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2° semestre de 2004
AUP-840 O mercado e oEstado na organização da produção

A LEI DE TERRAS DE 1850 E A ORGANIZAÇÃO ESPACIAL URBANA
Edson Penha de Jesus

São Paulo, 30 de julho de 2004



 
 Na história do uso da terra urbana brasileira, o papel da Lei de Terras – Lei n.601 de 18 de setembro de 1850 – marca um rompimento de grande importância para a definição de como ela seria apropriada. A partir de sua promulgação, a simples posse da terra deixou de ser efetivada pela concessão por utilização – antigo regime de sesmaria – e passou a ocorrer pela compra oficialmente registrada. Assim, a Lei de Terras de 1850 procurou reconhecer e regulamentar a monetarização da terra no país. 
Outro atributo concedido pela Lei foi a instituição da possibilidade de importação de mão-de-obra livre para substituição do trabalho cativo. Com a introdução do colono e sua condição de trabalhador assalariado e o livre acesso à propriedade da terra, tanto no campo como nas áreas urbanas, a Lei de Terras de 1850, como instrumento de intervenção do Estado, possibilitou a transformação definitiva da terra em mercadoria, a separação entre público e privado e, por conseqüência, a organização do espaço. 
É a partir deste ponto da análise que se definiu a proposta deste trabalho, que se constitui em substanciar objetivamente o importante papel da Lei de Terras de 1850 na organização ou reorganização do espaço urbano. Espaço esse que se reproduz a partir de contradições entre forças sociais históricas e antagônicas e que, em conflito ininterrupto, proporcionaram e proporcionam estruturas espontâneas, repletas de deformidades e rupturas temporais espalhadas pelo meio urbano brasileiro. 
  É sabido que, antes da promulgação da Lei e durante o período do regime escravocrata no país, a terra era praticamente destituída de seu valor. Segundo Martins, “genericamente falando, ela não tinha a equivalência de capital, alcançando às vezes um preço nominal para efeitos práticos, sobretudo quando pequenas indenizações eram oferecidas a posseiros encravados no interior das sesmarias, para pagamento de seu roçado”.  Desta forma, como a terra não imobilizava capitais, não representava garantias hipotecárias. Era na pessoa do escravo que a renda se apresentava capitalizada.  
O trabalhador cativo apresentava-se com dupla finalidade na economia escravocrata: como fonte de trabalho e como renda capitalizada. Desta forma, o trabalhador cativo, fator imprescindível na produção, garantia a seu proprietário a possibilidade de empréstimos em bancos e demais agiotas do capital comercial. Sem esse capital imobilizado no trabalhador cativo e transfigurado em renda capitalizada, o fazendeiro ou proprietário de escravo não conseguia expandir seus negócios. 
 Como já foi mencionado, a Lei de Terras de 1850, ao mesmo tempo em que regulamentava a propriedade privada no Brasil, também normatizava a importação de colonos para a lavoura e demais atividades.   Devemos apontar aqui que a Lei de Terras foi resultado de pelo menos três pré-requisitos que já se processavam pelo país: a ocupação desorganizada (a compra e a venda irregular de terras tornavam-se cada vez mais comuns), o custo insustentável da mão-de-obra escrava (proporcionada pela transformação do capital imobilizado em renda capitalizada)  e as pressões externa e interna para a abolição do trabalho escravo.   
Diante de tais condições e de forma espontânea, o trabalho cativo aos poucos foi sendo substituído pelo assalariado — e o capital imobilizado na figura do escravo foi sendo transferido para a terra. A terra oficialmente passou a ser o objeto de penhora para aquisição de empréstimos, condição que resultou em crescente valorização da propriedade imobiliária.  
A Lei de Terras de 1850, associada à abolição da escravatura, surge como solução definitiva para a condição insustentável que se apresentava. Juntas, definiram institucionalmente a condição de existência da propriedade privada e do trabalho assalariado — o que, na mesma proporção, privou definitivamente o trabalhador de seu meio de subsistência e o condenou a vender sua força de trabalho para comprar no mercado seus próprios meios de sustento.  
Com o aparecimento do trabalho assalariado, fundamentou-se o modo de produção capitalista no país  e todas as relações sociais diretamente associadas ao trabalho passaram a se realizar pela capacidade de produção. 
Da organização dessa capacidade produtiva e de suas conseqüências sobre o espaço, teremos o preço da terra  e sua definitiva transformação em mercadoria. Segundo Oliveira, como mercadoria, por não se tratar de fruto do trabalho humano, seu valor diferencia-se dos demais produtos e não deve ser visto como capital , assim, o valor da terra “deve ser entendido como resultado da ideologia capitalista, que falsamente tenta considerar a terra como capital, o que ela não é” , e, assim, a terra não pode gerar lucro, e sim renda. Para este autor:

