que se ressalte a simplificação
indevida do propósito inicial dos deuses, uma vez que só
poderia conduzir às valorações alternativas 'otimista'
ou 'pessimista' da natureza humana, na avaliação da urbanização
essa questão parece nem se colocar. A cidade grande seria 'ruím
em si', com a causa de sua má qualidade residindo na própria
escala da urbanização.
Crescimento
urbano e qualidade ambiental
As imagens
acima procuram colocar em foco o núcleo de problemas constituído
pela degradação das áreas litorâneas paulistas
pelo uso balneário. A gravidade do quadro não escapa mesmo
ao observador mais desavisado: seu comprometimento alcançou uma
intensidade tal que pôs em risco não só a riqueza da
vida animal e vegetal dos mangues, rios, e do mar costeiro, mas até
mesmo os fatores em função dos quais os usos turístico
e de lazer se implantam aí. A degradação atingiu a
balneabilidade das praias, e o usufruto da paisagem privilegiada das zonas
costeiras.
Não
é, portanto, pela recusa das evidências de um real quadro
de destruição que as considerações a seguir
se afastam do tratamento direto da questão turística no litoral,
ou de um enfoque concentrado na especificidade biológica e paisagística
dessas áreas. O recuo se deve, sobretudo, à dificuldade de
se refletir, com mérito, sobre as consequências espaciais
de movimentos cujas causas se deixa mergulhadas na penumbra., e que, em
uma perspectiva ambientalista centrada no litoral, se configuram necessariamente
como fatores exógenos, impondo-se, ou precipitando-se sobre aquele
espaço como cataclismos, ou como as pragas do Egito. E como tais,
gerando situações perante as quais se as populações
locais não detêm condições de atuação,
e os melhores esforços dos naturalistas tampouco se mostram efetivos.
Apesar das inúmeras alertas, a destruição do litoral
pelo turismo prossegue em marcha acelerada.
O que procuro
fazer é, então, escolher um ponto de observação
a partir do qual, embora perdendo em nitidez quanto aos efeitos ambientais
propriamente ditos do uso balneário e turístico do litoral,
se possa ganhar, como contrapartida, uma visão mais ampla da lógica
subjacente às formas de apropriação daquele espaço.
E, consequentemente, a partir do qual as próprias atividades turísticas
e de lazer se revelem em sua dimensão histórica, como elementos
integrantes de um processo mais amplo – o da produção e reprodução
social nos moldes em que este se define hoje no Brasil.
Retornando
ao tema: o litoral brasileiro, e mais especificamente, o paulista, constitui
hoje, sem dúvida, um dos elementos de suporte mais significativos
das modalidades de lazer oferecidas ao enorme contingente da população
urbanizada de São Paulo. Concomitantemente à ampliação
paulatina dessa sua função, assiste-se a seu gradativo empobrecimento
ambiental. O fato parece confirmar, mais uma vez, uma colocação
que já se tornou lugar comum em certas análises do processo
de urbanização: a de que a degradação ambiental
seja corolário de um 'desenvolvimento' excessivo, exagerado ou descontrolado;
que este desenvolvimento tenha que ser visto com desconfiança e
, consequentemente, que só através do controle da escala
do processo de urbanização se poderia evitar o comprometimento
do patrimônio ambiental, seja nas cidades, seja nos ambientes 'naturais'
(como seria o caso, entre outros, do litoral).
Apenas para
exemplificar esse viés quantitativo do enfoque ambiental da urbanização:
um traço marcante da Resolução n. 001/86 do Conselho
Nacional do Meio Ambiente – CONAMA é o critério dimensional
adotado para selecionar os empreendimentos que venham a impor a realização
de Estudos de Impacto. Assim, se uma estrada de uma pista não implica
obrigatoriamente na feitura de um EIA/RIMA, uma de duas ou mais pistas
já o exige em princípio. Exigem-no também os projetos
de urbanização, mas só se acima de 100 hectares; usinas
de geração de eletricidade se superiores a 10 megawatts;
e sistemas de captação de água a partir de um volume
dado. Linhas de ônibus não o requerem, mas linhas de transporte
de alta capacidade precisam dele para sua aprovação.
