A justiça social e a
cidade: uma resenha
Doreen Massey*
1974
Tradução de Csaba Deák
1989
David Harvey (1973) Social
justice and the city Edward Arnold, Londres
(Hucitec, São Paulo, 1980)
No momento em que escrevo esta resenha, já é evidente que A justiça social e a cidade é um livro importante. Trata-se de uma coleção de seis ensaios -- dos quais quatro já publicados e dois inéditos--, montados para ilustrar a evolução de um ponto de vista teórico, desde uma formulação liberal (os três primeiros artigos) até uma formulação um tanto ambiguamente denominada de 'socialista'. São todos estudos dentro do campo do urbanismo, e não colocações sobre a natureza da própria formulação teórica nessa área de estudo. Os leitores são, portanto, como que convidados a fazer sua própria teorização acerca da evolução que acompanham. No entanto, um capítulo introdutório, um apêndice no Capítulo 4, e o capítulo final fornecem uma base para tanto, pinçando filões particularmente importantes e estruturando o argumento.
A importância do livro deriva de três ordens de idéias. Primeiro, lança um desafio aos modos usuais de teorização em estudos urbanos e ciência regional.+ Segundo, esboça uma colocação dos termos de uma formulação alternativa. Em ambos os aspectos, a linha seguida por Harvey é sujeita a crítica, tanto de dentro como de fora de seu próprio campo. Mas não pode haver dúvida quanto a sua terceira contribuição: perguntas foram formuladas, e um espaço foi aberto para a discussão de questões que simplesmente não podiam sequer emergir dentro do quadro usual da ciência regional anglo-saxônica.
Os primeiros três capítulos, portanto, versando sobre processos sociais e formas espaciais, e sobre justiça social e sistemas espaciais, são os representantes do liberalismo. O fato de serem as mesmas formulações muito superiores a muitas das tentativas de teorização dentro dessa problemática1 só faz ressaltar o impasse que tal problemática representa. A linguagem é impenetrável, refletindo exatamente o que Harvey chama de 'inevitável relativismo informe' da respectiva posição; nós nos deparamos constantemente com a 'cidade como um sistema dinâmico complexo' e o 'sistema complexo que é a cidade' (ambos na p.46),++ como se o reconhecimento da complexidade pudesse substituir sua análise. Pior ainda, há a posição usual às voltas com 'o problema da justiça social' e o dualismo que surge entre teoria abstrata e ética. Harvey proporciona uma boa crítica desses aspectos da formulação liberal, especialmente em sua seção sobre as teorias de justiça social na Introdução. No entanto, o que é realmente grave são os efeitos teóricos dessa formulação. Em toda a extensão dos três primeiros capítulos, as questões de distribuição são abordadas dentro do âmbito da distribuição, a única indicação da consciência de um contexto mais amplo em que são inseridas sendo dada por dúvidas preocupadas acerca do fato de que o significado de 'nível de renda' depende, na verdade, de uma determinação a nível social. Lá pelo fim do Capítulo 3 desponta a descoberta de que distribuição não pode ser separada de produção, e desse ponto em diante a crítica começa a ser formulada em termos realmente claros. Uma outra consequência do liberalismo, ao nível teórico, e a exclusiva ênfase dada à análise ao nível do individual. Temos um exemplo perfeito disso na p.34:
A crítica explícita aos modos de teorização usuais, assim como a construção de uma alternativa, surge e ressurge ao longo do livro, sendo abordada na Introdução, no apêndice ao Capítulo 4, e na conclusão. A mesma inclui toda uma teia de argumentos entrelaçados e coloca (a mim certamente) algumas dificuldades sérias. O melhor talvez seja começar com alguns dos comentários sobre a natureza 'correta' da verificação.
