Plínio de Arruda Sampaio
Jr.
2001
1. Estado Nacional e revolução burguesa
O debate sobre a existência de uma burguesia nacional gira em torno do papel das classes sociais na construção do Brasil como Estado nacional independente dentro do sistema capitalista mundial. A essência da discussão é decifrar o comportamento da burguesia na luta de classes. Trata-se de definir a sua capacidade de impulsionar a revolução democrática (a integração do conjunto da população no desenvolvimento) e a revolução nacional (a superação dos laços de dependência externa em relação aos centros dominantes do sistema capitalista mundial). O problema remete à análise dos determinantes objetivos e subjetivos da luta de classes em cada formação social. A discussão a respeito do papel da burguesia na formação dos Estados nacionais organiza-se tendo como ponto de referência o processo de revolução burguesa, cuja essência consiste em criar as bases materiais e estatais do poder burguês. A retrospectiva histórica revela que existem diferentes padrões de revolução burguesa.
O caso clássico, associado às revoluções inglesa e francesa, caracteriza-se pelo encadeamento das revoluções agrária, urbana, nacional, democrática e industrial. Liderado por burguesias conquistadoras, que contavam com a energia revolucionária das massas camponesas e urbanas, o processo revolucionário adquiriu o caráter de uma luta de vida ou morte contra o antigo regime. Por isto, o poder burguês pode repousar sobre bases sociais e políticas que maximizam as propriedades construtivas do capitalismo.
As revoluções burguesas atípicas do século XIX, cujo paradigma é a via prussiana, não foram tão longe. A perda do poder revolucionário deveu-se à debilidade das burguesias que as impulsionaram. A presença de forças operárias relativamente desenvolvidas, ao colocar a ameaça de que o processo de transformação social acabasse extrapolando os marcos do regime burguês, acabou comprometendo o ímpeto revolucionário destas burguesias, forçando-as a composições com segmentos conservadores da sociedade. Mesmo assim, o processo de mudança social se desenvolveu com relativa profundidade. A forte centralização do poder pelo Estado - expressão da aliança estratégica da burguesia emergente com a aristocracia e com a burocracia estatal - permitiu que a revolução nacional fosse levada às últimas conseqüências, rompendo os nexos de dependência externa com as potências hegemônicas do capitalismo.
Por fim, as revoluções burguesas "atrasadas" caracterizam-se
pelo fato de que a sua direção política foi monopolizada
por burguesias ultra-conservadoras e dependentes que, ao fechar o circuito
político à participação das massas populares
e selar uma associação estratégica com o imperialismo,
acabaram por associar capitalismo e subdesenvolvimento. O drama das revoluções
burguesas que eclodem dentro dos marcos da dependência é que
as condições históricas externas e internas restringem
muito d possibilidade de conciliar capitalismo e integração
nacional. É este último caso que se enquadra o Brasil.
2. Revolução burguesa atrasada e imperialismo total
As características do imperialismo na segunda metade do século XX tornaram muito difícil o rompimento com a situação de dependência das sociedades que fazem parte da periferia da economia mundial sem a superação do próprio capitalismo. O problema central é a inexistência de atores sociais capazes de impulsionar mudanças sociais construtivas sem questionar as bases do próprio regime burguês. Por um lado, a possibilidade de desvincular a aceleração do desenvolvimento capitalista do processo de integração nacional leva as burguesias dependentes a optarem definitivamente por uma aliança estratégica com o capital internacional e com as nações hegemônicas. Por outro, o aprofundamento da industrialização exacerba o temor das classes dominantes de uma revolta popular, levando-as a abandonar quaisquer veleidades reformistas. Se isso não bastasse, a revolução burguesa é solapada de fora para dentro, uma vez que a polarização com o bloco comunista envolveu as burguesias dependentes em uma disputa política em escala mundial. A internacionalização da luta de classes transformou, assim, toda ameaça à ordem estabelecida em um episódio da guerra fria. Além disso, os requisitos de estabilidade e segurança das grandes multinacionais estreitaram o grau de tolerância das classes dominantes com qualquer tipo de movimento social e político que pudesse vir a comprometer o status quo.