O teor do Decreto
permite apontar um duplo equívoco no enfoque das transformações
esperadas em decorrência dos empreendimentos:
-
? o estabelecimento
de uma relação direta entre sua dimensão física
e seu impacto potencial, indiferente à gama infinita de variaçãoes
qualitativas possíveis dentro de um mesmo padrão de grandeza,
e desconsiderando, ao mesmo tempo, que o efeito conjunto de intervenções
de menor porte possa ultrapassar aqueles derivados de um único
empreendimento maior (1)
-
? o desvinculamento
entre o objetivo de um empreendimento e seu porte, levando a entender
que a avaliação do impacto de uma obra ou de um projeto possam
se dar de forma independente de demandas socio-econômicas configuradas
das quais constituem uma função. (2)
Acredito
que os dois aspectos acima, ao apontar o formalismo e as preconcepções
que guiaram, entre outros, o critério de seleção dos
empreendimentos sujeitos à realização de Estudos de
Impacto sejam suficientes para a pontar as dificuldades do ambientalismo
para avaliar o significado das intervenções no espaço.
Precisamente no sentido de romper essa forma viciada de crítica
? caracterizada pela concentração das atenções
em traços distintivos externos (dimensão, quantidade, e similares),
é que se impõe a adoção de uma perspectiva
capaz de abranger, junto com os objetos de análise propriamente
ditos, seus pressupostos econômico-sociais.
No caso aqui
tratado ? a avaliação do uso balneário do litoral,
essa análise deverá se voltar sobretudo a dois temas interligados,.
O primeiro seria a natureza das atividades compreendidas sob a designação
de lazer, e suas demandas de ordem espacial. O segundo, as características
predominantes da produção do espaço, e em particular,
dos espaços de lazer, dentro dos parâmetros estabelecidos
pelo desenvolvimento histórico e econômico do país.
Quanto ao entendimento
do lazer, assente-se, de antemão, que a principal função
dessa atividade sempre esteve ligada às necessidades de recuperação
de uma integridade da vida que a divisão social do trabalho, e o
consequente esfacelamento do fazer social fizeram perder. no entanto, uma
vez que a prática do lazer, à semelhança de todas
as demais atividades sociais, tem suas feições enraizadas
na estrutura socio-econômica em cujo âmbito se realiza, essa
estrutura define não apenas suas formas principais, mas também
sua relação com a totalidade do processo de produção
e reprodução social. Assim, no contexto capitalista, caracterizado
pela predominância da mercadorização da produção
dos valores de uso, em um movimento de envolvimento de âmbitos
cada vez mais abrangentes da vida, o lazer, embora por princípio
pretenda colocar-se à margem do mercado, é capturado por
esse mesmo mercado, ajustando-se, nas suas mais diversas formas, aos requisitos
da acumulação.Esse caráter paradoxal do lazer no modo
de produção capitalista se manifesta primordialmente, e de
forma mais contundente, no próprio fato de que apesar de (ou justamente
porque) tal atividade tenha por motivo, ou pretensão, a regeneração
de um sentido mais amplo da vida, sua realização implique
em uma ruptura obrigatória com o cotidiano. Ou seja, em sua própria
segregação espacial e temporal. Se já contraditória
em si, essa característica ainda se acentua com sua crescente absorção
pelo mercado, a cujos espaços e tempos mono-funcionais e culturalmente
empobrecidos (assegurados pelas áreas de lazer dos prédios,
dos condomínios,dos clubes e pelas próprias cidades, regiões
e países turísticos) só podem corresponder o simultâneo
esvaziamento e exasperação das práticas individuais
ou coletivas pretensamente 'livres'.(3)
O núcleo
do segundo tema acima indicado é a correlação entre
o estágio econômico de uma sociedade e as transformações
de seu espaço. Iniciemos afirmando que a variedade de formas de
uso e ocupação do solo correspondentes às diversas
atividades e funções sociais urbanas não se define
no âmbito próprio dessas: o espaço não é
um aglomerado amorfo de usos do solo justapostos. Tanto os pesos quanto
as dimensões e localizações respectivas destas funções
dependem do papel que desempenham no processo econômico-social, e
de seus padrões de desempenho, decorrentes do próprio estágio
de desenvolvimento econômico de cada país. Suas posições
só se alteram de forma congruente mediante a reavaliação
e reorientação das diretrizes do próprio projeto econômico-social
de uma formação.
