.AUP 840
.Dossiê

Versão em html cd 04.11.20
MS, 1996
URBANIZAÇÃO E AMBIENTE: APONTAMENTOS A RESPEITO DA DEVASTAÇÃO DO LITORAL PAULISTA
Klára  Kaiser Mori
 

Os três deuses que em A alma boa de Setsuan descem à terra, indagando sobre a bondade intrínseca do homem, acabam retornando sem realizarem seu intento. Nem poderia ser diferente, uma vez que esse supunha a avaliação em termos absolutos de algo que só adquire significado -- porque só pode se realizar -- como uma relação social. 

Da mesma forma que a busca daquela 'bondade em si' da peça de Brecht, a formação de juízo pode se colocar como uma armadilha teórica para sua própria realização. No que nos interessa aqui, é o que se dá no mais das vezes quando seu foco é o espaço urbano. Mas, se o enredo da peça citada conduz ao impasse precisamente para que se ressalte a simplificação indevida do propósito inicial dos deuses, uma vez que só poderia conduzir às valorações alternativas 'otimista' ou 'pessimista' da natureza humana, na avaliação da urbanização essa questão parece nem se colocar. A cidade grande seria 'ruím em si', com a causa de sua má qualidade residindo na própria escala da urbanização.

Crescimento urbano e qualidade ambiental

As  imagens acima procuram colocar em foco o núcleo de problemas constituído pela degradação das áreas litorâneas paulistas pelo uso balneário. A gravidade do quadro não escapa mesmo ao observador mais desavisado: seu comprometimento alcançou uma intensidade tal que pôs em risco não só a riqueza da vida animal e vegetal dos mangues, rios, e do mar costeiro, mas até mesmo os fatores em função dos quais os usos turístico e de lazer se implantam aí. A degradação atingiu a balneabilidade das praias, e o usufruto da paisagem privilegiada das zonas costeiras.

Não é, portanto, pela recusa das evidências de um real quadro de destruição que as considerações a seguir se afastam do tratamento direto da questão turística no litoral, ou de um enfoque concentrado na especificidade biológica e paisagística dessas áreas. O recuo se deve, sobretudo, à dificuldade de se refletir, com mérito, sobre as consequências espaciais de movimentos cujas causas se deixa mergulhadas na penumbra., e que, em uma perspectiva ambientalista centrada no litoral, se configuram necessariamente como fatores exógenos, impondo-se, ou precipitando-se sobre aquele espaço como cataclismos, ou como as pragas do Egito. E como tais, gerando situações perante as quais se as populações locais não detêm condições de atuação, e os melhores esforços dos naturalistas tampouco se mostram efetivos. Apesar das inúmeras alertas, a destruição do litoral pelo turismo prossegue em marcha acelerada. 

O que procuro fazer é, então, escolher um ponto de observação a partir do qual, embora perdendo em nitidez quanto aos efeitos ambientais propriamente ditos do uso balneário e turístico do litoral, se possa ganhar, como contrapartida, uma visão mais ampla da lógica subjacente às formas de apropriação daquele espaço. E, consequentemente, a partir do qual as próprias atividades turísticas e de lazer se revelem em sua dimensão histórica, como elementos integrantes de um processo mais amplo – o da produção e reprodução social nos moldes em que este se define hoje no Brasil.

Retornando ao tema: o litoral brasileiro, e mais especificamente, o paulista, constitui hoje, sem dúvida, um dos elementos de suporte mais significativos das modalidades de lazer oferecidas ao enorme contingente da população urbanizada de São Paulo. Concomitantemente à ampliação paulatina dessa sua função, assiste-se a seu gradativo empobrecimento ambiental. O fato parece confirmar, mais uma vez, uma colocação que já se tornou lugar comum em certas análises do processo de urbanização: a de que a degradação ambiental seja corolário de um 'desenvolvimento' excessivo, exagerado ou descontrolado; que este desenvolvimento tenha que ser visto com desconfiança e , consequentemente, que só através do controle da escala do processo de urbanização se poderia evitar o comprometimento do patrimônio ambiental, seja nas cidades, seja nos ambientes 'naturais' (como seria o caso, entre outros, do litoral).