O novo contexto histórico influenciou os rumos da revolução burguesa à medida que transformou a conservação do capitalismo dependente na linha de menor resistência e na opção mais racional ao alcance das burguesias periféricas para promover as transformações capitalistas e consolidar sua dominação sobre o conjunto da sociedade. A incapacidade de acompanhar as transformações capitalistas, sem promover uma estreita associação com o capital internacional e com o sistema imperialista, fez com que os interesses da burguesia se voltassem para a preservação da dependência. Uma vez que a continuidade de estruturas sociais anacrônicas constituía o único meio possível de evitar que as revoluções mercantis e tecnológicas oriundas do centro capitalista provocassem efeitos desestruturantes de proporções catastróficas, as classes dominantes exacerbaram as resistências sociopáticas à mudança e redobraram o esforço de evitar qualquer tipo de fissura no padrão de dominação que pudesse quebrar o monolitismo do pacto de poder e abrir espaço à participação política das classes subalternas. Sem ter o que oferecer aos desfavorecidos, as burguesias dependentes chegaram à conclusão de que seus interesses fundamentais não estavam na promoção do desenvolvimento autônomo, nem na criação de mecanismos de socialização dos frutos do progresso. Estavam sim, na reprodução ampliada do capital e na perpetuação do desequilíbrio na correlação de forças que impedia a presença ativa dos de baixo na política. Por isso, na era do imperialismo total, as burguesias dependentes não lograram romper o círculo vicioso do subdesenvolvimento.
As circunstâncias do pós-guerra colocaram-se em marcha
duas revoluções antagônicas: uma impulsionada pelos
privilegiados, que procura concluir a revolução burguesa
mediante a reafirmação do capitalismo dependente; outra,
que germina em estado larvar entre os condenados do sistema, que se volta
para o futuro e rejeitava não apenas a situação de
dependência mas o próprio capitalismo. Nestas circunstâncias,
a revolução burguesa ganhou uma dinâmica intrinsecamente
"contra-revolucionária", divorciando-se definitivamente do conjunto
da nação. Consolidou-se, desta forma, uma cisão irreparável
entre (1) a assimilação das estruturas e dos dinamismos capitalistas
irradiados do centro e (2) a universalização e democratização
dos benefícios do progresso técnico. O poder burguês
tornou-se, assim, incompatível com a democracia e o desenvolvimento
independente, transformando o Estado em um mero instrumento de controle
do espaço social e geográfico do país. Discutindo
os efeitos deste contexto histórico sobre a luta de classes, Florestan
Fernandes definiu as alternativas que se colocavam para as burguesias dependentes
na segunda metade do século XX nos seguintes termos: "Revolução
e contra-revolução constituem, por conseqüência,
duas faces de uma mesma realidade. Sob a guerra civil latente, a pressão
autodefensiva da burguesia pode ser contida nos limites da ‘legalidade’;
por sua vez, o contra-ataque proletário fica circunscrito à
defesa de sua autonomia de classe e de sua participação coletiva
no sistema de poder burguês. Em outras palavras, a burguesia afasta-se
das tarefas históricas impostas por sua revolução
de classe, mas o proletariado não. Ele força e violenta os
dinamismos da sociedade capitalista, obrigando os setores estratégicos
das classes burguesas a retomar pé na transformação
revolucionária da ordem social competitiva. Onde isso não
ocorreu, ou então, onde isso ocorreu de modo muito fraco e descontínuo,
a democracia burguesa sempre se revelou muito débil e facilmente
propensa às contrações contra-revolucionárias
dos regimes ditatoriais. Sob a guerra civil aberta, a pressão autodefensiva
da burguesia torna-se virulenta e se coloca acima de qualquer ‘legalidade’;
por sua vez, o proletariado bate-se diretamente pela conquista do poder
ou, pelo menos, pela instauração de uma dualidade de poder
que exprima claramente a legalidade que a revolução opõe
à ilegalidade da contra-revolução. O campo da luta
de classes adquire uma transparência completa e converte-se automaticamente
em um campo de luta armada, pela qual a revolução e a contra-revolução
metamorfoseiam a guerra civil a frio ou/e a quente em um prolongamento
da política por outros meios".
