Globalização ou crise
global?
Csaba Deák
FAUUSP, 2000 Apresentado no Seminário Internacional GLOBALIZAÇÃO E ESTRUTURA URBANA, FAUUSP, 9-10 setembro de 1997, São Paulo, FAUUSP e em forma revisada e com o acréscimo da seção 7, no Encontro Nacional da ANPUR, 2001, Rio de Janeiro |
![]() Breughel Torre de Babel |
1 A palavra e o conceito
2 Os clássicos 3 A dialética da forma-mercadoria 4 Crises, estágios de desenvolvimento e a intervenção do Estado 5 Globalização e a nação-Estado 6 A globalização no Brasil 7 São Paulo, cidade mundial? |
1 A palavra e o conceito18 maio 1993 – A Dinamarca, após muitas hesitações, reticência e garantias recebidas, cedeu à pressão do pânico coletivo e disse sim a Maastricht. Mas o Tratado continua sendo um pecado mortal na consciência de muitos signatários, e um pesadelo ainda mais angustiante para as almas do resto …Miguel Torga, Diário, Vol. XVIA unificação é ainda sòmente um nome, uma marca registrada. Ninguém pode avaliar os benefícios reais de uma associação como essa. Se nós estamos falando de um novo uniforme, uma nova côr unificada, então eu estou fora. A Europa é feita de muitos campos que trazem muitas flores de múltiplas cores e de muitas espécies diferentes.István Szabó, Entrevista, 25ª Semana do Cinema, Budapest 1994To sum up, what is Free Trade under the present conditions of society? Freedom of capital.Marx, Speech at the Democratic Association of Brussels, January 9, 1848
Globalização acabou se tornando uma das palavras-chave mais em voga dos anos oitenta e sobrevive nos anos noventa, ao lado de outras tais como, ‘privatização’, ‘ecologia’, ‘desenvolvimento sustentado’ ou o ‘fim da história’, além dos inúmeros neo- e pós- -ismos, como neo-liberalismo, pós-fordismo, pós-industrial ou pós-moderno. No entanto, no caso da globalização assim como no dos demais neologismos citados, uso frequente ou largamente difundido não é garantia de significado claro ou sequer emprego consistente. De maneira geral, neologismos são utilizados como se fossem novos conceitos quando na verdade procuram apenas encobrir o sentido de conceitos pré-existentes bem definidos, substituindo-os. Eis como no início dos anos 70 Hugo Radice argumentava contra o uso da expressão 'firmas multinacionais' ao invés de 'internacionais':
Afim de demarcar o terreno de sua definição, e também
a guisa de introdução, vamos passar em breve revista os possíveis
significados da palavra globalização, ou mais exatamente,
os significados compatíveis com o uso corrente da palavra, para
dar um primeiro passo para sua clarificação. Vamos relembrar
também algumas formulações clássicas da Economia
Política que foram soterradas na avalanche neo-liberal que vem tomando
conta do discurso sobre o capitalismo contemporâneo.
O aprofundamento da generalização da forma-mercadoria
Uma das características mais arraigadas do capitalismo é
a tendência fundamental para a generalização da forma-mercadoria,
na tentativa de produzir tanto valor de uso (materializado no objeto
útil) enquanto valor de troca (materializado na mercadoria,
forma em que o mesmo objeto é produzido) quanto possível.
Esse movimento se concretizou històricamente dentro de mercados
unificados no âmbito de nacões-Estado; e a história
do capitalismo até hoje pode ser vista, como a história do
desenvolvimento dos mercados nacionais e dos conflitos entre os mesmos
e as nações que os suportam. O mercado mundial, não-obstante
frequentemente invocado e sonhado a partir da segunda metade do século
passado pelas nações-Estado mais fortes, continuou fugidio
e chegou a submergir na confrontação das mesmas nações-Estado
disputando seu domínio. Ainda assim, a ausência de ‘Guerras
Mundiais’ (globais?) desde a Segunda (não obstante inúmeras
guerras localizadas) produziu um período relativamente longo de
relativa paz, o que pode ter levado muitos a ver –finalmente– a miragem
do mercado mundial. Fronteiras nacionais teriam sido derrubadas por certo
número de ‘mercadorias mundiais’ (carros, gravadores vídeo,
computadores), cujos folhetos estão impressos em meia dúzia
de linguas, ligações a cabo permitem a transmissão
de sinais de televisão e de computador ao redor do planeta e isto
é sòmente o comêço… Há alguns anos, o
efeito do último acordo GATT de 1993 foi jubilantemente estimado
em 200 bilhões de dólares de comércio internacional
adicional
para a próxima década. Veremos, que tais abordagens entusiastas
precisariam ser submetidas ao crivo de parâmetros concretos dos processos
a que se referem.
Livre-comércio (ou tendêcia para)
O último acordo comercial do GATT, a chamada "Rodada Uruguai", assinado a muito custo após oito anos de barganha, logo se tornaria obsoleto, mas já na época de sua assinatura em 15 de dezembro de 1993 tinha siginificado dúbio e era sujeito a interpretações subjetivas. Em outras palavras, o significado do GATT era tudo menos global. Assim, enquanto um representante dos países centrais comemorava:
Ele não foi uma exceção. Os países em desenvolvimento, de forma geral, reclamaram das poucas concessões obtidas (especialmente nas áreas agrícola e têxtil).
De fato, em acordos de última hora com a CE, os EEUU negociavam acordos bilaterais que mantinham subsídios compensados de parte a parte principalmente à produção agrícola –um item de particular interesse aos países menos industrializados– em flagrante contradição ao ‘espírito’ do acordo. ‘Livre comércio’ continua sendo, como sempre foi, mais retórica que fatos. Nem os supra-referidos 200 bilhões de dólares de reforço ao comércio mundial suscitou consenso mesmo entre os países mais ricos. Os franceses logo assinalaram, que
A Monthly Review
Uma rara visão, não-apologética, da globalização, foi expressa em um editorial em 1992 –tomando a oportunidade do quincentenário do ‘descobrimento ‘ da América– pela revista Monthly Review. Começava por resumir ‘as características fundamentais do processo de globalização’ como sendo
A título apenas de alguns exemplos de outros estudos no mesmo
veio, vale lembrar aqui a coletânea de ensaios organizado por Henk
Overbeek (Overbeek, 1993) cujo enfoque geral é uma avaliação
do estado e das perspectivas do capitalismo contemporâneo; e para
as implicações dos últimos desdobramentos desse ao
nível do processo urbano, estudos de Les Budd (Budd, 1995,1998).