Apenas para exemplificar esse viés quantitativo do enfoque ambiental da urbanização: um traço marcante da Resolução n. 001/86 do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA é o critério dimensional adotado para selecionar os empreendimentos que venham a impor a realização de Estudos de Impacto. Assim, se uma estrada de uma pista não implica obrigatoriamente na feitura de um EIA/RIMA, uma de duas ou mais pistas já o exige em princípio. Exigem-no também os projetos de urbanização, mas só se acima de 100 hectares; usinas de geração de eletricidade se superiores a 10 megawatts; e sistemas de captação de água a partir de um volume dado. Linhas de ônibus não o requerem, mas linhas de transporte de alta capacidade precisam dele para sua aprovação.

O teor do Decreto permite apontar um duplo equívoco no enfoque das transformações esperadas em decorrência dos empreendimentos:

  • ? o estabelecimento de uma relação direta entre sua dimensão física e seu impacto potencial, indiferente à gama infinita de variaçãoes qualitativas possíveis dentro de um mesmo padrão de grandeza, e desconsiderando, ao mesmo tempo, que o efeito conjunto de intervenções de menor porte possa ultrapassar  aqueles derivados de um único empreendimento maior (1)
  • ? o desvinculamento entre o objetivo de um empreendimento e seu porte,  levando a entender que a avaliação do impacto de uma obra ou de um projeto possam se dar de forma independente de demandas socio-econômicas configuradas das quais constituem uma função. (2)


Acredito que os dois aspectos acima, ao apontar o formalismo e as preconcepções que guiaram, entre outros, o critério de seleção dos empreendimentos sujeitos à realização de Estudos de Impacto sejam suficientes para a pontar as dificuldades do ambientalismo para avaliar o significado das intervenções no espaço. Precisamente no sentido de romper essa forma viciada de crítica ? caracterizada pela concentração das atenções em traços distintivos externos (dimensão, quantidade, e similares), é que se impõe a adoção de uma perspectiva capaz de abranger, junto com os objetos de análise propriamente ditos, seus pressupostos econômico-sociais.

No caso aqui tratado ? a avaliação do uso balneário do litoral, essa análise deverá se voltar sobretudo a dois temas interligados,. O primeiro seria a natureza das atividades compreendidas sob a designação de lazer, e suas demandas de ordem espacial. O segundo, as características predominantes da produção do espaço, e em particular, dos espaços de lazer, dentro dos parâmetros estabelecidos pelo desenvolvimento histórico e econômico do país.

Quanto ao entendimento do lazer, assente-se, de antemão, que a principal função dessa atividade sempre esteve ligada às necessidades de recuperação de uma integridade da vida que a divisão social do trabalho, e o consequente esfacelamento do fazer social fizeram perder. no entanto, uma vez que a prática do lazer, à semelhança de todas as demais atividades sociais, tem suas feições enraizadas na estrutura socio-econômica em cujo âmbito se realiza, essa estrutura define não apenas suas formas principais, mas também sua relação com a totalidade do processo de produção e reprodução social. Assim, no contexto capitalista, caracterizado pela predominância da mercadorização da produção dos valores de uso,  em um movimento de envolvimento de âmbitos cada vez mais abrangentes da vida, o lazer, embora por princípio pretenda colocar-se à margem do mercado, é capturado por esse mesmo mercado, ajustando-se, nas suas mais diversas formas, aos requisitos da acumulação.Esse caráter paradoxal do lazer no modo de produção capitalista se manifesta primordialmente, e de forma mais contundente, no próprio fato de que apesar de (ou justamente porque) tal atividade tenha por motivo, ou pretensão, a regeneração de um sentido mais amplo da vida, sua realização implique em uma ruptura obrigatória com o cotidiano. Ou seja, em sua própria segregação espacial e temporal. Se já contraditória em si, essa característica ainda se acentua com sua crescente absorção pelo mercado, a cujos espaços e tempos mono-funcionais e culturalmente empobrecidos (assegurados pelas áreas de lazer dos prédios, dos condomínios,dos clubes e pelas próprias cidades, regiões e países turísticos) só podem corresponder o simultâneo esvaziamento e exasperação das práticas individuais ou coletivas pretensamente 'livres'.(3)