“[...] Sob o modo capitalista de produção o preço da terra é, portanto, renda capitalizada e não capital. Quando, pois, os capitalistas compram a terra estão convertendo o seu capital-dinheiro em renda capitalizada, ou seja, estão adquirindo o direito de extrair renda, mesmo naqueles lugares onde aparentemente ela não existir. Ë o exemplo das terras sem nenhuma aplicação de capital, e mesmo daquelas que ainda não foram desbravadas, no entanto, têm um preço. Este preço, cabe esclarecer, é resultado da renda que esta terra inexplorada pode vir a dar. Dessa forma, o preço de uma terra mede-se pela renda da terra que ele pode dar, ao contrário do valor efetivo de um capital-dinheiro, que no mercado de capitais é regulado pelo juro que ele realmente dá.”. 

Desta forma, no modo capitalista de produção, a terra, embora não tenha valor, tem preço, e esse é obtido conforme seu proprietário gradativamente a utiliza ou quando ela é comercializada.”  
Segundo oliveira, “a renda da terra sob o modo capitalista de produção é, na medida em que resulta da concorrência, renda diferencial; e é, na medida em que resulta do monopólio, renda absoluta.”  Ambas são importantes para o entendimento do preço da terra, porém, aqui vamos nos ater à questão da renda diferencial. Oliveira afirma que a renda diferencial da terra “decorre da diferença entre o preço individual de produção do capital particular que dispõe de uma força natural monopolizada e o preço de produção do capital empregado no conjunto do ramo de atividade considerado” 
Como causas da renda da terra diferencial, Oliveira cita três: 1) a diferença de fertilidade do solo, pressuposto natural; 2) a localização das terras – essas duas primeiras “independentes do capital”  – 3) a que surge dos “investimentos  de capitais no solo para melhorar a sua produtividade e ou localização” 
A lei de Terras de 1850, como já afirmamos aqui, possibilitou o incremento da propriedade privada, transformando-a em renda capitalizada. Como merca-doria, qualidade e localização não foram suficientes para lhe estabelecer um valor. Para tanto, entraram investimentos e benfeitorias capitalistas resultantes da prática social. E, como toda mercadoria, teve seu valor associado diretamente à materialização resultante da atuação das forças produtivas que ideologicamente se confrontam no espaço. 
Assim, para o entendimento da organização do espaço, devemos levar em conta a prática social do modo de produção dominante e sua conseqüente ideologia somada às relações contraditórias históricas existentes na divisão social do trabalho. Sem o entendimento do modo de produção, não se entende o espaço. 
Segundo Deák, “da pratica social da produção e reprodução dentro de uma divisão de trabalho, característica de um modo de produção” , identificamos os conceitos de espaço e localização. O espaço, mais precisamente o urbano, se apresenta como resultado concreto da materialização da forma-mercadoria no território. É possível observar que “tal espaço encerra ‘localizações’, uma localização sendo ‘lócus’ de um processo individual de produção (ou de reprodução).”  Esse fato concreto se realiza através da circulação (de pessoas, de informações, de mercadorias, etc.) e se encerra territorialmente na “forma jurídica da propriedade”.  Nesse contexto, o espaço urbano e as localizações se apresentam como produtos históricos do trabalho humano e em contínua (re)produção, acordados aos interesses do processo de acumulação. 
Assim, no meio urbano, a localização, como renda diferencial originária do investimento capitalista e enquanto condição de produção, passa a definir o valor do espaço.  O pagamento pela localização, enquanto categoria de análise do espaço, aparece como determinante no preço de produção e, conseqüentemente, no preço da terra. Porém, a condição de produzir não ocorre de maneira aleatória, ela é regulada pelo mercado.
Mas o mercado também não se desenvolve aleatoriamente, ele é regulado pela intervenção do Estado. Assim, o entendimento da categoria pagamento pela localização não pode ser compreendido sem observamos a participação do mesmo. Segundo Deák:
“O preço da terra – a forma dominante de pagamento pela localização – torna-se assim um dos meios de organização espacial da produção juntamente com outros meios, tais como as ações normativas, indutivas e coercivas do Estado. Da mesma maneira em que a regulação econômica se dá através de uma combinação de forças do mercado e planejamento, a regulação espacial se exerce por uma combinação dos mesmos processos, que se concretizam, respectivamente, no preço da localização e na intervenção do Estado. A combinação particular dos diversos meios de regulação utilizada em uma época histórica específica é determinada pelo estágio de desenvolvimento das forças produtivas, ou mais precisamente, do antagonismo entre a produção de valores de uso enquanto valores de troca (isto é, a produção de mercadorias) e a produção direta de valores de uso.”  