É precisamente
nesse aspecto que a associação simplista que se faz no Brasil
entre progresso e degradação ambiental tem dificultado tanto
a formação de um juízo correto sobre a inserção
das diversas atividades de produção e reprodução
no espaço. Ela oculta que as formas de apropriação
territorial que correspondem às diversas práticas econômicas
e sociais são sempre datadas no tempo. E, sobretudo, que este tempo,
por mais prolongado que possa parecer, não ultrapassou, no caso
específico do Brasil, o primeiro momento ? extensivo ? da instauração
do processo de acumulação, tendo por traço espacial
predominante a imediatez da apropriação e o despojamento
sistemático, abrangente e contínuo do território,
e de seus recursos materiais.
São
os constrangimentos derivados do estágio de acumulação
extensivo vivido pelo país que se materializam, portanto, nas formas
vigentes de uso e ocupação do solo, ou, o que vem a dar no
mesmo, nos bloqueios interpostos à renovação dessas
formas. São estes constrangimentos que atuam, entre outros, na determinação
das condições de ocupação do litoral paulista
para a função lazer. Acredito que, embora indiretamente,
sua explicitação possa contribuir com alguns elementos para
um melhor delineamento dos contornos, e mesmo das diretrizes de ação
que tenham por foco o manejo das zonas litorâneas.
O processo
de urbanização e os bloqueios ao desenvolvimento do mercado
interno
A transformação
econômica pela qual o país passou em um período de
aproximadamente cinco décadas, alterou radicalmente seu padrão
de urbanização. A ampliação da escala de abrangência
das relações de assalariamento se concretizou através
de dois impulsos simultâneos: a industrialização, a
partir da região centro-sul, e a retomada paulatina de territórios
para formas capitalistas de produção na agricultura. Conduzindo,
de um lado, à centralização de capital em m número
limitado de polos urbanos, e, de outro, a um processo maciço de
expulsão da população do campo. Deslocando-se em levas
sucessivas aos poucos centros produtivos em expansão, os migrantes
garantiram, ao longo de todo esse período, o suprimento contínuo
de mão de obra às indústrias e ao setor de serviços
das nascentes aglomerações urbanas.
No entanto,
fatores históricos e sociais cuja abordagem não é
compatível com a pretensão destes apontamentos (4), impediram
o desenvolvimento pleno desse processo que, a partir da formação
das bases de um mercado nacional, conduzisse a sua paulatina ampliação.
Basta registrar que a política econômica do país (5),
ao manter este mercado em limites aquém de seu potencial de desenvolvimento,
bloqueou, simultaneamente, tanto os padrões de urbanização
e infra-estruturação do espaço produtivo, quanto a
política de assalariamento; pautando-se, consistentemente, por uma
limitação de seu escopo a um mínimo necessário
para a manutenção das condições vigentes de
produção e reprodução.
A perpetuação
dessas diretrizes econômicas, em que os padrões salariais
são contingenciados pelas flutuações e pelos níveis
de acirramento da competição do mercado internacional, e
onde as exportações são financiadas pela redução
dos investimentos produtivos no espaço interno, derivam, portanto,
de causas que se enraízam na própria formação
histórica do país. Entre suas resultantes espaciais
destaca-se a feição do conjunto das cidades brasileiras,
em sua grande parte carentes dos serviços básicos e das infra-estruturas
adequadas de habitação, transporte, saneamento, etc. É
nesse substrato espacial que se inscreve, entre outros, a função
lazer das grandes cidades brasileiras e, em particular, aquela do aglomerado
urbano de São Paulo. E, como de sua extensão, a forma de
lazer praticado na orla marítima dessa metrópole.
A função
lazer na Região Metropolitana de São Paulo
A Grande São
Paulo tem hoje uma população de aproximadamente 18 milhões
de habitantes, constituindo um dos maiores aglomerados urbanos do mundo.