O núcleo do segundo tema acima indicado é a correlação entre o estágio econômico de uma sociedade e as transformações de seu espaço. Iniciemos afirmando que a variedade de formas de uso e ocupação do solo correspondentes às diversas atividades e funções sociais urbanas não se define no âmbito próprio dessas: o espaço não é um aglomerado amorfo de usos do solo justapostos. Tanto os pesos quanto as dimensões e localizações respectivas destas funções dependem do papel que desempenham no processo econômico-social, e de seus padrões de desempenho, decorrentes do próprio estágio de desenvolvimento econômico de cada país. Suas posições  só se alteram de forma congruente mediante a reavaliação e reorientação das diretrizes do próprio projeto econômico-social de uma formação.

É precisamente nesse aspecto que a associação simplista que se faz no Brasil entre progresso e degradação ambiental tem dificultado tanto a formação de um juízo correto sobre a inserção das diversas atividades de produção e reprodução no espaço. Ela oculta que as formas de apropriação territorial que correspondem às diversas práticas econômicas e sociais são sempre datadas no tempo. E, sobretudo, que este tempo, por mais prolongado que possa parecer, não ultrapassou, no caso específico do Brasil, o primeiro momento ? extensivo ? da instauração do processo de acumulação, tendo por traço espacial predominante a imediatez da apropriação e o despojamento sistemático, abrangente e contínuo do território, e de seus recursos materiais.

São os constrangimentos derivados do estágio de acumulação extensivo vivido pelo país que se materializam, portanto, nas formas vigentes de uso e ocupação do solo, ou, o que vem a dar no mesmo, nos bloqueios interpostos à renovação dessas formas. São estes constrangimentos que atuam, entre outros, na determinação das condições de ocupação do litoral paulista para a função lazer. Acredito que, embora indiretamente, sua explicitação possa contribuir com alguns elementos para um melhor delineamento dos contornos, e mesmo das diretrizes de ação que tenham por foco o manejo das zonas litorâneas.

O processo de urbanização e os bloqueios ao desenvolvimento do mercado interno

A transformação econômica pela qual o país passou em um período de aproximadamente cinco décadas, alterou radicalmente seu padrão de urbanização. A ampliação da escala de abrangência das relações de assalariamento se concretizou através de dois impulsos simultâneos: a industrialização, a partir da região centro-sul, e a retomada paulatina de territórios para formas capitalistas de produção na agricultura. Conduzindo, de um lado, à centralização de capital em m número limitado de polos urbanos, e, de outro, a um processo maciço de expulsão da população do campo. Deslocando-se em levas sucessivas aos poucos centros produtivos em expansão, os migrantes garantiram, ao longo de todo esse período, o suprimento contínuo de mão de obra às indústrias e ao setor de serviços das nascentes aglomerações urbanas.

No entanto, fatores históricos e sociais cuja abordagem não é compatível com a pretensão destes apontamentos (4), impediram o desenvolvimento pleno desse processo que, a partir da formação das bases de um mercado nacional, conduzisse a sua paulatina ampliação. Basta registrar que a política econômica do país (5), ao manter este mercado em limites aquém de seu potencial de desenvolvimento, bloqueou, simultaneamente, tanto os padrões de urbanização e infra-estruturação do espaço produtivo, quanto a política de assalariamento; pautando-se, consistentemente, por uma limitação de seu escopo a um mínimo necessário para a manutenção das condições vigentes de produção e reprodução.

A perpetuação dessas diretrizes econômicas, em que os padrões salariais são contingenciados pelas flutuações e pelos níveis de acirramento da competição do mercado internacional, e onde as exportações são financiadas pela redução dos investimentos produtivos no espaço interno, derivam, portanto, de causas que se enraízam na própria formação histórica do país.  Entre suas resultantes espaciais destaca-se a feição do conjunto das cidades brasileiras, em sua grande parte carentes dos serviços básicos e das infra-estruturas adequadas de habitação, transporte, saneamento, etc. É nesse substrato espacial que se inscreve, entre outros, a função lazer das grandes cidades brasileiras e, em particular, aquela do aglomerado urbano de São Paulo. E, como de sua extensão, a forma de lazer praticado na orla marítima dessa metrópole.

