..2002.2.7
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'Consistência macroeconômica'? 
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Folha de S Paulo, 02.2.7:B2
Argentina: desdolarização e dívida externa 
Paulo Nogueira Batista Jr

Nesta semana, não preciso (creio) pedir licença para tratar da Argentina outra vez. Há poucos dias, o governo Duhalde anunciou um programa de grande envergadura, que praticamente completa a desdolarização da economia argentina, antiga reivindicação desta coluna. Seria até estranho não escrever sobre o assunto hoje, certo?

Só ontem tive tempo de examinar com mais cuidado as decisões anunciadas no domingo e que vêm sendo especificadas e implementadas ao longo da semana. A confusão é tão grande que dá até uma certa angústia. Em meus vinte e poucos anos como economista profissional, raras vezes vi um governo começar com uma herança tão desastrosa quanto a que Duhalde e Lenicov receberam da era Menem-Cavallo. A única exceção recente talvez seja o novo governo do Afeganistão pós-Taleban.

Além disso, o novo governo, pressionado por demandas contraditórias, está longe de ser um modelo de consistência e determinação --para dizer o mínimo. A orientação geral é correta, mas algumas das novas medidas são duvidosas. Por exemplo: não há motivo para proibir a indexação, por um índice de preços ao consumidor, dos contratos novos de prazo superior a um ano (aluguéis, empréstimos, tarifas de serviços púbicos etc.). E não se deveria permitir, com poucas e bem definidas exceções, que sejam denominados em moeda estrangeira novos contratos e operações financeiras dentro da Argentina.

Outro exemplo: teria sido melhor (embora talvez impossível do ponto de vista político) realizar a pesificação de forma simétrica, convertendo empréstimos, depósitos e demais contratos internos de dólares para pesos pela paridade unitária.

Ao pesificar os depósitos em dólares à taxa de 1,40 e os empréstimos bancários à taxa de 1 peso por dólar, o governo agrava o desequilíbrio das instituições financeiras. O governo anuncia então que arcará com o grosso do prejuízo resultante dessa pesificação assimétrica. A dívida interna, renegociada no apagar das luzes da gestão Cavallo, algo como US$ 50 bilhões, também será pesificada à taxa de 1,40, em parte para aliviar a situação dos credores bancários domésticos do Estado argentino. Evidentemente, essas medidas contribuem para agravar ainda mais a deplorável situação das contas do setor público.

Mas, enfim, nas circunstâncias da Argentina hoje, "consistência macroeconômica" é uma exigência utópica ou, o que é mais comum, uma fachada respeitável para as reclamações de interesses contrariados. Os EUA, a União Européia e o FMI, por exemplo, não podem vir a público simplesmente exigir que a Argentina trate com mais cuidado e preserve os privilégios das filiais argentinas de empresas e bancos europeus ou norte-americanos. Mas podem, tranquilamente e com ares de grande seriedade, reclamar a quatro ventos um programa econômico "coerente e sustentável", em contraste marcado, diga-se de passagem, com a paciência chinesa que tiveram, anos a fio, com as inconsistências e barbaridades da macroeconomia do ex-ministro Cavallo.

De qualquer maneira, o que vimos até agora é só o começo do drama. Uma das questões fundamentais, ainda pendentes, é a da dívida externa da Argentina. Por enquanto, esse aspecto da crise argentina tem sido pouco comentado, mas não demorará a surgir com força. Vai ser uma batalha. E o Brasil, por motivos óbvios, terá de acompanhá-la com muita atenção e, na medida do possível, apoiar a Argentina.

Veja, leitor, a gravidade desse problema. Na prática, nem todas as dívidas em moeda estrangeira podem ser pesificadas. Em teoria, tudo parece possível, e papel aceita qualquer coisa. O venezuelano Ricardo Hausmann, ex-economista do BID e antigo defensor da dolarização, teve recentemente uma luz e converteu-se à defesa da desdolarização da Argentina. Como todo cristão-novo, Hausmann logo exagerou e sugeriu a pesificação unilateral de todas as dívidas externas argentinas, excluindo-se as obrigações com o FMI, o Bird e o BID.

Mas como poderia a Argentina fazer passar um golpe desses? Na impossibilidade prática de recorrer a uma lei ou a um decreto argentino para redenominar em moeda nacional contratos internacionais, sobrou um problema espinhoso.
Na realidade, a insolvência do governo argentino já era evidente desde fins de 2001. Até o ex-ministro Cavallo, depois de muita relutância e diversas manobras financeiras ruinosas, foi obrigado a reconhecer a incapacidade de pagamento do Estado, a reestruturar a dívida pública interna, como já mencionado, e a anunciar a intenção de renegociar a dívida pública externa. Depois da renúncia de De la Rúa, o governo suspendeu o pagamento da maior parte da dívida externa.

Com a desvalorização cambial, inicialmente de 1 para 1,40 peso por dólar, e sobretudo agora com a flutuação cambial, que começará dentro de alguns dias, o problema tornou-se dramático. Pelo menos numa primeira fase, a desvalorização provocará diminuição substancial da já reduzida capacidade de pagamento do Estado argentino. O governo nacional e as Províncias, cujas receitas são essencialmente em moeda nacional e desvinculadas da taxa de câmbio, estão sofrendo um forte aumento do equivalente em moeda nacional das suas obrigações externas. Com a passagem para a flutuação e a provável queda adicional do peso, ficará ainda mais difícil saldar as dívidas externas e não-pesificadas. Será inevitável renegociar de forma abrangente as dívidas internacionais do setor público argentino.

O mesmo se aplica a uma parte dos bancos e empresas privadas endividadas no exterior. O problema é menos grave, ou até inexistente, para aqueles devedores que fizeram o seu "hedge" no exterior (leia-se, transferiram recursos para fora a tempo) ou para as empresas que exportam ou concorrem com importações no mercado nacional e que se beneficiam, pelo lado operacional, da depreciação cambial. Mas pode-se admitir que grande parte dos devedores privados argentinos também terá dificuldade de saldar suas obrigações externas.

Perto do que a Argentina tem pela frente, a crise da dívida externa latino-americana dos anos 80 parecerá um piquenique no parque.


Paulo Nogueira Batista Jr., 46, economista e professor da Fundação Getúlio Vargas-SP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela é..." (Boitempo Editorial).

E-mail - pnbjr@attglobal.net

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