Tendo sido formado em um ritmo acelerado, a cidade reflete, em suas dimensões
e em sua estrutura, o padrão acima referido do movimento de urbanização
que se realizou em escala nacional nos últimos cinquenta anos.
A cidade se
marca pela amplitude de suas discrepâncias internas. Sua área
central, melhor dotada de infra-estruturas e serviços, submerge
em um amplo território sub-urbanizado, carente até mesmo
dos requisitos mais elementares para o preenchimento ? que dizer, para
a melhor qualificação ? de suas funções no
processo urbano.
As condições
de sociabilidade, de lazer, de recreação, sejam das populações
recém-urbanizadas, do operariado urbano já estabelecido,
das classes médias urbanas, ou da elite dirigente de São
Paulo sempre se regularam, como não pode deixar de ser em qualquer
sociedade de classe, por seu peso específico na estrutura social.
Mas a conformação do espaço a estas funções
específicas tendo se dado, como vimos, de forma ajustada às
diretrizes econômicas globais da sociedade brasileira, não
é preciso muito argumento para provar que seu atendimento nunca
chegou a assumir um papel de peso no desenho urbano.
De fato, ao
longo do processo de crescimento da cidade, o Estado assumiu o mínimo
possível dos custos referentes à implementação
de espaços e equipamentos destinados ao lazer, deixando substancialmente
a cargo do mercado o seu atendimento. Que, por sua vez, só poderia
realizá-los através de redes seletivas, reguladas pela capacidade
financeira dos diversos segmentos de sua população-alvo.
Quanto às
formas de lazer daquelas camadas assalariadas ou sub-assalariadas pelas
quais o mercado não tinha interesse, elas se deram, necessariamente,
à margem do mercado. Do ponto de vista territorial isso significava,
literalmente, a apropriação das sobras e dos interstícios
inaproveitados da malha urbana, já deixando antever sua própria
fragilidade como sistema de lazer. Com a expansão contínua
da mancha de urbanização, não só essas brechas
do lazer informal, mas mesmo aquelas áreas dotadas de um potencial
natural para constituírem a base de estruturas mais significativas
e abrangentes de recreação, foram sendo paulatinamente comprometidas.
Entre elas, as várzeas dos rios Tietê e Pinheiros, com o leito
de ambos transformado em esgoto de uma cidade sem redes de coleta. Seguiu-se-lhes,
ao longo do tempo, a destruição de toda a rica rede de rios
e riachos tributários daqueles dois cursos maiores.(6)
Não
se quer dizer aqui que não tivesse havido propostas para o atendimento
da função lazer numa escal adequada ao porte da cidade. Apenas
para exemplificar, o Plano Urbanístico Básico propôs,
ainda no final da década de 60, a concepção e utilização
das amplas manchas florestadas das regiões serranas da Cantareira,
e as bacias de captação envoltórias da rede de abastecimento
de água da Região Metropolitana (notadamente o espaço
em volta das represas Guarapiranga e Billings) como as peças-chave
de um sistema de lazer metropolitano dotado de equipamentos de suporte
adequados às atividades preconizadas. No entanto, o projeto teve
um encaminhamentos jurídico-administrativo que acabou na letra morta
da Lei de Proteção aos Mananciais.(7) Outro projeto
de grande escala que praticamente não saiu do papel foi o Parque
Ecológico do Tietê, elaborado na década de 70. As opções
de lazer extensivo dos paulistanos reduzem-se, dessa forma, à meia
dúzia de seus parques públicos de certo porte: o Ibirapuera,
o Horto, o Parque do Carmo, o Parque da Água Branca, e os Jardins
Botânico e Zoológico. E, diga-se de passagem, não é
pela fragilidade de seus ecossistemas que a manutenção desses
espaços sbarra em dificuldades crescentes, mas pelo mero acanhamento
de sua dimensão física face ao volume de seus usuários.