A função lazer na Região Metropolitana de São Paulo

A Grande São Paulo tem hoje uma população de aproximadamente 18 milhões de habitantes, constituindo um dos maiores aglomerados urbanos do mundo. Tendo sido formado em um ritmo acelerado, a cidade reflete, em suas dimensões e em sua estrutura, o padrão acima referido do movimento de urbanização que se realizou em escala nacional nos últimos cinquenta anos. 

A cidade se marca pela amplitude de suas discrepâncias internas. Sua área central, melhor dotada de infra-estruturas e serviços, submerge em um amplo território sub-urbanizado, carente até mesmo dos requisitos mais elementares para o preenchimento ? que dizer, para a melhor qualificação ? de suas funções no processo urbano.

As condições de sociabilidade, de lazer, de recreação, sejam das populações recém-urbanizadas, do operariado urbano já estabelecido, das classes médias urbanas, ou da elite dirigente de São Paulo sempre se regularam, como não pode deixar de ser em qualquer sociedade de classe, por seu peso específico na estrutura social.  Mas a conformação do espaço a estas funções específicas tendo se dado, como vimos, de forma ajustada às diretrizes econômicas globais da sociedade brasileira, não é preciso muito argumento para provar que seu atendimento nunca chegou a assumir um papel de peso no desenho urbano.

De fato, ao longo do processo de crescimento da cidade, o Estado assumiu o mínimo possível dos custos referentes à implementação de espaços e equipamentos destinados ao lazer, deixando substancialmente a cargo do mercado o seu atendimento. Que, por sua vez, só poderia realizá-los através de redes seletivas, reguladas pela capacidade financeira dos diversos segmentos de sua população-alvo.

Quanto às formas de lazer daquelas camadas assalariadas ou sub-assalariadas pelas quais o mercado não tinha interesse, elas se deram, necessariamente, à margem do mercado. Do ponto de vista territorial isso significava, literalmente, a apropriação das sobras e dos interstícios inaproveitados da malha urbana, já deixando antever sua própria fragilidade como sistema de lazer. Com a expansão contínua da mancha de urbanização, não só essas brechas do lazer informal, mas mesmo aquelas áreas dotadas de um potencial natural para constituírem a base de estruturas mais significativas e abrangentes de recreação, foram sendo paulatinamente comprometidas. Entre elas, as várzeas dos rios Tietê e Pinheiros, com o leito de ambos transformado em esgoto de uma cidade sem redes de coleta. Seguiu-se-lhes, ao longo do tempo, a destruição de toda a rica rede de rios e riachos tributários daqueles dois cursos maiores.(6) 

Não se quer dizer aqui que não tivesse havido propostas para o atendimento da função lazer numa escal adequada ao porte da cidade. Apenas para exemplificar, o Plano Urbanístico Básico propôs, ainda no final da década de 60, a concepção e utilização das amplas manchas florestadas das regiões serranas da Cantareira, e as bacias de captação envoltórias da rede de abastecimento de água da Região Metropolitana (notadamente o espaço em volta das represas Guarapiranga e Billings) como as peças-chave de um sistema de lazer metropolitano dotado de equipamentos de suporte adequados às atividades preconizadas. No entanto, o projeto teve um encaminhamentos jurídico-administrativo que acabou na letra morta da Lei de Proteção aos Mananciais.(7)  Outro projeto de grande escala que praticamente não saiu do papel foi o Parque Ecológico do Tietê, elaborado na década de 70. As opções de lazer extensivo dos paulistanos reduzem-se, dessa forma, à meia dúzia de seus parques públicos de certo porte: o Ibirapuera, o Horto, o Parque do Carmo, o Parque da Água Branca, e os Jardins Botânico e Zoológico. E, diga-se de passagem, não é pela fragilidade de seus ecossistemas que a manutenção desses espaços sbarra em dificuldades crescentes, mas pelo mero acanhamento de sua dimensão física face ao volume de seus usuários.