Como intervenção do Estado, podemos considerar que a Lei de Terras de 1850, o fim do trabalho escravo e o estabelecimento do trabalho assalariado se apresentaram como ações concretas e estratégicas para a configuração do espaço nacional e, por conseqüência, para a definição do preço da terra. No processo produtivo, a localização estrategicamente passou a ser considerada mercadoria passível de ser comercializada. 
O estabelecimento da propriedade privada resultou na maior participação do Estado no processo de organização espacial e os limites entre as posses tornaram-se obrigatoriamente precisos, com registro reconhecido e com preço atribuído. Surgiu daí toda a sistematização das leis que definiram o uso dos solos brasileiros e que também passaram a interferir diretamente na valorização da terra. 
Junto aos interesses do mercado, coube também ao Estado o estabelecimento de limitações de ordem técnica ou estética  e o empreendimento da infra-estrutura que, ao produzirem valor de uso, também passaram a definir e aumentar os valores que aleatoriamente eram concedidos ao espaço.
Com a industrialização e os interesses capitalistas refletidos na atuação do Estado, o espaço urbano se concretizou. Assim, industrialização e urbanização, como um único processo, acabaram incorporando grande massa de trabalhadores imigrantes ou resultantes da exclusão no campo na produção de mercadorias, dando origem, já no começo do século XX, à grande e problemática aglomeração urbana, como a capital paulistana.
Para complementar, devemos levar em conta que a produção do espaço urbano tem sua especificidade associada à produção de mercadorias, mas não pode ser considerada mercadoria. A generalização da forma-mercadoria tem seus limites e contradições, e segundo Deák:
“A generalização da forma-mercadoria constitui uma das tendências mais profundas do capitalismo dado que tem suas raízes na própria relação-salário. Esta tendência gera sua própria contratendência, antagônica, e que a nega, de modo que a produção dos valores de uso enquanto ‘valores de troca’ precisa ser complementada pela produção de valores de uso enquanto tais. A dialética da forma-mercadoria assim definida não se restringe à organização do espaço, senão que domina a produção e reprodução sociais como um todo, até o ponto da reificação das relações sociais [...] A primazia da forma-mercadoria e o processo de reificação das relações sociais impõem que a regulação da produção capitalista seja efetuada em primeira instância pelo mercado e em segunda instância pela intervenção do Estado, a combinação específica de ambos sendo determinada pelas condições de mercadorização da produção de acordo com o estágio de desenvolvimento das forças e relações de produção”  