As preocupações
do setor público referentes a um atendimentos das demandas por espaços
de lazer de contingentes mais amplos da população se manifestaram,
ainda, através da legislação de parcelamentos do solo,
assegurando a destinação de uma parcela determinada da área
de qualquer gleba loteada a esta função. O conjunto dessas
áreas doadas compõe parte significativa do sistema de áreas
verdes públicas da cidade. Quanto a isso, cabem duas observações
apenas. A primeira se refere à distância que separa a figura
jurídica de 'áreas verdes' da efetiva implantação
de espaços de lazer. A segunda, sua diminuição gradativa
devido à continuidade de um processo irregular de sua conversão
em espaço habitacional. Com boa probabilidade de acerto, as favelas
localizadas na Região Metropolitana podem ser encontradas na rede
desses espaços de lazer.(8)
Mas, se não
se criou um sistema de lazer ajustado ao porte da Cidade, as praias litorâneas,
localizadas a distâncias que permitem sua utilização
mesmo com periodicidade semanal, oferecem-lhe, há muito tempo, uma
alternativa adequada. Desde a inauguração da via Anchieta,
ainda na década de 40, a população paulistana se utiliza,
com intensidade crescente, das possibilidades de lazer asseguradas pela
zona paraiana. De carro, de ônibus de linha, ou de ônibus fretado
(mas jamais de trem, porque impossível, embora haja duas linhas
de estrada de ferro interligando São Paulo e Santos); carregando
pranchas de surfe, bicicletas, crianças e farnel de mantimentos,
em torno de 3 milhões de pessoas descem ao litoral em cada fim de
semana prolongado, ou mesmo apenas ensolarado. Muitos, para retornar no
mesmo dia: são os 'farofeiros', aqueles cuja renda não permite
o pagamento sequer de uma noite de hospedagem.
Hoje, da mesma
forma que o complexo industrial-portuário da Baixada constitui uma
mesma unidade econômica e espacial com o Planalto paulistano, as
zonas balneárias do litoral são a área de lazer por
excelência da cidade de São Paulo. Trata-se, efetivamente,
de um espaço único, interligado pela multiplicidade das trocas
entre o Planalto e a Baixada.
As formas
de implementação do uso lazer no Litoral paulista
A qualificação
do projeto de lazer implantado na região litorânea de
São Paulo constitui uma tarefa extremamente simples, para não
dizer simplória. Esgota-se, em sua quase totalidade, na abertura
de loteamentos voltados à construção de residências
secundárias.
Os loteamentos
para uso balneário se iniciaram, a rigor, ainda na década
de 40, aumentando algo timidamente no decênio seguinte. No entanto,
com a abertura e/ou o melhoramento de novas vias de acesso (como Imigrantes,
Rodovia dos Tamoios, Mogi-Bertioga), o processo se acelerou e se ampliou
cada vez mais. Na Baixada, a dispersão da população
se apoia na estrada litorênea BR 101, que interliga os pontos extremos
do Litoral paulista, de Norte a Sul.
Completando
a infra-estrutura de lazer e turismo da área, existe, embora em
escala bastante reduzida, e com preços proibitivos para parte significativa
da população, uma rede hoteleira, além de diversas
áreas de camping, distribuídos ao longo dos diversos municípios
litorâneos, e alguns albergues, mantidos por empresas e entidades
diversas para o uso exclusivo de seus funcionários. Entretanto,
a esmagadora maioria das possibilidades de permanência se apoia no
parcelamento de propriedades fundiárias para a construção
de residências de veraneio. Mais ou menos sofisticados, compondo
conjuntos diversificados no porte, no padrão, nas formas de ocupação
da área e nas restrições de acesso a foreiros; em
lotes urbanizados ou simplesmente demarcados; com água, esgoto e
vias asfaltadas, ou carentes de qualquer infra-estrutura; os loteamentos
de veraneio constituem, efetivamente, a marca predominante da apropriação
do Litoral.