As preocupações do setor público referentes a um atendimentos das demandas por espaços de lazer de contingentes mais amplos da população se manifestaram, ainda, através da legislação de parcelamentos do solo, assegurando a destinação de uma parcela determinada da área de qualquer gleba loteada a esta função. O conjunto dessas áreas doadas compõe parte significativa do sistema de áreas verdes públicas da cidade. Quanto a isso, cabem duas observações apenas. A primeira se refere à distância que separa a figura jurídica de 'áreas verdes' da efetiva implantação de espaços de lazer. A segunda, sua diminuição gradativa devido à continuidade de um processo irregular de sua conversão em espaço habitacional. Com boa probabilidade de acerto, as favelas localizadas na Região Metropolitana podem ser encontradas na rede desses espaços de lazer.(8) 

Mas, se não se criou um sistema de lazer ajustado ao porte da Cidade, as praias litorâneas, localizadas a distâncias que permitem sua utilização mesmo com periodicidade semanal, oferecem-lhe, há muito tempo, uma alternativa adequada. Desde a inauguração da via Anchieta, ainda na década de 40, a população paulistana se utiliza, com intensidade crescente, das possibilidades de lazer asseguradas pela zona paraiana. De carro, de ônibus de linha, ou de ônibus fretado (mas jamais de trem, porque impossível, embora haja duas linhas de estrada de ferro interligando São Paulo e Santos); carregando pranchas de surfe, bicicletas, crianças e farnel de mantimentos, em torno de 3 milhões de pessoas descem ao litoral em cada fim de semana prolongado, ou mesmo apenas ensolarado. Muitos, para retornar no mesmo dia: são os 'farofeiros', aqueles cuja renda não permite o pagamento sequer de uma noite de hospedagem.

Hoje, da mesma forma que o complexo industrial-portuário da Baixada constitui uma mesma unidade econômica e espacial com o Planalto paulistano, as zonas balneárias do litoral são a área de lazer por excelência da cidade de São Paulo. Trata-se, efetivamente, de um espaço único, interligado pela multiplicidade das trocas entre o Planalto e a Baixada.

As formas de implementação do uso lazer no Litoral paulista

A qualificação do projeto de lazer implantado na região litorânea  de São Paulo constitui uma tarefa extremamente simples, para não dizer simplória. Esgota-se, em sua quase totalidade, na abertura de loteamentos voltados à construção de residências secundárias.

Os loteamentos para uso balneário se iniciaram, a rigor, ainda na década de 40, aumentando algo timidamente no decênio seguinte. No entanto, com a abertura e/ou o melhoramento de novas vias de acesso (como Imigrantes, Rodovia dos Tamoios, Mogi-Bertioga), o processo se acelerou e se ampliou cada vez mais. Na Baixada, a dispersão da população se apoia na estrada litorênea BR 101, que interliga os pontos extremos do Litoral paulista, de Norte a Sul.

Completando a infra-estrutura de lazer e turismo da área, existe, embora em escala bastante reduzida, e com preços proibitivos para parte significativa da população, uma rede hoteleira, além de diversas áreas de camping, distribuídos ao longo dos diversos municípios litorâneos, e alguns albergues, mantidos por empresas e entidades diversas para o uso exclusivo de seus funcionários. Entretanto, a esmagadora maioria das possibilidades de permanência se apoia no parcelamento de propriedades fundiárias para a construção de residências de veraneio. Mais ou menos sofisticados, compondo conjuntos diversificados no porte, no padrão, nas formas de ocupação da área e nas restrições de acesso a foreiros; em lotes urbanizados ou simplesmente demarcados; com água, esgoto e vias asfaltadas, ou carentes de qualquer infra-estrutura; os loteamentos de veraneio constituem, efetivamente, a marca predominante da apropriação do Litoral.