Em muitos pontos do livro afirma-se que em 'teorias revolucionárias' a verificação só pode proceder através da 'prática'. O que é, no entanto, 'prática'? Em vários pontos ela e identificada como 'prática humana' ou 'prática social', mas isso não esclarece a definição. O que se torna claro, no entanto, é que prática -- o que quer que esta seja -- se coloca em oposição a teoria. Em alguns pontos essa oposição é explìcitamente negada, como na pág. 12: "Verificação se dá através da prática, o que significa que, num sentido muito importante, teoria é prática". Mas logo a frase seguinte reza que o conceito de sua oposição se mantém na nova abordagem teórica: "Quando teoria se torna prática atravès de seu uso então, e sòmente então, é ela realmente verificada" (grifo meu). Uma linha de argumento bem mais satisfatória pareceria decorrer de uma definição correta de prática como modo diferenciável, uma de suas formas sendo a prática teórica. O relacionamento da verificação no interior de estruturas teóricas pode então ser associado às diferentes formas de prática, incluindo prática teórica. Assim, Althusser escreve em Reading Capital:
Parte do problema talvez decorra de uma confusão entre ação no interior de uma luta ideológica, por um lado, e prática teórica real, por outro, em que conhecimento novo pode ser produzido. Mais uma vez, uma conceituação mais elaborada de 'prática' poderia ter ajudado a evitar o problema. É, talvez, nesse contexto que podemos entender 'reformulação revolucionária', elaborada na p.152 como sendo "tomar formulações de status quo ou contra-revolucionárias, colocá-las em movimento ou dar-lhes conteúdo real, e utilizá-las para identificar escolhas reais imanentes no presente" . Assim o conceito de homo economicus e as teorias construídas em torno dele podem ser úteis na luta, mas ainda assim o conceito continua sendo idealista, e como tal não poderá estritamente produzir conhecimento novo.
Finalmente nessa longa discussão, a natureza 'móvel' dos limites das várias categorias de teoria significa que a verdadeira crítica não está plenamente elaborada em termos de estruturas de 'status quo' e 'contra-revolucionárias'. Além disso, a inconsistência da posição é revelada nas conclusões, onde Harvey (com muita razão) tenta desenvolver algumas asserções normativas acerca da natureza da boa teorização. É difícil entender como isso combina com o status mutável das estruturas teóricas. Nos termos da crítica, 'teoria contra-revolucionária' parece, pela descrição, representar o humanismo liberal. A certa altura a mesma é criticada por levar à inação, sendo portanto nisso diferenciàvel de 'teoria revolucionária' . Infelizmente ela não tem sido sempre tão improdutiva -- um exemplo extremo é a moda 'de volta à natureza' nos Estados Unidos. O próprio Harvey escreve: "Ela pode também funcionar como suporte e legitinação espúrios a ações contra-revolucionárias concebidas para frustrar mudanças necessárias" (p.151). Então como faremos a distinção entre isso e ações 'corretas'? A própria teoria não pode deixar de estar presente no processo.
Um dos outros filões principais do livro é uma discussão sobre a 'natureza do urbanismo'. Um esboço geral da mudança de enfoque é dado na Introdução; o volumoso último capítulo é inteiramente dedicado ao assunto; e a discussão é retomada nas Conclusões. Numa primeira leitura eu achei o progresso geral das idéias, e particularmente o capítulo "Urbanismo e cidade" ao mesmo tempo difícil de desvendar e um tanto insatisfatório, mas ainda assim a discussão tem seu valor por introduzir conceitos e maneiras de pensar que nunca foram antes abordados pela ciência regional. Apesar da natureza muito preliminar de sua apresentação, os mesmos representam os primórdios de um desafio às formulações abstratas dessa disciplina.