Aspectos
econômicos e institucionais da oferta de lazer no Litoral de São
Paulo
Vimos que no
processo de caracterização funcional das diversas porções
do espaço envoltório da metrópole paulistana, parcelas
crescentes de sua área litorânea vêm sendo paulatinamente
comprometidos com a função lazer. O que não explicitamos
ainda, numa análise mais próxima das áreas-suporte
dessa função, que forças atuam no próprio espaço
litorâneo no sentido de propriciar essa conversão. Assinalando
desde já que sua lógica é, no mínimo, estreita:
no período relativamente curto decorrido desde sua 'abertura', a
área já mostra sinais de esgotamento de sua capacidade de
atendimento da referida função. Não só porque
o comprometimento da totalidade das áreas com os loteamentos residaenciais
está em nítido desacordo com as possibilidades de sua própria
manuntenção/reprodução enquanto atividades
lucrativas; a própria forma adotada é contraditória
com o potencial de demande de lazer representado por uma população
da ordem de grandeza de São Paulo. (O paralelo grotesco que ocorre
é o de imaginar loteadas as montanhas onde os europeus praticam
esportes de inverno. Que possibilidades haveria para a sustentação
econômica lucrativa dessa forma de uso dos campos de esqui dos Alpes?)
Acredito que
dois fatores básicos se conjugam para a determinação
da forma predominante de oferta de lazer na área litorânea.
O primeiro deriva da estrutura político-institucional do país;
o segundo, de seu padrão de distribuição de renda.
Quanto ao primeiro,
por ser impeditivo de um processo de planejamento físico-territorial
efetivo. Não só pela insegurança orçamentária,
que, devido às múltiplas superposições entre
as diversas esferas do poder, e a relegação de responsabilidades
sempre contingencia os investimentos produtivos no espaço; contribuem,
também, para seu bloqueio a manutenção e ampliação
do esfacelamento jurídico-administrativo do espaço, assegurando
autonomia plena para cada governo local definir os usos do solo de seu
próprio âmbito.
Iniciando esse
questionamento pelos aspectos locais: como criar e administrar de forma
coesa um espaço único, se do ponto de vista político
ele se desintegra em um sem número de municípios, como se
constituíssem unidades econômicas e políticas autônomas?
Qual é, por sua vez, a autonomia econômica e política
possível dos municípios balneários do litoral? Tomando
como exemplo a recém-criada Bertioga: de que fontes provirá
a verba necessária para sua mera manutenção? Quais
as usas possibilidades produtivas, a não ser aquelas voltadas ao
turismo? E de que forma o município poderá implementar a
referida atividade? (9)
Mas não
se trata apenas disso. A união administrativa dos municípios
litorâneos, ou mesmo sua vinculação por meio de uma
atividade ordenadora única (como um plano de manejo litorâneo,
por exemplo), ainda não responderiam de forma adequada ao desafio
da realidade a não ser assumindo a necessidade de revisão
da pseudo-autonomia, uma vez que a Região Metropolitana de São
Paulo e seu litoral constituem um único espaço, cuja apropriação
para os diversos usos dever se guiar por uma intenção ordenadora
única, e por um plano de investimentos ajustado às necessidades
dos usos já implantados e os que devam se implantar.(10)
O segundo
fator na determinação das formas vigentes de ocupação
balneária do litoral se liga, em última instância,
ao próprio padrão de distribuição de renda
vigente no país.(11)
Relembrando
que as atividades de lazer, capturadas pelo mercado, têm sua estrutura
determinada por esse mesmo mercado, fica evidente que a implementação
de qualquer projeto turístico ou de lazer só se torna viável
se compensar economicamento o capital investido em sua oferta. Ora, o custo
de implantação de uma infra-estrutura urbana efetiva, abrangente,
e ajustada a uma demanda de massa, pelo capital envolvido, obrigatoriamente
se vincularia ao setor público da economia. Que não a realiza,
porque, como já se apontou acima, o projeto econômico brasileiro
sistematicamente tem dado costas à viabilização de
seu mercado interno, e porque no estágio predominantemente extensivo
de acumulação que caracteriza a economia brasileira, nem
o padrão de vida da população, nem a qualidade do
espaço constituem requisitos da produção. Na
ausência de um projeto de lazer/turismo de massa, a implantação
das infra-estruturas urbanas do litoral se dá assim apenas de forma
circunscrita, financiada pelo setor empresarial, e tendo como condição
a compatibilidade entre a renda de seus clientes e o preço da mercadoria
produzida.(12) Atendida a população de renda alta,
a qualidade dos serviços de turismo tem retorno econômico
garantido apenas a custos relativamente baixos.