Aspectos econômicos e institucionais da oferta de lazer no Litoral de São Paulo

Vimos que no processo de caracterização funcional das diversas porções do espaço envoltório da metrópole paulistana, parcelas crescentes de sua área litorânea vêm sendo paulatinamente comprometidos com a função lazer. O que não explicitamos ainda, numa análise mais próxima das áreas-suporte dessa função, que forças atuam no próprio espaço litorâneo no sentido de propriciar essa conversão. Assinalando desde já que sua lógica é, no mínimo, estreita:  no período relativamente curto decorrido desde sua 'abertura', a área já mostra sinais de esgotamento de sua capacidade de atendimento da referida função. Não só porque o comprometimento da totalidade das áreas com os loteamentos residaenciais está em nítido desacordo com as possibilidades de sua própria manuntenção/reprodução enquanto atividades lucrativas; a própria forma adotada é contraditória com o potencial de demande de lazer representado por uma população da ordem de grandeza de São Paulo. (O paralelo grotesco que ocorre é o de imaginar loteadas as montanhas onde os europeus praticam esportes de inverno. Que possibilidades haveria para a sustentação econômica lucrativa dessa forma de uso dos campos de esqui dos Alpes?)

Acredito que dois fatores básicos se conjugam para a determinação da forma predominante de oferta de lazer na área litorânea. O primeiro deriva da estrutura político-institucional do país; o segundo, de seu padrão de distribuição de renda.

Quanto ao primeiro, por ser impeditivo de um processo de planejamento físico-territorial efetivo. Não só pela insegurança orçamentária, que, devido às múltiplas superposições entre as diversas  esferas do poder, e a relegação de responsabilidades sempre contingencia os investimentos produtivos no espaço; contribuem, também, para seu bloqueio a manutenção e ampliação do esfacelamento jurídico-administrativo do espaço, assegurando autonomia plena para cada governo local definir os usos do solo de seu próprio âmbito.

Iniciando esse questionamento pelos aspectos locais: como criar e administrar de forma coesa um espaço único, se do ponto de vista político ele se desintegra em um sem número de municípios, como se constituíssem unidades econômicas e políticas autônomas? Qual é, por sua vez, a autonomia econômica e política possível dos municípios balneários do litoral? Tomando como exemplo a recém-criada Bertioga: de que fontes provirá a verba necessária para sua mera manutenção? Quais as usas possibilidades produtivas, a não ser aquelas voltadas ao turismo? E de que forma o município poderá implementar a referida atividade? (9)

Mas não se trata apenas disso. A união administrativa dos municípios litorâneos, ou mesmo sua vinculação por meio de uma atividade ordenadora única (como um plano de manejo litorâneo, por exemplo), ainda não responderiam de forma adequada ao desafio da realidade a não ser assumindo a necessidade de revisão da pseudo-autonomia, uma vez que a Região Metropolitana de São Paulo e seu litoral constituem um único espaço, cuja apropriação para os diversos usos dever se guiar por uma intenção ordenadora única, e por um plano de investimentos ajustado às necessidades dos usos já implantados e os que devam se implantar.(10) 

 O segundo fator na determinação das formas vigentes de ocupação balneária do litoral se liga, em última instância, ao próprio padrão de distribuição de renda vigente no país.(11) 

Relembrando que as atividades de lazer, capturadas pelo mercado, têm sua estrutura determinada por esse mesmo mercado, fica evidente que a implementação de qualquer projeto turístico ou de lazer só se torna viável se compensar economicamento o capital investido em sua oferta. Ora, o custo de implantação de uma infra-estrutura urbana efetiva, abrangente, e ajustada a uma demanda de massa, pelo capital envolvido, obrigatoriamente se vincularia ao setor público da economia. Que não a realiza, porque, como já se apontou acima, o projeto econômico brasileiro sistematicamente tem dado costas à viabilização de seu mercado interno, e porque no estágio predominantemente extensivo de acumulação que caracteriza a economia brasileira, nem o padrão de vida da população, nem a qualidade do espaço constituem requisitos  da produção. Na ausência de um projeto de lazer/turismo de massa, a implantação das infra-estruturas urbanas do litoral se dá assim apenas de forma circunscrita, financiada pelo setor empresarial, e tendo como condição a compatibilidade entre a renda de seus clientes e o preço da mercadoria produzida.(12)  Atendida a população de renda alta, a qualidade dos serviços de turismo tem retorno econômico garantido apenas a custos relativamente baixos. 