Duas mudanças consideráveis que o livro encaminha quanto à natureza da conceituação de cidade são o abandono de sua consideração como 'coisa em si' e o enfoque exclusivo sobre os aspectos de distribuição. Esses dois movimentos são obviamente interligados, sendo a formação social o arcabouço mais amplo em que o processo de urbanização é situado, e o modo de produção dominante naquela formação social o determinante da estrutura de distribuição. O Capítulo 6 contém longas discussões introdutórias do significado de alguns conceitos necessários para tratar a urbanização dessa maneira: modos de produção, o conceito de excedente e a natureza de sua apropriação, as origens urbanas e a natureza da urbanização, e as mudanças no papel econômico da cidade em diferentes modos de produção. Na última seção, o autor coloca as questões cruciais da natureza do urbanismo como uma estrutura dentro de um arcabouço estrutural mais amplo. Ele também oferece um cursório, porem estimulante passeio histórico. Toca em algumas questões vitais -- o grau de especificidade da estrutura urbana, a medida em que a urbanização possui dinamismo próprio, as contradições criadas pelo processo urbano, e a estruturação de contradições pela urbanização. Partes da discussão começam aqui a ser realmente úteis. No entanto, surgem alguns problemas que vale a pena considerar.
Entre estes está uma tendência, repetida também em outras partes do livro, de ligar conceitos uns aos outros de uma maneira entusiástica, porém um tanto superficial. É notável que na segunda metade do livro isso implique frequentemente substituição de formulações desenvolvidas por Marx. Os conceitos introduzidos não são, via de regra, não-marxistas como tais, mas as substituições emprestam à análise, mais de uma vez, um grau preocupante de abstração a-histórica -- e frequentemente, de complexidade desnecessária. No caso da discussão do urbanismo,++++ é o conceito 'modo de produção' que é substituído por 'modo de integração social, política e econômica' . Esse último conceito é então ilustrado por três 'tipos' -- reciprocidade, redistribuição e mercado de trocas -- elaborados até em bastante detalhe. O propósito da introdução desses termos é possibilitar uma dissecação da relação entre sociedade e urbanismo (p.206), e é possivel vislumbrar que naquele contexto a abordagem tem certo potencial. Algumas reservas, no entanto, devem ser feitas, particularmente a seu tratamento no caso em questão. Em primeiro lugar, em termos de análise histórica -- como oposto a um sistema de categorização -- a substituição parece ser inteiramente desnecessária. Quando o conceito de modo de integração é introduzido pela primeira vez (p. 206), seu proposito é 'substituir' o conceito de modo de produção. Já ao fim do capítulo, no entanto, os problemas de definição de períodos históricos são os mesmos que aqueles que surgem da utilização do conceito 'modo de produção'. Ainda mais: as referências da p.240 remetendo de volta ás p.199 e 202 deixam claro que os conceitos 'modo de integração econômica' e 'modo de produção' são vistos como sendo, ao nível descritivo, exatamente o mesmo. Em segundo lugar, a verdadeira diferença entre os dois conceitos reside na derivação de 'tipos' a partir deles. No caso de 'modos de produção' derivam-se 'feudalismo', 'capitalismo' etc, nomes de períodos de história concretos. De 'modos de integração' temos como derivados reciprocidade, redistribuição e mercado de trocas -- nomes de 'tipos ideais' que, pela descrição apresentada, não se limitam a épocas históricas determinadas. Assim, na p.265 os termos reciprocidade e redistribuição são utilizados como análise da intervenção estatal na sociedade capitalista-monopolista urbanizada. Parece-me que uma análise da intervenção estatal como tal teria sido bem mais esclarecedora, e evitaria aquele formalismo abstrato espúrio que pode resultar do uso de 'tipos ideais' dessa maneira. Além disso, a introdução de tais termos 'trans-históricos' afasta mais um pouco a análise do processo histórico, por serem os primeiros essencialmente descrições de formas assumidas por diversos períodos históricos e como tais são resultado, em última análise, do modo de produção dominante. E o modo de produção que produz tanto esses padrões de distribuição quanto imprime a dinâmica da transição de uma forma a outra.