No entanto,
como vimos, a exploração balneária do litoral se impõe
de modo crescente, como a forma prioritária de lazer possível
das camadas de classe média urbanizada. É a essa demanda
crescente que respondem os loteamentos para a construção
de casas de veraneio. São, de fato, a solução perfeita:
-
asseguram à
população demandatária a opprtunidade de uma forma
de lazer através de uma residência secundária (que,
além de seu valor de uso, não deixa de ser também
um investimento interessante em tempos de crise ou estagnação);
-
aos loteadores,
garantem um lucro certo sem nenhum compromisso ou ônus futuro;
-
por fim, para
as prefeituras litorâneas, elas asseguram a certeza das taxas e dos
impostos predial e territorial., a fonte básica de suas receitas.(13)
O círculo
se fecha aqui. E para sua ruptura não bastam as alertas dos preservacionistas
sobre as fragilidades do meio litorâneo, nem seus esforços
para barrar a escalada crescente das aagressões à paisagem,
através da contínua ampliação das áreas
a serem protegidas por legislação específica. Tampouco
seus murros em ponta de faca nos confrontos com as prefeituras e as incorporadoras
e empresas imobiliárias. Não é suficiente, tampouco,
o empenho e mesmo o apoio político e técnico de administrações
locais efetivamente imbuídas de uma vontade de corrigir descalabros.
Acredito que as transformações necessárias possam
e devam se apoiar no conjunto dessas atividades, mas de fato só
serão viabilizadas através da reorientação
da forma de ocupação do litoral, dentro de uma concepção
de política urbana compatível com as demandas econômico-sociais
do país. Neste quadro novo, a área litorânea, como
integrante do próprio espaço urbano brasileiro, conduziria
à elaboração de projetos que a adequassem à
ampla diversidade e riqueza de usos que potencialmente representa, e à
realização de investimentos comprometidos com sua efetiva
implantação.
Notas
1 Trata-se do efeito comparativo,
por exemplo, de um conjunto habitacional de 100ha com dez, cem ou mil loteamentos
menores.
2 Uma boa prova do absurdo
dessa tese pode ser dada por São Paulo, onde é precisamente
o desajuste entre a oferta e demanda de transporte de massa que produz
alguns dos impactos mais graves ao ambiente urbano, e não sua implementação.
Considere-sem a esse respeito, os bloqueios da rede viária, o comprometimento
de uma série de funções urbanas, a poluição
atmosférica derivada da crescente utilização do transporte
individual, etc. Ela serve, no entanto, para evidenciar o preconceito implícito
da abordagem ambientalista em relação ao crescimento urbano.
3 Visando a libertação
das imposições imediatas das relações de trabalho
estabelecidas no mercado, a faceta mais marcante de muitas formas atuais
de lazer é a estanqueidade protetora, a negação intencional
de referenciais nas formas de apropriação do espaço
e do tempo ? ainda que logo seguidas de frustração e de agressividade.
4 Ver, no entanto, nota 5,
abaixo.
5 Desde as suas primeiras abordagens
cepalinas até o presente, um volume significativo de estudos se
voltou ao tema, formulando diversas hipóteses para sua interpretação.
Entre elas se distinguem duas linhas básicas: a primeira, que a
atribui de modo marcante à forma de inserção do país
na economia mundial (ou seja, sua dominação econômica),
e uma segunda, que assinala o caráter determinante, no delineamento
destas condições, da política econômica do próprio
Brasil, determinada por sua elite dirigente. As colocações
deste trabalho se pautam nesta segunda linha, defendida, entre outros,
por Florestan Fernandes, ao assinalar o caráter associado da burguesia
nacional aos interesses dos centros de acumulação mundial,
ou a ausência de conflitos entre os dois; ou por Csaba Deák
que, em trabalhos recentes se referiu ao caráter entravado da acumulação
no país, por essa mesma elite.