3. Brasil: Da contra-revolução permanente à reversão neocolonial
O drama da revolução burguesa no Brasil é que a debilidade do processo de diferenciação do regime de classes e seu caráter ultra-elitista acabaram por comprometer a eficácia dos antagonismos de classe como força motriz da revolução nacional e da revolução democrática. A origem do problema encontra-se no fato de que a estratificação social lançou raízes em modos de produção pré-capitalistas ou subcapitalistas e sofreu o impacto negativo do desenvolvimento desigual e combinado do sistema capitalista mundial. Florestan Fernandes sintetizou o problema assim: "Não herdamos de um mundo feudal em crise a argamassa para a construção de uma nova sociedade. Um ponto de partida tosco expunha burgueses e proletários a uma luta sem quartel, que deita raízes no escravismo colonial e no escravismo moderno, na qual eles se empenham antes de possuírem identidades próprias, movidos pelas estruturas e pelos dinamismos de um modo de produção que iria crescer e, aos poucos, impor as premissas históricas de sua existência e desenvolvimento (ou seja, o contrato, a sociedade civil, o Estado burguês etc.)".
Um contexto histórico-estrutural particularmente adverso fez com que as oportunidades de consolidar a nação surgissem sem que aparecessem forças sociais organizadas capazes e dispostas a transformá-las em realidade. A insuficiência das pressões nacionalistas e democratizantes vindas "de baixo para cima" e a extrema debilidade das pressões reformistas "de cima para baixo" não obrigaram as classes dominantes a ampliar as bases materiais e políticas de seu poder de classe. Por isso, tanto a emancipação nacional quanto a revolução burguesa avançaram pela linha de menor resistência, como processos estruturais destituídos de conteúdo econômico, social, político e cultural que pudesse comprometer os fundamentos do capitalismo dependente, reduzindo a descolonização ao mínimo indispensável para atender às exigências básicas de cada situação histórica.
Por uma série de razões ligadas às peculiaridades da formação do proletariado como classe social e ao atraso da industrialização brasileira, a revolução operária, que poderia imprimir novos rumos ao país, concluindo as tarefas que foram deixadas de lado pelos ciclos revolucionários anteriores, custou para emergir dos subterrâneos da história. O proletariado só começou a tomar corpo como realidade social capaz de influenciar o curso dos acontecimentos muito tardiamente, no final da década de setenta, após o salto para a industrialização pesada. E, antes que tivesse condições de se constituir plenamente como classe social, acabou duramente golpeado pelo impacto devastador da globalização sobre o mundo do trabalho.
A especificidade da revolução burguesa no Brasil fica evidente no modo como se deu a "consolidação conservadora do poder burguês" nas quatro décadas que separaram a crise da República Velha e a afirmação do Estado autocrático burguês, na segunda metade dos anos sessenta. Neste período, a burguesia brasileira passou por uma verdadeira revolução cultural. Superando as heranças da era colonial, a burguesia despoja-se das ideologias e das utopias adquiridas dos modelos clássicos de revolução burguesa e expurga definitivamente o "espírito burguês" de sua segunda natureza tradicionalista. No momento de definir suas alianças estratégicas, a decisão da burguesia foi realista e pragmática. Adaptando suas aspirações socio-econômicas e suas identificações políticas às necessidades do momento histórico, ela descobriu que, na era do imperialismo total, as condições para realizar a transição para o capitalismo monopolista eram muito adversas para comportar aventuras nacionalistas e democráticas.
