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A EMURB versus a construção da cidade democrática
João Sette Whitaker Ferreira *
A EMURB lançou um concurso nacional para colher propostas de "reconversão urbana" para o Largo da Batata. Concursos públicos de urbanismo parecem uma forma democrática de renovação da cidade. Porém, podem favorecer interesses de uns mais do que de outros. Nesse caso, acabam sendo mais um obstáculo para a (re)construção de uma cidade verdadeiramente democrática.Um concurso nunca deixa a seus participantes a liberdade de pensar a cidade do jeito que quiserem: a prefeitura estabelece as orientações urbanísticas a serem seguidas. Como o espaço urbano é resultado de uma dinâmica que envolve muitos interesses, cabe ao Poder Público garantir que os que usam a cidade, mesmo os mais pobres, sejam sempre ouvidos. Neste caso, seria de se esperar que o concurso tivesse sido precedido de amplo debate com a sociedade civil usuária do Largo, a fim de se traçar democraticamente as diretrizes para a região, a partir da demanda popular. Infelizmente, isso não aconteceu. Talvez a Emurb não tenha percebido que faz assim um urbanismo ultrapassado, cujas decisões são tomadas dentro de gabinetes, longe da realidade. Seria possível que, ainda assim, seus técnicos tenham tido sensibilidade para definir diretrizes que correspondam à idéia de construção de uma cidade democrática? Não parece, já que o edital omite duas diretrizes fundamentais nesse sentido: a provisão de habitações de interesse social e a manutenção do perfil popular da região.
A provisão de habitações de interesse social em áreas centrais, e não mais nas periferias distantes, é uma exigência para a redemocratização urbana, como também uma necessidade ambiental intransponível. Áreas centrais como o Largo são caras de se morar, e inacessíveis à população pobre. Por isso, fazer uma "reconversão" urbanística ali sem prever habitações sociais, é aprofundar o processo de expulsão dessa população, a quem só resta ocupar áreas de proteção ambiental, onde o mercado imobiliário não as incomodará. Na gestão Maluf, quando uma favela foi retirada para dar espaço aos edifícios da Av. Berrini, caminhões da prefeitura levaram os moradores para as margens da Guarapiranga, em área de mananciais. Agora, a EMURB está esquecendo – assim como Maluf e Pitta esqueceram – que 10% dos recursos da extensão da Faria Lima deveriam ser destinados, por lei, à construção na área de habitações de interesse social.
Muitos acham que o aspecto "decadente" do Largo se dá pelo seu caráter popular. Na verdade, as milhares de pessoas que circulam por lá lhe garantem uma intensa vivacidade. Entretanto, parece que justamente por isso ele é visto como um "tampão" para o crescimento da moderna e asséptica Av. Faria Lima. Seria de enorme interesse para o mercado imobiliário que o largo popular sumisse do mapa. Ora, a decadência do Largo não é resultado do uso popular, mas do seu abandono pelo Poder Público, que quando resolve intervir na área, é para favorecer interesses precisos. Para implementar a "modernização" da avenida, Paulo Maluf criou a Operação Urbana Faria Lima, sobre a qual o Estadão de 25/06/95 noticiava: "A região do Largo da Batata, dominada por casas simples e comércio popular, terá valorização mínima de 100% quando as obras da Faria Lima estiverem concluídas. Entre os proprietários que vão se beneficiar com a explosão imobiliária da área está o advogado e empresário Calim Eid, coordenador de duas campanhas eleitorais de Paulo Maluf, e que tem pelo menos 20 imóveis na região". Sete anos depois, o edital do concurso exige a "compatibilidade das propostas com as normas urbanísticas estabelecidas na Operação Urbana Faria Lima". A diretriz então é dar espaço à Operação Faria Lima? Qual jogo a EMURB está jogando, o do mercado imobiliário?
Após 20 anos de luta dos setores ligados à questão urbana, o Congresso aprovou o Estatuto da Cidade, que estabelece instrumentos urbanísticos e jurídicos fundamentais para garantir a função social da propriedade urbana e a diminuição da exclusão espacial. Sua aplicação nas cidades, entretanto, depende ainda de regulamentação municipal. Ora, não seria melhor o Município aproveitar-se do concurso para pedir aos participantes que adiantassem alternativas que esses instrumentos poderiam propiciar? Mas o Edital estabelece que as propostas não podem depender de qualquer alteração da legislação urbanística municipal vigente. Na pressa de favorecer os interesses de expansão da Faria Lima, ignora-se o Estatuto da Cidade que logo virá, e perde-se uma grande oportunidade de aprendizado sobre como fazer planejamento urbano democrático.
No mínimo, pode-se dizer que esse concurso, na maneira como está sendo proposto, é um grande equívoco.
*João Sette Whitaker Ferreira é arquiteto/urbanista e economista, professor de Planejamento Urbano da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, e pesquisador do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da FAUUSP.
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