O que é novo, na verdade?
Muitos dos fenômenos que em conjunto passam por constituintes da 'globalização' não são absolutamente novos. Nem a própria idéia da globalidade é tão nova, ao fim das contas. Muito antes da 'aldeia global' "descoberto" por McLuhan nos anos ‘60, havia, por exemplo, a Liga das Nações organizada pelos vencedores da Primeira Guerra Mundial –se bem que a mesma não foi capaz de ‘orquestrar’ os interesses conflitantes das nações-Estado do mundo —como o provou o reinício da guerra mundial em 1939—, nem, por outro lado, em sustar a eclosão ou debelar a eclosão das revoluções socialistas em encubação, à exceção da Alemanha (1918), da Hungria (1919) e da Grécia (1923) e talvez na Espanha (1936). Mas, nas verdade, a última grande notícia a respeito de ‘globalização’ é muito anterior ainda: é a descoberta e implantação do telégrafo no início dos anos 1850, que reduziu o tempo de percurso de uma notícia de Londres para, digamos, a recém-fundada colônia de Hong Kong, de 40-50 dias em um barco a vela (o vapor estava só começando) a uma fração de segundo através de um cabo no fundo do mar, informando a cotação da seda, pimenta do reino, açúcar ou das acões na Bôlsa de Londres pelo mundo inteiro. Foi então que o globo ficou pequeno (há cento e cinquenta anos) e seguia-se o progresso rápido nas técnicas de transporte de carga (vela para máquina a vapor, carroça para estrada de ferro) para também reduzir substancialmente o tempo de transporte de mercadorias para todos os cantos do planeta.
Não obstante, também não foi o telégrafo, por certo, o primeiro passo em direção à ‘globalidade’. Cinco anos antes de sua invenção, uma descrição das tendências contemporâneas do capitalismo por Marx e Engels soa como se tivesse sido escrito hoje:
Toda essa discussão em torno da questão da globalização, apesar da imprecisão dos termos em que ela tem sido levada, pode ser aproveitada de alguma forma. O que quer que seja entendido por globalização, os ‘aspectos’ acima arrolados – a ampliação da intermediação financeira, a perda relativa do peso das manufaturas, a ampliação do papel do Estado e a desesperada reação neo-liberal – são, na verdade, quaisquer que sejam suas possíveis interpretações, indicadores de algumas das principais características do estágio atual de desenvolvimento capitalista. A sua colocação em perspectiva histórica, ou a avaliação de seus potenciais desdobramentos futuros a partir desse estágio, exige uma periodização do capitalismo, assim como, em particular, uma interpretação do atual estágio de desenvolvimento do capitalismo mundial. A proposição aqui colocada é que o presente estágio se caracteriza pelo término da transição, iniciada há pouco mais de um século, do processo de acumulação predominentemente extensiva para um processo de acumulação preominantemente intensiva em todos os principais centros de acumulação capitalista, ou em outras palavras, que o atual estágio de desenvolvimento é caracterizado pela exaustão do estágio de acumulação predominantemente intensiva. Uma vez que não há indicação, e menos ainda, garantia, de algum possível terceiro estágio de desenvolvimento capitalista ("acumulação pós-intensiva" só poderia ser concebida como piada), coloca-se um ponto de interrogação referente às perspectivas futuras da produção de mercadorias sob regulação capitalista.
Antes de esboçar uma interpretação do capitalismo
contemporâneo dento de uma perspectiva histórica, no entanto,
vamos recordar algumas formulações anteriores, hoje ditas
‘clássicas’, das mais relevantes, porém hoje soterradas sob
debaixo de espessa camada de produção da ideologia liberal.
2 Os clássicos
Modo de produção, periodização, estágios de desenvolvimento histórico, crises e muitos mais conceitos utilizados pela Economia Política tornaram-se categorias esquecidas, e seu lugar foi sendo ocupado por pseudo-conceitos. E no entanto, a maioria das questões que nos tocam hoje haviam sido formuladas e foram discutidas em termos dos mais claros desde Adam Smith e aprofundadas com o desenvolvimento do materialismo dialético. Lembraremos aqui duas das colocações –ou controvérsias– clássicas que dizem diretamente respeito ao assunto que tem sido designado por globalização –e que não é nada mais (ou menos) que o capitalismo contemporâneo. Trata-se da discussão sobre o mercado mundial e do debate sobre o ultra-imperialismo.
Mercado mundial ou imperialismo?
Quanto ao mercado mundial, é o mesmo apresentado como um derivado técnico, decorrência direta do progresso tecnológico ou ainda, uma tendência natural, efeito do desenvolvimento, ao qual as economias nacionais se sentem atraídas. Algumas foram mesmo atraídas; outras necessitam de um empurrão e empurradas foram. Assim, enquanto a Alemanha se revelou bom entendedor, no Japão o mercado mundial teve manifestar-se por tais meios não-mercado, como os canhões de vasos de guerra (procedimento chamado càndidamente de ‘gun-boat diplomacy’). Quando o ‘mercado mundial’ (vale dizer, a hegemonia da indústria inglesa pós-revolução industrial) se fez sentir na Alemanha, ele provocou uma resposta endógena na forma de uma transformação social no sentido da sociedade burguesa –marcada pela revolução de 1848– e da formação do Estado nacional a partir da união aduaneira. Quando o mesmo mercado mundial falhou em provocar uma resposta no Japão, ele começou falar mais alto através da boca dos canhões de navios de guerra americanos, quando então acabou provocando transformações sociais tão profundas –ou mais– quanto aquelas iniciadas na Alemanha uma década antes: a dissolução da sociedade feudal e a introdução do trabalho assalariado (Restauração Meiji). E o mesmo mercado mundial também falou alto para o Paraguai, que cometeu o pecado capital de isolar-se na América Latina como um país que preferiu fabricar, a comprar, tudo, de alimento a vestuário e máquinas e até armamentos, e inventou de acabar com o analfabetismo. No que o mercado mundial visitou o Paraguai na forma da Tríplice Aliança (Argentina, Brasil, Uruguai) e virtualmente aniquilou o país desalinhado.
Isto, para mencionar apenas dois casos, marcantemente diferentes entre si, mas é claro que metade da Ásia e toda a África tiveram destino semelhante. O fato é que ‘mercado mundial’ só não usa força armada quando ele (isto é, o Estado-nação dominante de plantão) consegue se impôr sem fazê-lo.É esse fato que levou à gênese da palavra ‘imperialismo’, mais eloquente que ‘mercado mundial’.