Incapaz de assimilar o capitalismo monopolista sem estabelecer uma estreita associação com o capital internacional, a burguesia jogou todas as suas energias na negociação dos termos da dependência. Sem ter o que oferecer às classes subalternas, as classes dominantes abandonaram quaisquer veleidades reformistas e assumiram, sem hesitação, a defesa do único capital que lhes restou: a capacidade quase ilimitada de ajustar as condições sociais e econômicas às exigências do capital internacional. "Os estratos burgueses – escreve Florestan Fernandes – aprenderam a mudar a qualidade de suas percepções e explicações do mundo, procurando ajustar-se a ‘avaliações pragmáticas’, que representam o subdesenvolvimento como um ‘fato natural’ autocorrigível e estabelecem como ideal básico o princípio, irradiado dos Estados Unidos, do ‘desenvolvimento com segurança’. Dava-se, assim, o último salto na limpeza do sotão. A burguesia brasileira encontrava novos elos de ‘modernização’, descartando-se de suas quinquilharias históricas libertárias, de origem européia, substituídas por convicções bem mais prosaicas, mas que ajustavam seus papéis à ‘unidade do hemisfério’, à ‘interdependência das nações democráticas’ e à ‘defesa da civilização ocidental’".
As potencialidades do capitalismo monopolista no Brasil cristalizaram-se no fato de que, apesar da manutenção da dupla articulação que perpetuava os nexos de subordinação externa e a assimetria da sociedade colonial, o país conseguiu completar a revolução industrial e levar a cabo a revolução burguesa. Com a consolidação do regime militar na segunda metade dos anos sessenta, a burguesia adquiriu o "excedente de poder" necessário para promover os ajustes indispensáveis para internalizar as estruturas e dinamismos fundamentais do capitalismo monopolista, integrando o Brasil ao espaço econômico, sociocultural e político do capitalismo hegemônico.
O salto para a industrialização pesada significava que, enquanto os parâmetros que condicionavam o movimento de internacionalização dos mercados internos permanecessem inalterados, a reprodução ampliada do capital adquiriria uma dinâmica autoreferida, transformando-se em um eficaz mecanismo de assimilação e difusão das estruturas e dos dinamismos da Segunda Revolução Industrial. "Uma burguesia - escreve Florestan Fernandes - que não pode desencadear, a partir de si mesma, nem a revolução agrícola, nem a revolução urbano-industrial, nem a revolução nacional, percorre, não obstante, todas as etapas desses processos como se, na realidade, eles fossem produtos de sua atividade histórica. De um lado, ela ganha recursos para manter e intensificar o fluxo de crescimento do capitalismo dependente, continuamente acelerado e por vezes subvertido ‘a partir de fora’. De outro, ela pode aparecer, no panorama interno da ‘sociedade nacional’, como a suposta protagonista final de todas as transformações".
Ao unificar e centralizar o poder estatal sob a liderança dos grupos modernizadores, a consolidação da revolução burguesa permitiu que a burguesia brasileira adquirisse força e flexibilidade para adaptar a economia e a sociedade às exigências do capitalismo monopolista. "Coerente com sua lógica econômica e política – afirma Florestan Fernandes -, o poder burguês fez da iniciativa privada e de seu sistema um verdadeiro bastião, que protege e une os interesses privados internos e externos (agora associados ao poder público também ao nível econômico). Em nome do ‘desenvolvimentismo acelerado’, ampliou-se e aprofundou-se, portanto, a incorporação da economia nacional e das estruturas nacionais de poder à economia capitalista mundial e às estruturas capitalistas internacionais de poder".
