Folha de S Paulo, 2002.4.12 Ilustrada:E20
LIVRO/LANÇAMENTO
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"PEQUENAS CRIATURAS" Contos
do escritor mineiro apresentam a vida como enredo melancolicamente cômico
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Fonseca
volta com lucidez que cega
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Muitos personagens do novo volume de contos de
Rubem Fonseca têm algo a dizer sobre a vida.
"A vida é assim", afirma o velho de "A Escolha", "ninguém
consegue tudo o que quer". Ou: "A vida é um jogo de soma zero",
como sentencia o amante de "Soma Zero". Ou, segundo o enlouquecido protagonista
de "Sucesso": "A vida não é uma anedota com final feliz".
Mas não é somente sobre a vida em
geral que discursam. Eles fornecem sua opinião sobre a família,
a televisão, a vigarice e, é claro, sobre os homens e as
mulheres. "As mulheres são seres estranhos, adoram patifes que sejam
bondosos e engraçados", observa o herói de "O Garoto Maravilha".
"Os homens são muito tolos, muito mais vaidosos do que as mulheres",
assegura a heroína de "O Pior dos Venenos".
O que chama a atenção é a
atitude dogmática com que eles expressam esses juízos de
valor. Os personagens de Fonseca são assertivos, arrogantes, seguros
de si, intolerantes. Agem como se um excesso de lucidez os cegasse. Emitem
generalizações e se comportam de uma forma tão análoga
que se confundem entre si. O larápio de "Meu Avô" se parece
com a coquete de "O Pior dos Venenos" que se parece com o ator de "Miss
Julie" que se parece com o conquistador de "Caderninho de Nomes".
Essa característica não desmerece
em princípio a prosa de Fonseca. O romancista americano Henry James
também foi criticado por não diferenciar muito seus personagens.
Eles pensariam, agiriam e falariam de modo semelhante. James procurava
um tipo especial de personagem por meio do qual poderia apresentar suas
histórias: alguém bastante inteligente para refletir a situação
retratada, mas não inteligente demais a ponto de deixar de se surpreender
com seus desdobramentos.
Fonseca também parece buscar um herói
determinado: um ser, como vimos, convicto de suas opiniões, que
enxerga o mundo com uma simplicidade atroz e, na maioria das vezes, age
por impulso e por instinto. Em consequência,
podemos nos apoiar sobre seus ombros e ver a situação que
o envolve com maior clareza do que ele próprio.
Quando crê dominar a realidade, esta o ilude
e lhe dá o troco, seja obrigando-o a aceitar seu destino, seja apanhando-o
de surpresa. O ator de "Miss Julie", por exemplo,
acha que compreendeu o jogo estabelecido entre ele e uma suposta prostituta,
mas esta mostra que o enganara o tempo todo. A viúva caridosa de
"Virtudes Teologais" aplaca sua consciência esmolando os pobres até
ver que a realidade era muito mais complexa. A aceitação
do destino ainda pode se dar por meio da vingança, com a eliminação
do objeto do ódio, como em "Ganhar o Jogo" e "Nove Horas e Trinta
Minutos".
Iludir ou ser iludido: essa é a única
opção que se oferece aos personagens. Adversários
num jogo que geralmente não dominam, seu destino é a solidão,
como define Saturnino Vieira de "Ilha": "Todo
homem é uma ilha [...". Todos os prazeres eram fugazes. Todo diálogo
era de surdos. Ninguém entendia ninguém".
No universo cinicamente pessimista, melancolicamente
cômico criado por Rubem Fonseca, as pessoas são muito menores
que a vida. Por causa de sua miopia intelectual, julgam dominá-la
e acabam frustradas por ela. Só resta a essa gente comezinha arrotar
certezas. Que, sabemos, não a redimirão.
Rubem Fonseca Pequenas
Criaturas Companhia das Letras