Ultra-imperialismo, ou rivalidade inter-imperialista?
O termo imperialismo foi cunhado pelo economista inglês
A J Hobson para descrever a economia mundial dominada pela Grã-Bretanha.
Seu livro homônimo foi publicado em 1902, no fim do período
da preponderância britânica quase-absoluta. Com o surgimento
de novos centros mundiais de acumulação –Alemanha, EEUU,
França, Japão–, e o consequente ocaso da Pax Britannica,
os conflitos em torno da 'divisão do bolo' iam se aguçando.
O cerne da questão discutida no início desse século
era se poderia existir um ‘capitalismo pacífico’, como sustentado
pelos social-democratas alemães com Kautsky –que vislumbrava um
ultra-imperialismo, uma espécie de consórcio de países
dominantes que compartilharia o domínio da economia mundial– e disputado
pelos bolsheviques russos com Lênin à frente. Este último
assim o resumiu em sua "Introdução" ao Imperialismo e
a economia mundial de Bukhárin (1915):
![]() |
Quanto a Kautsky em particular, seu rompimento expresso com o marxismo o levou a sonhar com um ‘capitalismo pacífico’. Se o nome de ultra-imperialismo for dado à unificação internacional de imperialismos nacionais (ou mais corretamente, limitados ao âmbito do Estado nacional), e que permitisse eliminar os conflitos mais perturbadores e repulsivos, como guerras, convulsões políticas etc, dos quais a pequena burguesia tem tanto medo, então porque não se entregar a sonhos inocentes de um ultra-imperialismo comparativamente sem conflitos, relativamente não-catastrófico? |
Independentemente de uma tomada de posição ao lado de uma ou outra posição entre os oponentes, o que é flagrante é a nitidez com a qual se colocava a problemática do capitalismo da época. Tais formulações inequívocas são alheias à sociedade moderna –vale dizer, o capitalismo contemporâneo–, que produz uma ideologia sempre mais superficial na medida mesmo que sua crise se aprofunda. O pilar central de tal ideologia é uma visão a-histórica da sociedade, que não permite enxergar mais do que conjunturas ou fenômenos superficiais, tais como, ‘períodos de paz’, ‘de relativa estabilidade’, ‘de boom’ (ou recessão), ‘guerras locais’ ou ‘instabilidade regional’, ou ainda ‘tendênciaparaautoritarismo' (ou 're-democratização'). Se não há história, não há transformação e se não há transformação, não há crise e assim, o que é (a sociedade burguesa) torna-se natural e vai permanecer, enquanto que os problemas miúdos que acometem a ordem natural das coisas –como uma ‘queda de confiança dos mercados’– será por certo resolvido, pode-se afiançar, por meio de expedientes igualmente miúdos –como um reforço da confiança dos investidores, a constituição de uma força-tarefa ou de uma comissão especial–, por pouco que ‘a sociedade’ (a anôdina ‘sociedade civil’) lhes dedique um pouco de esforço.
No que segue, esboçaremos uma visão crítica do
capitalismo contemporâneo, para poder, voltando à questão
da globalização em seguida, avaliar finalmente o âmbito
e o significado daquele ‘conceito’ em sí, e especialmente em suas
adaptações no Brasil.
3 A dialética da forma-mercadoria
A principal força motriz do capitalismo continua sendo o mesmo processo que o trouxe à luz, através da transição do feudalismo para o capitalismo, a saber, a generalização da forma-mercadoria. Enquanto no feudalismo a mesma era restrita ao excedente, produzido pelo servo, apropriado pelo senhor – na forma de renda – e levado ao mercado nas cidades, sendo os meios de reprodução da força de trabalho providos mediante produção para a subsistência diretamente como valores de uso, no capitalismo ambos, excedente e meios de subsistência, tornam-se mercadorias (assim como a própria força de trabalho). Isso é chamado de ‘generalização da forma-mercadoria’. Valores de uso são produzidos enquanto mercadorias, vale dizer, enquanto valores de troca, e a primazia do valor de troca sobre o valor de uso tende a estender-se a toda a produção. Os trabalhadores, desprovidos de seus meios de produção e assim, de subsistência, são obrigados a vender sua força de trabalho, ela própria agora mercadoria, pelo salário, para com esse salário comprar no mercado seus próprios meios de reprodução.
Nem tudo pode ser produzido enquanto valor de troca, no entanto. O mercado é capaz de organizar uma parte da produção social, mas não pode organizar a produção social como um todo. O que exatamente pode e o que não pode ser produzido enquanto mercadoria varia de acordo com os estágios históricos específicos do capitalismo, mas a produção direta de valores de uso necessàriamente inclui a infraestrutura urbana e espacial – o ambiente construído – por um lado, e as condições institucionais para a contínua re-imposição da relação salário/ capital, por outro; e ela geralmente também inclui um certo número de ramos industriais nascentes e outros, obsoletos. Aquela parte dos produtos que não pôde ser mercadorizada é produzida diretamente enquanto valor de uso, sob a intervenção direta do Estado.
Dessa forma, a generalização da forma-mercadoria sòmente pode ser enunciada como uma dialética, mais do que algum processo de ‘evolução’ linear. Assim, capitalismo se caracteriza pela tendência para a generalização da forma-mercadoria, quepor sua vez acarreta a necessidade da intervenção do Estado e a produção direta de valores de uso. No entanto, se a intervenção estatal é de fato necessária para preservar a forma-mercadoria (assegurando as condições de funcionamento do mercado), a mesma é também antagonística com aquela última, ao impor um limite à expansão da forma-mercadoria precisamente enquanto e na medida em que a sustenta. Assim, a tendência para a generalização da forma-mercadoria levanta uma contra-tendência que a nega, a saber, a sempre mais abrangente intervenção estatal e a produção direta de valores de uso. É a isso que chamamos de dialética da forma-mercadoria.
O capitalismo pode ser então visto como movido pela relação antagônica do mercado e do Estado, em que é postulada a primazia do mercado. De fato, a característica fundamental do capitalismo é essa primazia, que atribue ao Estado um papel coadjuvante, de sustento, em relação ao mercado, mais do algum grau ou nível particular de generalização da forma-mercadoria. Por sua vez, o desenvolvimento do antagonismo na dialética da forma-mercadoria, isto, é, a medida da penetração da produção de mercadorias na produção social como um todo, caracteriza os estágios de desenvolvimento do capitalismo.