No âmbito externo, a consolidação das bases materiais e políticas do capitalismo monopolista deu à burguesia brasileira o poder de barganha necessário para negociar, com as grandes empresas transnacionais e com as nações hegemônicas, o ritmo e a intensidade de incorporação das estruturas e dos dinamismos difundidos pelo centros hegemônicos do sistema capitalista mundial. Ela conseguia, assim, preservar o controle sobre a matriz espacial e temporal do espaço econômico nacional. Evitava-se, assim, o risco de uma reversão neocolonial. Nas palavras de Florestan Fernandes, "(...) as burguesias ‘nacionais’ das sociedades de classes dependentes e subdesenvolvidas não socializam para fora todo o seu poder político e, especialmente, (...) não cedem à dominação externa e à imperialização as posições que são estratégicas para o controle político do desenvolvimento capitalista dependente. Elas aceitam e até incentivam a articulação de interesses burgueses internos e externos, que pareçam refundir o poder burguês ao nível econômico, aumentando, em conseqüência, a sua flexibilidade e eficácia como fonte de dinamização da dominação burguesa em geral".
No plano interno, a desobstrução de qualquer tipo de barreira ao império do dinheiro permitiu que a burguesia assumisse sem hesitação o papel de paladina da civilização capitalista. Ao abandonar a filosofia de "dar tempo ao tempo", de acordo com a qual o processo de modernização deveria ser impulsionado de maneira relativamente espontânea, a burguesia assumiu a responsabilidade pela "aceleração da história", mobilizando todas as energias da sociedade para viabilizar a expansão do capitalismo monopolista. Desde então, ao invés de forçar os segmentos mais "modernos" a compor com os mais "atrasados", passou a ocorrer o contrário: a acomodação dos grupos "atrasados" às exigências dos "modernos". O Brasil entrava definitivamente na era do "(...) ‘desenvolvimentismo extremista’, a verdadeira moléstia infantil do capitalismo monopolista na periferia".
Não obstante a conquista de um certo grau de autonomia relativa e a capacidade de imprimir um elevado dinamismo ao processo de acumulação, o desenvolvimento do capitalismo monopolista no Brasil revelou-se totalmente incapaz de transcender o status quo. De um lado, a persistência de bloqueios extra-econômicos à monopolização do capital e a perpetuação de mecanismos de acumulação primitiva comprometeram o papel criativo da concorrência econômica como mola propulsora da introdução e difusão de progresso técnico. Por essa razão, apesar do aprofundamento da industrialização pesada, o desenvolvimento capitalista continuou sendo um processo induzido de fora para dentro, incompatível com a reprodução de mecanismos de solidariedade orgânica entre as classes sociais. De outro lado, ao tornar o circuito político hermético a qualquer tipo de contestação da ordem, a burguesia brasileira perdeu todo seu potencial reformista. A questão nacional e a questão democrática foram simplesmente deslocadas da vida política nacional. A primeira converteu-se no dilema da preservação da liberdade de ação da burguesia e a segunda, no desafio de garantir a continuidade da "ordem".
A necessidade de compensar a extrema pulverização das classes dominantes e de suprir a sua incapacidade de ação coletiva por intermédio de uma "unidade tática" para a autodefesa da ordem fizeram com que, no momento de ascender ao topo do aparelho de Estado e impor a sua visão de mundo ao país, a burguesia brasileira se tornasse intrinsecamente antinacional, antisocial e antidemocrática. Transformado em um mero instrumento de controle da sociedade e do espaço geográfico do país, o Estado burguês ficou irremediavelmente comprometido com a defesa dos interesses mesquinhos e particularistas da plutocracia brasileira. É a afirmação do poder burguês como uma contra-revolução permanente que transforma a superação do capitalismo dependente no único meio de abrir novas perspectivas para o Brasil.