6 O desaparecimento quase completo
do assim chamado futebol 'de várzea' ilustra bem as diversas
facetas do quadro. A expressão, cunhada para designar o jogo praticado
maciçamente às margens desocupadas dos rios, além
da referência locacional carrega, claramente, uma conotação
depreciativa, devido ao caráter popular, de baixo padrão
econômico-social de seus frequentadores. Com o crescimento físico
da cidade esse setor seria o primeiro a ser atingido.
7 Esta, embora continuava a
afiançar teoricamente a manutenção e mesmo o privilegiamento
daquele uso, não só deixou a questão à margem
de qualquer projeto de investimento, como inviabilizou, pela própria
concepção do manejo das áreas, qualquer possibilidade
concreta de sua utilização como zona de lazer de contingentes
mais significativos da população. Observe-se, em primeiro
lugar que de acordo com as propostas contidas naquela lei, se nas áreas
de segunda categoria, pela estrutura de propriedades implicada na garantia
de baixo adensamento, os espaços de lazer potencial só atenderiam
ao reduzido contingente dos proprietários dos lotes, a compatibilização
entre as funções primordiais das zonas de primeira categoria:
de proteção ciliar na envoltória das próprias
represas, e a função lazer só teria sido possível
desde que acompanhado de um conjunto amplo de investimentos voltados a
sua adequação. Entre elas, a garantia de acessibilidade e
a implantação das infra-estruturas e equipamentos de apoio,
precedidas da própria concepção programática
e formal das áreas de lazer abstratamente contempladas naquele documento
legal.
8 A inexistência de uma
efetiva política urbana voltada à homogeneização
do espaço, e as consequentes disparidades entre os preços
das localizações geraram o conhecido movimento centrífugo
da população de baixa renda da cidade. Assinalados os limites
da periferização até mesmo por sua impraticabilidade
física (devido às distâncias crescentes), ela gerou,
por sua vez, o seu contra-movimento, através da crescente formação
de favelas. Localizando-se nas áreas desocupadas do tecido urbano,
estes assentamentos irregulares comprometeram boa parte das áreas
verdes públicas de Sâo Paulo.
9 Um parêntesis aqui:
as intenções de preservação da chamada 'identidade
cultural dos caiçaras' são incompatíveis com a incorporação
da extensão litorânea ao espaço urbano de São
Paulo. A integração do litoral paulistano (e nacional) ao
espaço do mercado significa, precisamente, a extinção,
nesses territórios, das condições de economia de subsistência,
base da referida identidade cultural. Aspectos diversos de suas práticas
culturais podem sobreviver, embora transformados, se puderem ser incorporados
à nova base econômica em que as comunidades caiçaras
se integrarem. Mas, ainda que a violência inerente a sua incorporação
ao mercado continue a mesmo. existem, me parece, diferenças significativas
entre a exploração dos caiçaras em subempregos nos
diversos loteamentos, e a viabilização de seu trabalho em
unidades economicamente rentáveis de pesca, de criação
e industrialização de algas, ou outros afazeres, O que não
pode ser sustentada, no entanto, a não ser por ingenuidade ou má
fé, é que se possa preservar sua cultura quando, simultaneamente
se expropria a base espacial de sua sobrevivência.
10 Quando então, e só
então, as decisões a respeito de seu agenciamento, se centralizado
ou descentralizado, transformar-se-iam no que de fato deveriam ser: decisões
técnicas a se ajustarem às competências, potencialisdades,
funções e capacidades dos diversos órgãos administrativos
envolvidos.
11 Que, modelado pelo projeto
econômico dominante, se de um lado bloqueia os investimentos no espaço
nacional, de outro limita as demandas sociais ao mínimo suportável.
12 Essa faixa de consumidores,
sabemos, é limitada, e é provável que esteja de fato
atendida de acordo com seu padrão (tendo a Riviera de São
Lourenço de Bertioga como seu exemplo mais notório).
13 As taxas e impostos, embora
altos, não serão jamais suficientes para uma efetiva infra-estruturação
das áreas já urbanizadas, menos ainda para a ampliação
das redes de água, esgoto, abastecimento, a não ser que se
tornem proibitivas para parte significativa da clientela. Assim, sua função
precípua é assegurar a estabilidade do esquema, e mesmo sua
ampliação através de novos processos de 'emancipação'
municipal.
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