Uma vez que a produção é regulada conjuntamente pelo Estado e pelo mercado, é claro que, concretamente, quanto mais ativo for o Estado na organização da produção, menos resta ao mercado para regular, e vice-versa, quanto menor a intervenção do Estado, maior é a responsabilidade da regulação pelo mercado – e a taxa de lucro, o instrumento de regulação por excelência à disposição do mercado– deve ser mais alta. E inversamente, lucros menores, como ocorre no estágio de acumulação intensiva com menores taxas de crescimento, exigem uma expansão da intervenção do Estado, para compensar pelo enfraquecimento do instrumento básico de regulação pelo mercado, a saber, a taxa de lucro que regula o fluxo de capitais –a alocação de recursos de produção– entre os ramos industriais. Assim, menores taxas de crescimento e portanto, de lucro, e intervenção estatal em expansão são dois lados da mesma moeda no estágio intensivo – vale dizer, no capitalismo contemporâneo.
Para a globalização, em particular, isso significa que
se por ela se entende a generalização da forma-mercadoria
à escala mundial, então é ela um processo antagônico
–como já o é dentro dos limites de nações-Estado–,
e como tal, sujeito à contra-tendência que a tendêcia
à generalização suscita.
4 Crises, estágios de desenvolvimento e intervenção do Estado
As crises do capitalismo podem ser vistas como sendo, em última análise, períodos em que o desenvolvimento do antagonismo no interioror da dialética da forma-mercadoria alcança um estágio em que a própria primazia da produção torna-se ameaçada. Em tais crises, a própria contra-tendência –a saber, a amplação da produção de não-mercadodoras– acaba por suscitar seu oposto, na forma de tentativas, que não raro chegam às raias de eforços desesperados, de recompor e re-impor a primazia da forma-mercadoria. A negação da negação, no entanto, não é a tendência original –razão pela qual, privatização não é o mesmo que mercadorização. Por isso, também, as crises do capitalismo não puntuam ‘ciclos’: em cada crise ocorrem transformações que, longe de reconduzir ao período (‘ciclo’) anterior, desenvolvem o antagonismo da forma-mercadoria ainda mais. Diz-se que a história do capitalismo é a história de suas crises. Mais especìficamente poderia-se dizer que a história do capitalismo é a história da re-imposição da primazia da forma-mercadoria.
Em particular, as crises se aguçam no estágio de acumulação predominantemente intensivo e põem sempre mais em relevo o papel sempre mais amplo do Estado. Enquanto que o Estado sempre foi, naturalmente, ‘necessário’ para o capitalismo (desempenhando tarefas tão fundamentais como assegurar a propriedade privada, impor o próprio trabalho assalariado e conduzir guerras), o crescimento rápido da produção de mercadorias no estágio extensivo, como resultado da combinação de acumulação pròpriamente dita (no âmbito da produção de mercadorias) e de sua extensão à produção até então não-capitalista (produção independente, produção para subsistência, trabalho escravo etc.) ajudava a evitar desafios realmente sérios à primazia da forma-mercadoria. Já no estágio intensivo, esgotadas es possibilidade de extensão, o crescimento da produção de mercadorias fica restrito ao aumento da produtividade do trabalho (progresso técnico), a contra-tendência à generalização da forma-mercadoria torna-se uma ameaça de fato.
Este é o contexto contemporâneo da ampliação da intervenção do Estado. Uma das áreas precípuas de intervenção estatal e de produção direta de valores de uso, é a produção do espaço, ou em outras palavras, a produção/transformação de estruturas espaciais, ou ainda, o ambiente construído. Se o planejamento urbano enquanto tal nasceu com a transição para o estágio intensivo do capitalismo na segunda metade do século passado, o interesse no ambiente construído aumentou ainda mais com a crise iníciada nos anos 1970 –ainda não superada– e que seguiu a exaustão do ‘boom’ da reconstrução pós-guerra. Questões como a da habitação (a lembrar que a ‘Questão da habitação’ surgiu como uma preocupação maior há mais de cem anos durante a Grande Depressão na Inglaterra, gerando um debate público no qual o próprio Engels tomou parte, com seu A questão da habitação, de 1872) e a possibilidade de sua mercadorização, o preço do solo e ao próprio status da propriedade privada em terra na aglomeração urbana, e nessa conexão, a própria teoria de renda tornaram-se assuntos de grande interesse para o urbanismo. A um nível ainda mais geral, as atenções voltaram-se à relação entre a transformação do espaço e o processo de acumulação mesmo (como o aumento do investimento em infraestrutura espacial em épocas de recessão e vice-versa – um comportamento que tem sido chamado de ‘contra-cíclico’).
Mas, naturalmente, a penetração da regulação
estatal na economia não se restringe ao ambiente construído
apenas. Como já mencionado, ela abarca os ramos de produção
mais diversos, ainda que dependendo do estágio de desenvolvimento
em curso, tais como, a proteção de ramos industriais obsoletos
(atualmente, siderurgia e indústria pesada em geral), o subsídio
aos ramos industriais novos e à indùstria de armamentos (‘pesquisa’,
‘defesa’) e –last but not least– ‘resgate’ a bancos falidos e sustentação
de toda a estrutura financeira ao nível nacional e até internacional.
Para se ter uma idéia das ordens de grandeza envolvidas no processo
de ezpansão do participação do Estado no estágio
intensivo, vamos lembrar que há um século, a parcela da produção
diretamente dependente do Estado era da ordem de 10 a 15%, ao passo que
atualmente a mesma subiu a algo entre a metade a dois
Fonte: cf. Anexo (p.21). |
![]() |
terços das economias nacionais. A figura acima ilustra essa evolução através de um século até 1985 – o que já inclue uma década de Reaganismo-Thatcherismo, isto, é, tentativa de recomposição do domínio do mercado.