O "excedente de poder" derivado da força autocrática não é uma característica circunstancial e secundária do Estado burguês no Brasil, mas um requisito indispensável a sua própria sobrevivência, na verdade, o único meio de que as classes burguesas dispõem para controlar os ritmos do desenvolvimento dependente. "Em última instância – diz Florestan Fernandes -, é nesse modelo autocrático de Estado capitalista que acaba residindo a ‘liberdade’ e a ‘capacidade de ação racional’ da burguesia dependente. Ele confere às classes e aos estratos de classe burgueses não só os fundamentos da existência e da persistência da dominação e do poder burgueses, depois de atingido um ponto crítico à sobrevivência da sociedade de classes. Mas, ainda, o que é mais importante: ele lhes dá o espaço político de que elas carecem para poder intervir, deliberada e organizadamente, em função de suas potencialidades relativas, no curso histórico da Revolução Burguesa, atrasando ou adiantando certos ritmos, bem como cindindo ou separando, entre si, seus tempos diferenciados (econômico, social e político). Sem o controle absoluto do poder, que as classes burguesas podem tirar da constituição desse Estado, seria inconcebível pensar-se como elas conseguem apropriar-se, com tamanha segurança, da enorme parte que lhes cabe no excedente econômico nacional, ou ainda, como elas lograram dissociar, quase a seu bel-prazer, democracia, desenvolvimento e revolução nacional".
A análise anterior demonstra que a burguesia brasileira só foi capaz de consolidar seu padrão de dominação e de adquirir um mínimo de controle sobre o desenvolvimento dependente devido a uma conjuntura histórica muito particular, marcada pela internacionalização da luta de classes e pelo vigoroso dinamismo do processo de industrialização. Enquanto tais condições permanecessem, o capitalismo dependente gozaria de relativa estabilidade.
No plano externo, o poder de negociação da burguesia nativa não pode ser dissociado do fato de que o capital internacional e as grandes potências hegemônicas precisavam de parceiros relativamente fortes no Brasil. As exigências do processo de internacionalização dos mercados internos de espaços econômicos nacionais bem delimitados, protegidos do risco de pressões nacionalistas e redistributivistas, e a necessidade de zonas de influência que funcionassem como um cinturão de proteção contra a ameaça de revoluções socialistas criavam uma solidariedade entre os interesses burgueses internos e externos na consolidação da revolução burguesa no Brasil. Florestan sintetizou a questão da seguinte forma: "(...) a ‘fraqueza’ das burguesias submetidas e identificadas com a dominação imperialista é meramente relativa. Quanto mais se aprofunda a transformação capitalista, mais as nações capitalistas centrais e hegemônicas necessitam de ‘parceiros sólidos’ na periferia dependente e subdesenvolvida – não só de uma burguesia articulada internamente em bases nacionais, mas de uma burguesia bastante forte para saturar todas as funções políticas autodefensivas e repressivas da dominação burguesa. Essa necessidade torna-se ainda mais aguda sob o imperialismo total, inerente ao capitalismo monopolista, já que, depois da Segunda Guerra Mundial, ao entrar numa era de luta pela sobrevivência contra os regimes socialistas, tais nações passaram a depender das burguesias nacionais das nações capitalistas dependentes e subdesenvolvidas para preservar ou consolidar o capitalismo na periferia. As burguesias nacionais dessas nações converteram-se, em conseqüência, em autênticas ‘fronteiras internas’ e em verdadeiras ‘vanguardas políticas’ do mundo capitalista (...)".
No plano interno, o expressivo crescimento da economia funcionou como um importante mecanismo de estabilidade da ordem. Ao abrir amplas possibilidades de acomodação dos interesses econômicos divergentes, a elevação do excedente social evitou que o processo de ajuste entre setores modernos e atrasados provocasse disputas fratricidas que pudessem comprometer o monolitismo das classes dominantes. Paralelamente, a expansão dos empregos vinculados às atividades de maior produtividade criou mecanismos de mobilidade social que funcionaram como importante mecanismo de legitimação da ordem junto às classes populares. Ao alimentar o mito do crescimento como solução dos problemas do país, o elevado dinamismo econômico dificultou a generalização da crítica às mazelas do subdesenvolvimento. Nas palavras de Florestan Fernandes, "O crescimento econômico, o aumento de empregos, a modernização tecnológica, a elevação progressiva da renda ou dos padrões de consumo etc. só se tornam visíveis através de símbolos internos, que são, além disso, manipulados para ofuscar a consciência crítica das classes oprimidas e ganhar a adesão das classes médias. Ela (a consciência das classes oprimidas) projeta, desse modo a condição burguesa para fora da burguesia e implanta, no coração mesmo de seus inimigos de classe, identificações e lealdades mais ou menos profundas para com o consumismo, a ordem social competitiva e o Estado ‘democrático’ e ‘nacional’."