Nesse contexto, é significativo que uma grande parte do capítulo final seja dedicado a Lefèbvre, e particularmente à Revolução Urbana (Lefèbvre, 1970). Assim como Harvey, também Lefèbvre centra sua análise sobre categorias trans-históricas -- no caso, rural, industrial e urbano. A confusão que isso gera emerge no argumento. Ao longo da maior parte da discussão, Harvey está de acordo com
E no entanto, há algumas questões estreitamente correlacionadas ainda que diversamente formuladas, que exigem respostas urgentes. Elas dizem respeito à análise do processo de urbanização enquanto origem e causa de contradições na estrutura global da formação social, e também enquanto locus específico de contradições, no interior da mesma formação social. De especial interesse no contexto de tais questões, vem o significado da irracionalidade espacial na estrutura urbana resultante, e os requisitos de intervenção do Estado e de planejamento espacial exigidos pelo processo de urbanização.
Muitos outros tópicos do livro poderiam ser tomados como potencial para novos debates. Há, por exemplo, um fio condutor de discussão sobre a natureza do espaço em termos de várias forrnas de análise. Um debate qve o livro jà estimulou entre os geógrafos diz respeito à natureza da renda do solo nas cidades em economias capitalistas monopolistas. Além de introduzir conceitos marxistas de renda, e provocar o retorno ao 'original' no Volurne 3 de O capital, Harvey também tenta estabelecer sua própria posição teórica sobre a natureza da renda do solo urbano. Sua interpretação de que ela contém uma parcela consideravel da renda absoluta é objeto de acalorado debate entre geógrafos e planejadores. O raciocínio de Harvey a esse respeito é sujeito a críticas muito específicas (seu conceito de classe, por exemplo, e sua discussão inacabada da fundamentação problemática de Marx da possibilidade de renda absoluta sobre diferenças intersetoriais na composição orgânica de capital), mas sua corajosa tentativa deve pelo menos sacudir um bom número de geógrafos-economistas para abandonarem seus pressupostos implícitos e tautológicos de que tudo pode ser explicado em termos de renda diferencial.
Esse livro e uma
intervenção no debate sobre urbanismo, e como tal deve ser
levado a sério. Na verdade ele deixa a impressão de que a
ruptura com a problemática inicial de liberalismo e humanismo
não foi inteiramente consumada. A terceira e última parte é
denominada, à maneira de um compromisso, de 'Sintese', e o
último parágrafo do livro refere-se a um "urbanismo
genuinamente humanizante" e a "um urbanismo apropriado à
espécie humana" -- frases essas que me parecem constituir uma
aproximação excessiva do campo inimigo, mesmo sob a
gara#notasntia de se tratar de uma missão de conversão.
Deve-se enfatizar, no entanto, que as críticas levantadas,
nessa resenha, o foram de dentro da aceitação do ponto
de vista teórico que Harvey tenta estabelecer. Como tal, elas
são parte do resultado que o livro pretendia alcançar: a
abertura de uma nova estrutura de debate para o estudo do
processo urbano.
Bibliografia
* Este artigo resulta de uma solicitação do editor de Environment & Planning A por uma resenha de Social justice and the city, David Harvey, Edward Arnold, London, 1973, 336p.
+ Ciência regional: geografia, em seu sentido mais lato (N. do T.).
1 A definição de 'problemática' aqui utilizada é aquela dada no glossário de Althusser & Balibar (1970).-- [Em termos sintéticos: uma palavra ou conceito só adquire significado dentro do arcabouço teórico ou ideológico em que é utilizado: sua problemática (N.do T.).]
++ A numeração de páginas citadas refere-se à edição inglesa (N. do T.).
+++ Itálico no original. --A ironia refere-se à expressão considerada sexista -- que utiliza o plural e a indefinição do gênero no masculino-- por uma reação contra a discriminação sexual que na década de 1970 já tinha força expressiva na Inglaterra (N. do T.).
++++ 'Urbanismo' na cultura
anglo-saxão se refere mais à produção e organização do espaço
enquanto suporte, ou mesmo parte integrante, da reprodução
capitalista, do que aos aspectos formais desse mesmo processo,
como na tradição francesa (N. do T.).