Nessa perspectiva deve estar claro que exatamente quanto de regulação pelo mercado/ intervenção estatal há em determinada sociedade e época não é uma tecnicalidade (de ‘eficiência’ etc.) ou mesmo de vontade de tal ou tal grupo ou classe social. O exemplo pelo anverso, a descentralização tardia das economias planejadas do Leste europeu, mostra precisamente que a reforma não era o resultado de algum projeto (de uma nova organização), senão tão-sòmente uma ‘resposta’ à crise da sociedade centralmente planejada, ou ainda, se tal ‘projeto’ houve, o mesmo era simplesmente uma resposta à crise do planejamento centralizado, sendo portanto, na verdade, a própria necessidade histórica. Da mesma forma, se uma característica precípua do estágio intensivo é a ampliação do papel do Estado, toda empreitada no sentido de ‘restabelecer o equilíbrio’ em favor do mercado só poderá ser uma tentativa vã de voltar aos ‘bons velhos tempos’ do capitalismo. Isto para não falar da tendência de encolhimento do âmbito da produção manufatureira, locus privilegiado da produção de mercadorias…
Um rebatimento do desenvolvimento do estágio intensivo ao nível
da ideologia é o surgimento da figura do 'Estado de bem-estar' (Welfare
state) que se coloca como que a materialização concreta
da idéia do bem comum (commonwealth), assim como a forma
política que lhe corresponde, a social-democracia. Esta se originou
na Alemanha, mas acabou tendo uma trajetória turbulenta devido à
derrota daquele país nas duas guerras mundiais. Não podemos
nos estender aqui sobre a questão da social-democracia, que mereceria
uma discussão sobre ela só; mas vamos tocá-la em algumas
de suas implicações adiante, ao abordar a questão
e o significado da 'globalização' aqui no Brasil. Por ora,
retornemos a mais um processo relacionado com o capitalismo contemporâneo:
a saber, da eventual transformação do papel da nação-Estado
em meio à presente crise e suas perspectivas futuras.
5 Globalização e a nação-Estado
Entre as tendências recentes do capitalismo contemporâneo, além da crescente abrangência do papel do Estado, pelo qual até agora nós entendíamos a nação-Estado, uma outra transformação de fundo atualmente em curso diz respeito precisamente ao papel da nação-Estado no ‘capitalismo mundial’ ou seja, internacional. Apesar de que a acumulação de capital nunca mais e nenhures foi um processo relativamente tão autônomo quanto em seu nascedouro na Inglaterra, pois a penetração da produção capitalista, ou mais exatamente, das relações de produção capitalista, nos centros mais novos de acumulação, tais como, Alemanha, França ou Japão se deu, em boa medida, sob o efeito da pressão exercida pela Inglaterra e mais tarde, os EEUU, ainda assim, os processos mais fundamentais do capitalismo: a unificação do mercado e a imposição do trabalho assalariado, junto com o asseguramento das ‘condições gerais da produção’, vale dizer, de uma infraestrutura física e institucional, sempre se deram dentro dos limites do arcabouço da nação-Estado. Em resposta à crise atual, a saber, da reprodução e re-estruturação do capital no relativo isolamento dos âmbitos nacionais aos quais –e não obstante as numerosas tentativas à regulação supra-nacional desde o início desse século– tais processos estão, até hoje, restritos, o que estamos presenciando é uma multiplicação dessas mesmas tentativas. A ‘tese’ da globalização é precisamente que as condições da acumulação capitalista podem ser recompostas na base de planejamento e controle supra-nacionais bastante ampliados, que requereriam, naturalmente, um arcabouço de infraestrutura física e institucional igualmente ampliado (o que diz muito sobre o nível de coerência das diversas vertentes do neo-liberalismo, entre cujas teses centrais a primeira é a necessidade de 'diminuir' o Estado).
Independentemente da questão da violenta assimetria que uma tal organização ‘supra-nacional’ significaria para países inseridos em relações de força como, por exemplo, EEUU/ Brasil, ou Brasil/ Paraguai, à qual voltamos adiante, consideremos tal perspectiva hipotética ainda ao nível geral e no plano abstrato um pouco mais. Poderia ser que –contrariamente ao que quem aqui escreve, acredita– tais transformações transcorram e a então a organização do capitalismo deverá ser analisada sob novas premissas, onde um nível supra-nacional seja superimposto às ordens regional e local. Tais transformações estão hoje, na máximo, ainda em incubação e não podem ser analisadas por antecipação. Enquanto isso, o espaço econômico nacional –onde há livre fluxo de capital e de força de trabalho e uma relação de produção específica prevalece, com seus próprios nível de subsistência e formas políticas e ideológicas de sustentação– permanece o objeto central de análise da sociedade capitalista, e que fornece, por sua vez, o referencial de análise do processo urbano no capitalismo contemporâneo.
Ainda, e independentemente da ‘probabilidade’, ou verossemelhança, de sua concretização no futuro, a própria conceituação da globalização carece definir precisamente que futuro preconiza, isto é, se o eventual sucesso dos movimentos na direção de associações regionais supra-nacionais resultaria em algo mais que simplesmente nações-Estado maiores, como foi o caso, por exemplo, com a aglutinação gradual dos Estados Unidos da América do Norte, a unificação alemã e o nascimento da Itália moderna, ou últimamente, a por ora ainda eventual unificação européia. Uma coisa é a formação de nações-Estado maiores, uma outra coisa inteiramente diferente é resultar um Estado único (por ser ‘global’), que deveria ainda conter em si mesmo todas as tendências para concentração/ diferenciação, assim como todos os antagonismos presentes no processo de generalização da forma-mercadoria, os quais, por sua vez, não poderiam deixar de suscitar contradições e ‘forças centrípetas’ no interior do Estado global, que acabariam por quebrar sua unidade e sua unicidade. Por menos que isso, caiu a Torre de Babel e se dissolveu o Império Romano…
De qualquer modo, mais do que a escala e agrupamento das unidades nacionais,
a discussão da crise e do estágio atual do capitalismo gira
em torno da questão suscitada pelo fato fundamental que uma porção
considerável do produto social não pode ser produzido enquanto
valor de uso individualizado metamorfosado em valor de troca, isto é,
não pode ser produzida como mercadoria. Efetivamente, a questão
da crise do capitalismo é a questão dos limites à
generalização da forma-mercadoria, e isto independe dos níveis
de agregação das sociedades do mundo. ‘Globalização’,
nos
centros mundiais de acumulação, é pouco mais que
uma tentativa de estabelecer alguma regulação internacional
no interesse do grande capital, materializado nas companhias transnacionais
e eventualmente, como instrumento de manutenção do status
quo das relações de força internacionais. No
Brasil, e demais países coadjuvantes do concerto internacional
de produção de mercadorias, ela adquire no entanto um sentido
adicional que precisamos abordar agora.
6 A globalização no Brasil
No estágio intensivo –vale dizer, no capitalismo contemporâneo– o nível de subsistência do trabalhador tende a se elevar (é quando começa-se falar até em qualidade de vida), e melhores níveis de vida incluem também formas políticas de organização social, que possam dar vazão à expressão dos níveis necessários de reprodução da força de trabalho na forma de reivindicações sociais. Social-democracia é precisamente a forma política precípua –por oposição, inclusive, à democracia liberal ‘clássico’, do estágio extensivo– de uma sociedade já em seu estágio de desenvolvimento predominantemente intensivo.