No entanto, como vimos, a exploração balneária do litoral se impõe de modo crescente, como a forma prioritária de lazer possível das camadas de classe média urbanizada. É a essa demanda crescente que respondem os loteamentos para a construção de casas de veraneio. São, de fato, a solução perfeita: 

  • asseguram à população demandatária a opprtunidade de uma forma de lazer através de uma residência secundária (que, além de seu valor de uso, não deixa de ser também um investimento interessante em tempos de crise ou estagnação);
  • aos loteadores, garantem um lucro certo sem nenhum compromisso ou ônus futuro;
  • por fim, para as prefeituras litorâneas, elas asseguram a certeza das taxas e dos impostos predial e territorial., a fonte básica de suas receitas.(13)


O círculo se fecha aqui. E para sua ruptura não bastam as alertas dos preservacionistas sobre as fragilidades do meio litorâneo, nem seus esforços para barrar a escalada crescente das aagressões à paisagem, através da contínua ampliação das áreas a serem protegidas por legislação específica. Tampouco seus murros em ponta de faca nos confrontos com as prefeituras e as incorporadoras e empresas imobiliárias. Não é suficiente, tampouco, o empenho e mesmo o apoio político e técnico de administrações locais efetivamente imbuídas de uma vontade de corrigir descalabros. Acredito que as transformações necessárias possam e devam se apoiar no conjunto dessas atividades, mas de fato só serão viabilizadas através da reorientação da forma de ocupação do litoral, dentro de uma concepção  de política urbana compatível com as demandas econômico-sociais do país. Neste quadro novo, a área litorânea, como integrante do próprio espaço urbano brasileiro, conduziria à elaboração de projetos que a adequassem à ampla diversidade e riqueza de usos que potencialmente representa, e à realização de investimentos comprometidos com sua efetiva implantação.

Notas



1  Trata-se do efeito comparativo, por exemplo, de um conjunto habitacional de 100ha com dez, cem ou mil loteamentos menores.

2  Uma boa prova do absurdo dessa tese pode ser dada por São Paulo, onde é precisamente o desajuste entre a oferta e demanda de transporte de massa que produz alguns dos impactos mais graves ao ambiente urbano, e não sua implementação. Considere-sem a esse respeito, os bloqueios da rede viária, o comprometimento de uma série de funções urbanas, a poluição atmosférica derivada da crescente utilização do transporte individual, etc. Ela serve, no entanto, para evidenciar o preconceito implícito da abordagem ambientalista em relação ao crescimento urbano.

3  Visando a libertação das imposições imediatas das relações de trabalho estabelecidas no mercado, a faceta mais marcante de muitas formas atuais de lazer é a estanqueidade protetora, a negação intencional de referenciais nas formas de apropriação do espaço e do tempo ? ainda que logo seguidas de frustração e de agressividade.

4  Ver, no entanto, nota 5, abaixo.

5  Desde as suas primeiras abordagens cepalinas até o presente, um volume significativo de estudos se voltou ao tema, formulando diversas hipóteses para sua interpretação. Entre elas se distinguem duas linhas básicas: a primeira, que a atribui de modo marcante à forma de inserção do país na economia mundial (ou seja, sua dominação econômica), e uma segunda, que assinala o caráter determinante, no delineamento destas condições, da política econômica do próprio Brasil, determinada por sua elite dirigente. As colocações deste trabalho se pautam nesta segunda linha, defendida, entre outros, por Florestan Fernandes, ao assinalar o caráter associado da burguesia nacional aos interesses dos centros de acumulação mundial, ou a ausência de conflitos entre os dois; ou por Csaba Deák que, em trabalhos recentes se referiu ao caráter entravado da acumulação no país, por essa mesma elite. 

