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BRASIL®Pedro Fiori Arantes
Arquiteto, pós-graduando FAUUSP
2000Passada a perplexidade com as notícias e declarações dos últimos dias de repressão e truculência com índios, negros, sem-terra e estudantes - e que é a parte da história brasileira que se repete -, é hora de nos perguntarmos sobre o que há de novo em tudo isso.
Não é difícil notar que, desde o início do ano, estamos sendo submetidos a uma campanha publicitária e ufanista gigantesca disposta a vender um produto. A operação montada pelo governo, mídia, editoras e fundações privadas para a comemoração dos 500 anos é na verdade uma mega-operação mercadológica para vender a marca Brasil. A imagem do país é o novo tema do espetáculo publicitário.
E não por acaso, é no momento em que o Brasil entra “na moda” que se procurarmos pelo Brasil real, não mais o encontraremos - quase tudo já foi vendido e a carcaça social entra em decomposição. A abertura econômica, as privatizações, a desregulamentação e a desnacionalização ao mesmo tempo que são, na aposta do governo, a garantia da nova modernidade, representam o fim de qualquer controle sobre o destino do país. A Anatel, por exemplo, acaba de declarar que é “impossível fiscalizar” a instalação de telefones públicos a que estavam obrigadas por contrato as empresas estrangeiras de telefonia, e assim cidades pequenas, hospitais, escolas, periferias, vilas rurais estão sem orelhões e incomunicáveis. Como era previsível, só interessa vender telefones para quem pode pagar.
As relações públicas vão se transformando em relações de mercado, para o qual só interessam os cidadãos solventes. A verdade é que a modernidade ao alcance de poucos, e o abandono e a anomia para os demais, foi criando um processo progressivo de cisão entre os tradicionais “dois Brasis”, que um dia se combinaram, mesmo que de forma desigual. A separação cada vez maior entre os extremos abriu um fosso onde não há mais nada “em comum”, tornando quase impossível ainda vislumbrar uma nação.
No dia 23 de abril, foi publicada uma pesquisa sobre “O que o brasileiro sonha para o futuro do país”. Entre as diversas enquetes, uma que me pareceu bastante significativa e que não mereceu comentários dos analistas foi a seguinte: em resposta à pergunta “Qual a importância do Brasil no mundo hoje e no futuro?”, apenas 3% disse que o país hoje não tem “nenhuma importância”, enquanto 19% respondeu que não terá “nenhuma importância” no futuro. A seqüência da pesquisa, pautada pela idéia de “superpotência”, acaba não investigando porque um quinto da população acha que o país será varrido do mapa.
Continuemos nos jornais. Uma matéria publicada há alguns meses na Folha com o título “O reverso da fortuna”, constatou que a nova política econômica produziu uma mudança significativa na elite nacional: os capitães de indústria haviam vendido suas empresas para grupos estrangeiros e agora se dedicavam a viver de renda e cultivar seus “hobbies”: criar e apostar em cavalos, fazer pescaria em alto mar, jogar golfe, investir no mercado de artes, e até se dedicar à filantropia. Os antigos industriais passaram a viver apenas de aplicações financeiras, emprestando dinheiro para o governo e produzindo uma nova forma de patrimonialismo. Enquanto os juros estiverem altos para manter a equação instável da estabilidade econômica, essa elite vai drenando parte da riqueza nacional.
Ao mesmo tempo, forma-se uma jovem e agressiva classe de executivos, filhos e netos desses empresários de pijama, que inicia sua carreira não mais com negócio próprio ou familiar, mas em companhias de serviços de consultoria, auditoria, finanças e advocacia para corporações estrangeiras. Essa classe de jovens yuppies que orbita em torno de empresas cujo comando está muitas vezes fora do país, acaba se identificando com os propósitos dessas companhias e se dessolidarizando completamente com o destino dos despossuídos e do próprio país, a ponto de especular no cassino financeiro contra a moeda brasileira.
Vendido a retalho e submetido a uma ditadura invisível, o país real aos poucos vai desaparecendo. Não há mais imperialismo ou dependência como antes, o que pressupunha ao menos a existência de uma nação subordinada e associada. Com a promessa de se tornar moderno, o país está se convertendo em um não-país, e definitivamente em território transnacional. Desfeita a idéia republicana de nação, o Brasil retorna ao seu estágio anterior de “ilha mercantil”, e assim ficamos cada vez mais próximos do nosso “sentido” original de colônia.
Pois é nesse momento que surge uma campanha milionária para criar a marca Brasil. No lugar do país real, aparece um simulacro de país, que reaproveita todos os clichês de identidade nacional para ser vendido como mercadoria no comércio mundial das diversidades. Entram então em ação os intelectuais e artistas: quando não sobra mais nada, só nos resta o país como cultura - que também se vende. Cabe a eles criar a imagem de algo que já foi. E aí, tudo vira folclore em meio a brindes oficiais regados a cachaça: a cultura das classes subalternas vira dança étnica, ritual religioso, pintura primitivista, ex-voto, artesanato.
Folclorização dos oprimidos cuja correspondência é o encastelamento dos opressores. Não é casual que o mercado de segurança particular e de helicópteros seja um dos que mais cresce nas grandes cidades. Enquanto o Brasil é vendido como um caldeirão étnico reconciliado, retomando o mito da democracia racial e da tolerância dos poderosos, os ricos se protegem, batem e matam cada vez mais, exigindo do Estado “tolerância zero”. Afinal, é pela ação do Estado, com a colaboração dos meios de comunicação, que as bolhas de riqueza dos integrados ainda permanecem relativamente intactas, com seus habitantes fingindo viver num filme americano.
Em Porto Seguro, exército, polícia, governo e televisão conseguiram impedir os oprimidos de entrar em cena, produzindo um FHC Show ao estilo de Truman. Ao chamar o MST de “fascista” e reprimir as manifestações de oposição, FHC reedita como farsa a “doutrina da segurança nacional”, uma vez que não há mais nação e o adjetivo nacional só existe no plano da imagem. A função do exército não está mais relacionada ao campo da ideologia, como na ditadura, e é cada vez mais elementar: proteção patrimonial de empresas e da minoria integrada contra os miseráveis que de vez em quando saem dos porões e ensaiam um quebra-quebra.
A marca Brasil produz assim um nacionalismo de fantasia. A nossa elite vai se transformando no que sempre foi: uma “aristocracia do nada” de “fazendeiros do ar” - percorre as ruas em seus carros blindados assistindo à paisagem desoladora de fome e violência sem reconhecer ali mais nenhum projeto de vida pública em comum. Comporta-se como ingleses na Índia e transforma o Brasil em pedra muiraquitã de seu museu particular.
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