Uma controvérsia acompanha o próprio conceito de social-democracia desde o início, e ela diz respeito à questão de poder existir ou não (algum grau de) socialismo no capitalismo. De fato, é essa questão que opós Engels e Kautsky –esse último, o fundador da social-democracia alemã– e originou em seguida, uma sucessão infindável de disputas, que a rigor, ainda não terminou. As formas concretas de social-democracia geraram pouca experiência prática por causa da trajetória atribulada do país onde nasceu, a Alemanha; suas formas hoje mais desenvolvidas tem sido gestadas nas últimas décadas em alguns países do noroeste europeu, com a Escandinávia, Holanda, e a própria Alemanha à frente. Admite ademais uma variante mais despolitizada, mas que lhe corresponde de fato, a saber, o Welfare State –o Estado de bem-estar– inglês.
Pode-se definir então social-democracia como a forma política assumida em uma sociedade burguesa quando esta entra em seu estágio de desenvolvimento intensivo. Sendo assim, a que pode corresponder a social-democracia no Brasil?
O Brasil vem reproduzindo sua sociedade de origem colonial, uma sociedade de elite, sustentada em uma organização da produção também de origem colonial (permanentemente sustada, atrofiada, aleijada e acéfala), a acumulação entravada. É um desenvolvimento que anda de freio de mão puxado, e assim, o Brasil conseguiu permanecer no estágio extensivo por 120 anos a partir do início de seu desenvolvimento capitalista em 1850. Trata-se de um fato singular: dos países centrais que iniciaram seu desenvolvimento capitalista na mesma época a Alemanha e o Japão concluíram o mesmo estágio em uma geração; até os EEUU, um país ‘novo’ e americano, terminou seu estágio extensivo nos anos 1920 – uns 50 anos após a Guerra Civil e a unificação de seu território. Ainda assim, o estágio extensivo acabou por se esgotar, no Brasil, ao final dos anos '70. No entanto, a crise dos anos '80 (a ‘década perdida’) e que ainda não terminou, consiste precisamente na recusa de sua sociedade recalcitrante em reconhecer a exaustão do estágio anterior e efetivar a transição para o estágio predominantemente intensivo. Dessa maneira, se é verdade que a questão da social-democracia se constitui, ao findar dos anos setenta, em questão candente e atual, na medida que seria a acompanhante da transição a um novo estágio de desenvolvimento, a saber, de acumulação predomoinantemente intensiva, ela acaba tornando-se uma farsa precisamente pela negação daquela transição. Desde quando o partido que leva seu nome foi fundado (PSDB), portanto, e até hoje, a social-democracia no Brasil é feito carro na frente dos bois, ou melhor, um carro sem bois (o estágio intensivo), uma expressão vazia com puros propósitos demagógicos.
Assim, a globalização que poderia ser apenas uma expressão nova para um conceito velho, introduzido principalmente por seu caráter a-histórico, acaba sendo um pouco mais: da maneira como é utilizada aqui, a globalização torna-se pretexto para privatização do patrimônio público, abandono dos controles endógenos e soberanos da economia e do mercado interno, sub-investimento em infraestrutura… em suma: arma na defesa da manutenção dos entraves ao desenvolvimento que resultam na atrofia geral da produção, acefalia da economia mediante entreguismo nos setores-chave, ausência de sistema financeiro e demais características da econômica neo-colonial. Tudo que sempre e até recentemente se fez em nome da ‘vocação agrícola’ do Brasil, se faz agora em nome da globalização. Em uma palavra, a globalização torna-se um instrumento de manutenção do status quo da sociedade de elite.
A globalização e seu conceito-irmão, o neo-liberalismo são, na Europa, uma reação à social-democracia, ao prestígio do Estado de bem-estar e da democracia embasada em uma camada relativamente ampla de classe média. No Brasil, onde nunca houve social-democracia ou estado de bem-estar, não passam de novas formas mal dissimuladas de entreguismo.
Para uma interpretação da situação do país e instrumentar uma tomada de posição com respeito a um projeto nacional, vale lembrar a agenda proposta por Jacó Gorender, na conclusão de sua contribuição no seminário Globalização e estrutura urbana realizado em setembro de 1997, na FAUUSP (Gorender, 1997). Ele distinguia uma maneira passiva e outra, ativa, de inserção no processo de globalização –vale dizer, duas posições opostas quanto à inserção internacional do Brasil. A primeira consiste essencialmente em seguir a cartilha da ideologia dominante propagada pelos países centrais e manter-se na posição subalterna histórica no 'concerto das nações'. A segunda, preparar-se instrumentalmente para enfrentar os efeitos da evolução das técnicas de comunicação e principalmente a rivalidade internacional que se intensifica em meio à agudização dos antagonismos do capitalismo tardio.
Quanto ao primeiro item da agenda, vale mencionar apena que o ‘imposto Tobin’ –taxação das transações financeiras, de maneira a aumentar a fricção dos fluxos financeiros internacionais – é relativamente pouco difundido entre nós, mas é longe de ser uma proposta obscura: de fato, tem ganho sempre mais atenção nos países centrais não tanto em razão da preocupação com a estabilidade financeira dos países periféricos, senão para tentar restabelecer alguma estabilidade nos cicuitos financeiros dos próprios países centrais, frente à super-aceleração recente da intermediação financeira e a decorrente 'volatilidade' dos mercados. Os demais referem-se à preparação do país para se inserir na rivalidade internacional, e Gorender arrola as seguintes medidas:
Barreiras não-tarifárias – Barreiras não-tarifárias são expediente comum de defesa ‘informal’, vale dizer, à margem dos tratados de comércio internacional, do mercado interno e da indústria nacionais.
Redução da jornada de trabalho A redução da jornada de trabalho, além de consistente com a transição ao estágio intensivo na medida que permite a elevação do nível de formação da força de trabalho, que assim fica mais preparada para a evolução tecnológica, é também a única forma endógena (não condicionada a um aumento das exportações, que depende dos ‘parceiros comerciais’, vale dizer, de compradores externos) de diminuir o desemprego, que, quando excessivo, enfraquece a organização da economia e da própria sociedade.
Defesa dos recursos nacionais – ou simplesmente, uso não-predatório dos recursos naturais. Sua necessidade decorre do fato simples e elementar, que os recursos naturais fazem parte do patrimônio nacional, e seu uso não-predatório –incluindo-se aí a não-poluição ou não-deterioração, além da exploração própriamente dita– é uma condição sine qua non do desenvolvimento sustentável.