Desta forma, a Lei de Terras de 1850, a partir do uso privativo da terra, refletiu o interesse capitalista dos segmentos mais abastados da sociedade  brasileira. Ampliou, por intermédio do Estado, o domínio da produção e da reprodução sociais que culminaram com a organização espacial e estão refletidas nas paisagens dos dias atuais.
Engana-se quem acredita que tal organização espacial é fruto somente de uma imposição vertical da elite dominante sobre o proletariado. Seu processo  acontece por meio do conflito e da mediação entre classes e segmentos divergentes da sociedade. A organização espacial é resultado da prática social e acontece em nível coletivo e não individualizado. 
Para finalizar, a Lei de Terras de 1850, sempre acompanhada do advento do fim da escravidão, tornou-se um marco definitivo no fortalecimento dos moldes capitalistas de produção no Brasil. Em si, ambos os fatos históricos, carregados de seu conteúdo ideológico e político, foram mais conseqüências do interesse da antiga oligarquia e das novas forças vinculados ao modo de produção que se estabelecia do que de qualquer outra iniciativa social normativa. 
Do ponto de vista histórico-espacial, a Lei de Terras foi resultante de um processo e produziu grandes transformações na organização sócio-espacial brasileira. Na mesma proporção em que foi conseqüência, interveio na organização social do trabalho e das forças produtivas e nas relações de propriedade, além de estabelecer modificações institucionais e fortalecer a ideologia dominante. 
Muito ainda há de se pesquisar sobre as conseqüências da Lei de Terras de 1850 sobre a organização do espaço brasileiro. Do ponto de vista geográfico, suas causas e conseqüências ainda não foram tratadas com a devida importância, sendo merecedora de mais atenção. Dessa forma, fica aqui uma importante proposta de pesquisa a ser desenvolvida futuramente.
 

Referências bibliográficas:

CASTRO, Iná Elias de, GOMES, Paulo César da Costa, CORRÊA, Roberto Lobato. (org.) Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 4ª edição, 2002.
DEÁK, Csaba e SCHIFFER, Sueli (orgs) O processo de urbanização no Brasil. São Paulo: Edusp/Fupam, 1999. (www.fau.usp.br/docentes/depprojeto/c_deak)
DEÁK, Csaba, Acumulação entravada no Brasil – E a crise dos anos 80; In DEÁK, Csaba SCHIFFER, Sueli (orgs) O processo de urbanização no Brasil. São Paulo: Edusp/Fupan, 1999.(www.fau.usp.br/docentes/depprojeto/c_deak)
DEÁK, Csaba "O mercado e o Estado na organização espacial da produção capitalista." Espaço & Debates, 28, 1989. (www.fau.usp.br/docentes/depprojeto/c_deak) 
LEFEBVRE, Henry (1974). The Production of Space. Translated by Donald Nicholson-Smith Malden-Massachusetts-USA: Blackwell Publishers Inc, 1991 (original em francês de 1974).
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MARTINS, José de Souza. O cativeiro da Terra. São Paulo: Editora Hucitec, 1996.
Coleção das Leis do Brasil - 1850,  Tomo X,  Parte I.
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. “O que é? Preço da Terra”. In Orientação, n.7, dez. 1986, São Paulo: Instituto de Geografia/Departamento de Geografia/USP.
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. “O que é? Renda da Terra”. In Orientação , n.5, out. 1984, São Paulo: Instituto de Geografia/Departamento de Geografia/USP.
ROLNIK, Raquel. A cidade e a Lei: Legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: FAPESP/Studio Nobel, 1997.
 


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