Embora ainda incipientes, uma série de evidências indica que a globalização tende a solapar os suportes externos e internos do Estado autocrático burguês, deflagrando um processo de reversão neocolonial. Por isso, a decisão de sancionar as tendências imanadas dos centros hegemônicos, ajustando a economia e a sociedade aos imperativos do grande capital financeiro internacional e aos caprichos da ordem internacional imposta pelos Estados Unidos, desencadeia processos desestruturantes que comprometem o futuro da sociedade brasileira.
Quando a perversidade da inserção subalterna no processo de globalização dos negócios ainda iludia muita gente, Florestan Fernandes já denunciava com firmeza a natureza ultraregressiva e a lógica de pilhagem do desenvolvimento capitalista em curso. Comparando o ciclo de modernização impulsionado pela liberalização da economia com o que fora impelido pela industrialização por substituição de importações, o autor resumiu a questão nos seguintes termos: "O quarto ciclo de modernização é recente e tende a multiplicar-se, pela falta de mentalidade capitalista autônoma e de responsabilidade cívica das classes dominantes. As exigências de premissas para o desenvolvimento limitam-se às nações centrais e seus blocos econômicos. Desencadeia-se uma modernização de dupla face: produtos sofisticados importados e transferência para fora de fortunas especulativas e bens econômicos. Ao contrário do ciclo anterior, não há necessidade de formação de uma infra-estrutura específica. A reprodução do sistema de produção encerra-se no exterior. O país torna-se mais periférico, combina dependência com múltiplas malhas neocoloniais e sucumbe nas garras de imposições regressivas, das quais resulta o atual pós-moderno. Esperar o quê desse estilo de desenvolvimento capitalista tão devastador?".
Duas mudanças no regime de classes são suficientes para caracterizar por que a inserção subalterna no processo de globalização dos negócios compromete o futuro do Brasil como projeto civilizatório. De um lado, o novo contexto histórico reduz dramaticamente a autonomia relativa da burguesia brasileira, diminuindo perigosamente sua capacidade de defender o espaço econômico nacional e de negociar os termos de sua inserção na economia mundial. De outro, a desarticulação da industrialização por substituição de importações quebra os mecanismos de mobilidade social, tornando extremamente problemática a legitimidade do regime burguês. Donde o prenúncio de um período turbulento. "Encontramo-nos - adverte Florestan Fernandes - em um ciclo final, não em um ponto de partida, embora fim e começo apareçam entrelaçados. Essa vem a ser a reflexão que deve guiar o horizonte intelectual dos trabalhadores e sindicalistas brasileiros. Oprimidos e marginalizados dos centros de decisão do poder, compete-lhes lutar com ardor para impedir que a civilização capitalista dos trópicos se reproduza indefinidamente como o malho que esmaga a cabeça dos pobres. (...) Até o presente, as classes burguesas dominaram as transformações da sociedade e da civilização. Agora, os trabalhadores, com apoio em grupos aliados, precisam recriar o mundo a sua imagem. Ou ceder à barbarização sem precedente de sua existência social".
A decomposição do poder de barganha da burguesia no plano internacional associa-se basicamente a dois fenômenos. Em primeiro lugar, as exigências para participar da globalização - plena liberdade de movimento do capital, liberalização indiscriminada do comércio exterior, equiparação de tratamento entre o capital nacional e estrangeiro, privatização da economia, desregulamentação generalizada da atividade econômica – deixam o país totalmente vulnerável às exigências e às chantagens do grande capital financeiro internacional. Em segundo, o colapso da União Soviética e a crise do movimento socialista, ao afastarem a ameaça imediata de projetos políticos alternativos que pudessem questionar a absoluta hegemonia do capitalismo e ao franquearem o espaço para que os Estados Unidos pudessem dar livre curso à sua vocação imperial, deixavam as economias periféricas ao sabor do arbítrio de uma ordem internacional arbitrária e unilateral.