Educação –Universalização e extensão –inclusão de maior parcela da população e aumento do período escolar do indivíduo são òbviamente uma pre-condição do desenvolvimento nacional e aqui sòmente é necessário lembrá-la por seu abandono defato, ainda que ninguém disputaria abertamente sua importância, alegando, ao invés, ‘falta de recursos’ ou similar, como se ‘falta de recursos’ pudesse se aplicar a uma condição de desenvolvimento em determinado estágio histórico.
Subsídio à pesquisa e desenvolvimento de produto – na verdade, uma política ativa de desenvolvimento: que identifica setores-chave da estrutura produtiva e lhes canaliza recursos ora em antecipação (pesquisa pròpriamente dita), ora em reforço estratégico (em resposta a situações conjunturais da economia mundial), ora em socorro contra extinção (ramos industriais obsoletas, mas necessárias, como siderurgia). O exato oposto à política históricamente praticada...
Preparar-se para a globalização é simples, portanto.
Trata-se apenas de um conjunto de procedimentos normais de uma nação-Estado
–enquanto entidade econômica, social e cultural– em prol da reprodução
de sua sociedade, burguesa – é bem verdade que no Brasil
isto implica na transformação da sociedade de elite. As condições
da urbanização e a 'vida nas cidades', por sua vez, dependerão
igualmente da concretização, ou não, das potencialidades
encerradas na presente crise da velha sociedade.
7 São Paulo, cidade mundial?
Um programa para São Paulo
No âmbito de políticas urbanas, uma das contribuições mais significativas que poderia haver para a remoção dos entraves ao desenvolvimento nacional é a superação, ou abandono, do príncípio da escassez da infraestrutura urbana, pois esse ‘paradigma’ – país pobre, infraestrutura precária– reproduz a fragilização da estrutura produtiva ao nível físico, ao mesmo tempo que contribui para a perpetuação de seu ‘espírito’. Já discutimos essa questão a vários níveis de abstração; aqui levantarei alguns exemplos concretos, como que exemplificando as colocações anteriores.
Um dos componentes mais fundamentais da infraestrutura urbana é o sistema de transportes: ele assegura a coesão do espaço, a própria existência da aglomeração urbana. Se o faz precariamente, as funções urbanas (vale dizer, a estrutura de produção e de reprodução sociais) ficam fragilizadas. Durante mais de década advoguei a construção de uma rede de Metrô ‘decente’ para São Paulo –vale dizer, mais generosa, mais à escala da aglomeração urbana. Há sinais de que a necessidade de um sistema de transporte de massa para São Paulo esteja, ainda que vagarosamente, se difundindo, a julgar pela menção ocasional, mas um pouco mais frequente, dessa mesma necessidade, por não-especialistas (economistas, jornalistas etc.) e a elaboração recente de um plano –o PITU 2020– que pela primeira vez desde o PUB de 1968, ao menos enuncia a necessidade de uma ampla rede de transporte rápido de massas e apresenta uma proposta de traçado.
Ainda outros elementos de infraestrutura indispensáveis são o ‘saneamento ambiental’, ou, eu diria simplesmente, uso não-predatório do ambiente (não precisamos de ‘ciência ambiental’ para saber que se poluirmos a água que bebemos, teremos problemas), drenagem das águas pluviais, de maneira a cidade não ficar inundada a cada pancada de chuva de verão, abastecimento de energia elétrica confiável e disposição e tratamento do lixo, todos itens básicos, para não dizer elementares, da infraestrutura urbana. Qualquer enumeração de itens programáticos prioritários tende a resvalar numa antologia do óbvio…
Para além do imediatamente necessário, finalmente, como coroamento, porque não pensar, também, nos visitantes? Um arquiteto antigo19 disse que "uma cidade deve ser construída para a comodidade e satisfação de seus habitantes e para a admiração dos visitantes". Além das coisas úteis, uma cidade mundial deve decerto possuir charme adicional: São Paulo tem talvez seus restaurantes de que se gabar, mas em termos de infra-estrutura urbana, podería-se pensar, por exemplo, num monotrilho, que iria de Cumbica até a República e eventualmente até Congonhas; lembraria aquele do filme do Truffaut (Fahrenheit 471), onde aparece o monotrilho experimental que liga o aeroporto a Paris, construído há mais de 30 anos atrás. Em tempo: nós temos tecnologia nacional para fazer isso (é bom que não se compre, digamos, na Alemanha, um trem magnético, e que só aumentaria a opulência de lá, deixando um vácuo tecnológico aqui…), como a Koester-Sûr de Porto Alegre com seu trecho experimental funcionando no centro daquela cidade, ou qualquer outro que poderia ser desenvolvido. Portanto, porque não deixar maravilhados os visitantes, que deslizariam do Aeroporto de Cumbica, ao longo do Parque Ecológico e da várzea do Tietê, até o centro histórico…— este, em pleno processo de revitalização, devido a sua acessibilidade devolvida pela rede de Metrô?
É bom frisar que todos os empreendimentos aqui preconizados dependem
de iniciativas governamentais cujo âmbito na situação
presente está fracionado e desestruturado. São Paulo –e não
é só São Paulo: as áreas urbanas todas, nossas
aglomerações urbanas em geral– precisam de uma reforma administrativa
e institucional que os aparelhasse a administrar a sua própria vida.
Das infra-estruturas que mencionamos, duas dependem de instâncias
fora do alcance municipal. O Metrô está sob administração
estadual, e as telecomunicações estão à cavaleira
entre uma administração estadual e uma forte regulação
no âmbito federal. Para ilustrar tais dificuldades institucionais,
recordemos a tentativa esboçada pela administração
Luíza Erundina (1989-92), de implantar uma ‘rede municipal de informática’,
que seria a interconexão dos órgãos administrativos
do município através de uma rede de comunicações
de alta capacidade. Não para a cidade toda, que estaria fora de
questão, mas, pelo menos para os órgãos municipais,
eventualmente extensiva para os órgãos das demais instâncias
de governo. Afinal, o projeto nem saiu do papel, porque apesar de que o
custo da implantação seria baixíssimo, da ordem de
75 milhões de dólares, não dava nem para começar,
por várias razões. O candidato natural para operacionalizar
a iniciativa era a Telesp, que não tinha capacidade empresarial
para executá-la (pelo que ficou claro a posteriori, a inépcia
acima do normal da Telesp já era uma estratégia para sua
desvalorização, em preparação para sua privatização).