6  O desaparecimento quase completo do assim chamado futebol  'de várzea' ilustra bem as diversas facetas do quadro. A expressão, cunhada para designar o jogo praticado maciçamente às margens desocupadas dos rios, além da referência locacional carrega, claramente, uma conotação depreciativa, devido ao caráter popular, de baixo padrão econômico-social de seus frequentadores. Com o crescimento físico da cidade esse setor seria o primeiro a ser atingido.

7  Esta, embora continuava a afiançar teoricamente a manutenção e mesmo o privilegiamento daquele uso, não só deixou a questão à margem de qualquer projeto de investimento, como inviabilizou, pela própria concepção do manejo das áreas, qualquer possibilidade concreta de sua utilização como zona de lazer de contingentes mais significativos da população. Observe-se, em primeiro lugar que de acordo com as propostas contidas naquela lei, se nas áreas de segunda categoria, pela estrutura de propriedades implicada na garantia de baixo adensamento, os espaços de lazer potencial só atenderiam ao reduzido contingente dos proprietários dos lotes, a compatibilização entre as funções primordiais das zonas de primeira categoria: de proteção ciliar na envoltória das próprias represas, e a função lazer só teria sido possível desde que acompanhado de um conjunto amplo de investimentos voltados a sua adequação. Entre elas, a garantia de acessibilidade e a implantação das infra-estruturas e equipamentos de apoio, precedidas da própria concepção programática e formal das áreas de lazer abstratamente contempladas naquele documento legal. 

8  A inexistência de uma efetiva política urbana voltada à homogeneização do espaço, e as consequentes disparidades entre os preços das localizações geraram o conhecido movimento centrífugo da população de baixa renda da cidade. Assinalados os limites da periferização até mesmo por sua impraticabilidade física (devido às distâncias crescentes), ela gerou, por sua vez, o seu contra-movimento, através da crescente formação de favelas. Localizando-se nas áreas desocupadas do tecido urbano, estes assentamentos irregulares comprometeram boa parte das áreas verdes públicas de Sâo Paulo.

9  Um parêntesis aqui: as intenções de preservação da chamada 'identidade cultural dos caiçaras' são incompatíveis com a incorporação da extensão litorânea ao espaço urbano de São Paulo. A integração do litoral paulistano (e nacional) ao espaço do mercado significa, precisamente, a extinção, nesses territórios, das condições de economia de subsistência, base da referida identidade cultural. Aspectos diversos de suas práticas culturais podem sobreviver, embora transformados, se puderem ser incorporados à nova base econômica em que as comunidades caiçaras se integrarem. Mas, ainda que a violência inerente a sua incorporação ao mercado continue a mesmo. existem, me parece, diferenças significativas entre a exploração dos caiçaras em subempregos nos diversos loteamentos, e a viabilização de seu trabalho em unidades economicamente rentáveis de pesca, de criação e industrialização de algas, ou outros afazeres, O que não pode ser sustentada, no entanto, a não ser por ingenuidade ou má fé, é que se possa preservar sua cultura quando, simultaneamente se expropria a base espacial de sua sobrevivência. 

10  Quando então, e só então, as decisões a respeito de seu agenciamento, se centralizado ou descentralizado, transformar-se-iam no que de fato deveriam ser: decisões técnicas a se ajustarem às competências, potencialisdades, funções e capacidades dos diversos órgãos administrativos envolvidos.

11  Que, modelado pelo projeto econômico dominante, se de um lado bloqueia os investimentos no espaço nacional, de outro limita as demandas sociais ao mínimo suportável.

12  Essa faixa de consumidores, sabemos, é limitada, e é provável que esteja de fato atendida de acordo com seu padrão (tendo a Riviera de São Lourenço de Bertioga como seu exemplo mais notório).

13  As taxas e impostos, embora altos, não serão jamais suficientes para uma efetiva infra-estruturação das áreas já urbanizadas, menos ainda para a ampliação das redes de água, esgoto, abastecimento, a não ser que se tornem proibitivas para parte significativa da clientela. Assim, sua função precípua é assegurar a estabilidade do esquema, e mesmo sua ampliação através de novos processos de 'emancipação' municipal.



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