Sem raio de manobra para negociar os termos da dependência, a burguesia brasileira é atropelada pelas transformações irradiadas dos centros capitalistas, o que põe em questão a sua própria sobrevivência como classe dominante. Abre-se, em conseqüência, uma conjuntura de grande instabilidade social e de crise política latente.
Por um lado, a desarticulação do sistema produtivo nacional, a acelerada desnacionalização da economia e o desmantelamento dos centros internos de decisão ameaçam a posição da burguesia brasileira na sociedade. A dimensão da mudança em curso pode ser avaliada pela rapidez impressionante com que a burguesia brasileira está sendo transformada de sócia privilegiada do capitalismo monopolista em mera intermediária comercial do grande capital financeiro que controla o processo de globalização. A distância entre uma burguesia dependente e uma burguesia compradora pode ser avaliada objetivamente - em termos do grau de instabilidade econômica, social e política que a hegemonia de cada uma delas representa para o país – pela distância que existe entre um espaço econômico nacional – o horizonte de atuação da primeira – e um simples espaço mercantil – a referência da Segunda. Enfim, a diferença entre a burguesia dependente e a nova burguesia compradora patenteia-se no abismo que existe entre industrialização subdesenvolvida – o objetivo estratégico da primeira - e simples entreposto de negócios – o único interesse da segunda. É a percepção desta diferença que levou Florestan Fernandes a escrever, em um de seus últimos artigos: "A globalização, para o Brasil, tem um sentido de sinal ultranegativo. Extensa parte de nossas classes dominantes experimentará as agruras das velhas burguesias compradoras. O ‘neoliberalismo’ difunde mitos inferiores aos do ‘um mundo só’ e da ‘aliança para o progresso’. Pregam-se, por isso, fórmulas insensatas como o ‘Consenso de Washington’. O intervalo técnico, que separa a economia automatizada e informatizada do sistema produtivo montado sob os desígnios da substituição de importações, possui proporções tão descomunais que não há como conceber tamanho salto econômico-tecnológico fora do âmbito dos antigos ‘negócios da China’".
Por outro lado, os efeitos devastadores da globalização
sobre o mundo do trabalho tendem a transformar o país em uma verdadeira
panela de pressão. A reversão da tendência à
diminuição do subemprego estrutural (que acompanhou o movimento
de industrialização), o aparecimento de elevadas taxas de
desemprego aberto - um fenômeno inusitado na história moderna
do Brasil - e a acelerada precarização do emprego formal
liquidam o único fio de esperança que o capitalismo dependente
dá às classes subalternas: a expectativa de mobilidade social
gerada pelo crescimento econômico. A globalização cria,
assim, uma situação paradoxal. Ao mesmo tempo em que o pólo
trabalho assiste impotente ao rápido enfraquecimento de suas organizações
sindicais e políticas, o pólo capital, que no passado nunca
se distinguiu pela capacidade de alimentar seus escravos, tende a enfrentar
crescentes dificuldades para iludi-los indefinidamente. Donde a contundente
conclusão de Florestan Fernandes: "Com o deslocamento da importância
do trabalho para a tecnologia e as tendências ao crescimento rápido
da exclusão do trabalhador excedente e do pauperismo, a composição
do capital só deixa abertas duas saídas – a revolução
social, para os assalariados, e uma autocracia de corte fascista, para
os manipuladores do capital e das empresas gigantes".
Referências:
_____ Mudança social no Brasil. Rio de Janeiro: Difel. 1979
_____ A Nova república. Rio de Janeiro: Zahar, 1985
_____ O que é revolução. São Paulo. Brasiliense, 1981