Poderia se fazer um sistema privado da Prefeitura, com um canal de satélite
e uma estação retransmissora no Pico do Jaraguá, mas
isto dependeria do aval do Ministério das Comunicações…
vale dizer, a iniciativa morreu no nascedouro, e o projeto não chegou
a sair dos segundos escalões do governo municipal. Em suma: na organização
institucional atual, com a melhor das boas vontades, é muito difícil
pensar numa administração da aglomeração urbana
que a levasse a novos patamares de nível de serviço, ou a
novos níveis de qualidade do ambiente urbano.
|
![]() |
E no entanto, o prêmio seria considerável. Além do benefício imediato do salto de qualidade da vida urbana, haveria toda a potencialização decorrente do ainda embrionário Mercosul. A figura acima ilustra São Paulo enquanto candidato a centro econômico já não sòmente do Brasil, senão de toda a região do Mercosul. Trata-se apenas de uma potencialidade, já que atualmente nem São Paulo está equipada condignamente, nem o Mercosul é uma região efetivamente integrada e de mercado unificado. Mas, maior a pujança de São Paulo, melhores as perspectivas de integração no Mercosul; e reciprocamente, mais se integra o Mercosul, mais sólida se torna a base econômica de São Paulo.
O futuro de São Paulo reside sem dúvida em primeiro lugar
em São Paulo, em segundo lugar, no Brasil, em terceiro lugar, no
Mercosul e a América Latina. Em quarto lugar, no ‘mundo’…
* * *
Bibliografia
AMIN, Samir (1992) "1492" Monthly Review 44 (3):10-19
BALL, Michael, Gray F & McDowell, L (1989) The transformation of Britain. Contemporary economic and social change Fontana, London
BUDD, Leslie (1995) "Territory and Strategic Alliances in Different Financial Centres" Urban Studies 32 (2)
BUDD, Leslie (1998) Territorial competition and globalization: Scylla and Charybdis of European cities" Urban Studies 35(4):663-85
DEÁK, Csaba (1985) Rent theory and the price of urban land/ Spatial organization in a capitalist economy PhD Thesis, Cambridge
DEÁK, Csaba (1989) "O mercado e o Estado na organização espacial da produção capitalista" Espaço & Debates, 28:18-31
DEÁK, Csaba (1990) "Acumulação entravada no Brasil/ E a crise dos anos 80" Espaço & Debates 32:32-46
EDWARDS, Michael (1984) "Planning and the land market: problems, prospects and strategy" in Ball, Michael et alii (Eds, 1984) Land rent, housing and urban planning Croom Helm, London
FAINSTEIN, Norman & FAINSTEIN, Suzanne S (Ed, 1982) Urban policy under capitalism (Urban affairs annual review, Vol.20) Sage, Beverly Hills, Ca
FERNANDES, Florestan (1972) "Classes sociais na América Latina" in Fernandes (1972) Capitalismo dependente e classes sociais na América latina Zahar, São Paulo, 1981
GILL, Stephen (1993) "Neo-liberalism and the shift towards a US-centered transnational hegemony" in Overbeek, Henk (Ed, 1993) Restructuring hegemony in the global political economy/ The rise of transnational neo-liberalism in the 1980s Routledge, London
GORENDER, Jacob (1977) "Globalização e Trabalho" Seminário Globalização e Estrutura Urbana, FAUUSP, setembro
GOUGH, Ian (1982) "The crisis of the British welfare state" in FAINSTEIN & FAINSTEIN (Ed, 1982)
HILL, Christopher (1967) Reformation to industrial revolution Penguin, Harmondsworth, 1969
KEMENES, Egon (1981) "Hungary: economists in a socialist planning system" History of Political Economy 13 (3):580-99
LENIN, Vladimir I (1915) "Introduction" to BUKHARIN, Nikolai (1915) Imperialism and world economy Merlin, London, 1972
LUZ, Nícia Vilela (1961) A luta pela industrialização do Brasil Alfa-Omega, São Paulo, 1975
MAGDOFF, Harry (1969) The age of imperialism/ The economics of U.S. foreign policy Monthly Review Press, New York
MANDEL, Ernest (1972) Late capitalism Verso, London, 1978
MASSEY, Doreen (1974) "Social justice and the city: A review" Environment & Planning, traduzido em (1990) Espaço & Debates 28.
Monthly Review, The Editors (1992) "Globalization – to what end? Parts I-II" Monthly Review 43 (9-10)
OVERBEEK, Henk (Ed, 1993) Restructuring hegemony in the global political economy/ The rise of transnational neo-liberalism in the 1980s Routledge, London
SEKINE, Thomas T (1977) "Translator's foreword"; "An essay on Uno's dialectic of capital"; "A glossary of technical terms" in Uno (1964)
RADICE, Hugo (ed, 1975) International firms and modern imperialism Penguin, London
UNO, Kozo (1964) Principles of political economy/ Theory
of a purely capitalist society Harvester, Essex
A tabela abaixo, dos gastos governamentais em alguns principais países centrais, mostra as ordens de grandeza envolvidas no processo de expansão do âmbito do Estado na produção social (total dos produtos nacionais, ou PIB-s), que acompanha o desenvolvimento do estágio intensivo do capitalismo:
Gastos governamentais em países
selecionados, 1880-1985
Em proporção ao produto nacional (% do PIB)
Ano | Inglaterra |
Alemanha
|
França
|
Japão
|
Suécia
|
EEUU
|
1880 |
10
|
10
|
15
|
11
|
6
|
8
|
1929 |
24
|
31
|
19
|
19
|
8
|
10
|
1960 |
32
|
32
|
35
|
18
|
31
|
28
|
1985 |
48
|
47
|
52
|
33
|
65
|
37
|
World Bank, World Development Report 1991, Washington
O Banco Mundial não é pródigo em dados análogos mais recentes, mas seu sítio na rede Internet dá na Tabela 1.5: Receitas do governo central ('Central government revenue'), sob a rubrica Government finance/Long term structural change, que tais receitas (governo central apenas, sem o governo local ou empresas estatais) passaram de 19% do PIB em 1970 a 30% em 1998 (esse período inclui os dez anos de Thatcherismo/Reaganismo com sua fúria privatizante e avaliado em Ball et alii, 1989, já referido), indicando que a tendência de ampliação do âmbito do Estado continua em vigor.
(Fonte: http://www.worldbank.org/data/wdi2000/pdfs/tab1_5.pdf)