![]() SOBRE ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA Csaba Deák Extraído de (1985) Rent theory and the price of urban land, pp.211-7) Tradução de Francisco de Almeida (1990), revisada pelo autor. 8.3 Os limites à regulação pelo mercado A análise da transformação do processo individual de produção de mercadorias sob os efeitos combinados do preço das mercadorias em si e do preço das localizações, já esclarece em parte o papel específico que cabe à organização espacial na produção de mercadorias até onde última é desempenhada pelo mercado. Como já previamente observamos, no entanto, tal análise é necessariamente parcial, em primeiro lugar porque a economia não pode ser inteiramente mercadorizada, e em segundo, porque a produção de localização urbanas em especial não pode ser sequer individualizada, é muito menos mercadorizada, por isso sendo desempenhada necessariamente ao nível coletivo, com a produção do espaço urbano em sua totalidade. Estamos, na verdade, diante do rebatimento, ao nível da organização espacial, do fato elementar a dialética da forma-mercadoria, a saber, que a intervenção estatal é um complemento necessário, ainda que antagônico, à regulação pelo mercado. Algumas consequências imediatas para o processo individual de produção se manifestam sob a forma de tributação e do controle do padrão de assentamento ao nível da própria localização individual, através de leis de zoneamento e de regulações que garantem a compatibilidade com um padrão global de assentamento, como já visto. Além desse nível, no entanto, há a determinação da própria escolha da localização aberta ao processo individual de produção e que já depende da estrutura do espaço urbano como um todo. Nessa instância, a transformação do processo produtivo transcende os limites da localização individual e entra em relação direta com a própria produção do espaço. A transformação do espaço urbano é dominado pela necessidade de combater a diferenciação espacial decorrente do desenvolvimento da produção. A constribuição da regulação via mercado para com a organização espacial está em assinalar o nível de diferenciação dentro do espaço urbano por intermédio dos níveis de preço das localizações: quando aumenta aquela, aumenta igualmente a competição por melhores localizações tanto internamente a determinado ramo industrial, quanto entre ramos de indústrias, e o preço das localizações se eleva. No entanto,
se preços
de localização vistos como 'excessivamente' altos podem
dar
uma indicação correta, a saber, de que uma
intervenção
é necessária, de que trabalho precisa ser investido na
transformação
do espaço para torná-lo mais homogenêneo, e de que
as atividades urbanas deveriam ser re-localizadas, os mesmos
preços
não dão indicação alguma quanto a como
isso poderia ou deveria ser feito. Por exemplo, a falta de
localizações
para escritórios no centro urbano se fará sentir
através
de uma alta de preços destas, o que induz (uma
combinação
de) intensificação do uso do solo nos terrenos
disponíveis
-- processo esse que leva a um aumento do preço de
produção
(o que tem tembém seus próprios limites), e/ou uma
expansão
para novas localizações, vale dizer, uma
transformação
sobre localizações ocupadas por outros usos,13
como uso residencial de alta renda ou de alta densidade, ou
serviços
especializados e varejo. Estes últimos, por sua vez,
temerão
-- e com boa razão -- que tal transformação
resulte
em custos locacionais e de produção mais elevados. Na
verdade,
enquanto indivíduos, nem os primeiros nem estes últimos
usuários
podem ter a certeza de que, diante da opção de se mudar
ou
intensificar a técnica de produção, a
decisão
que terão tomado seja socialmente necessária e assim
aceita,
isto é, que seus custos de produção mais altos
serão
absorvidos pelo mercado. Tudo que resulta, portanto, é um
conflito
entre grupos relativamente homogêneos de usos ou usuários
e que não tem solução a esse nível: um
grupo
de usuários pretende mudar-se para localizações
ocupadas
por outro grupo que não quer abandoná-las. Essa
situação
poderá dar origem a 'grupos de interesse', no entanto um
confronto
direto entre estes resultará ainda em crescimento
anárquico
-- a não ser que o Estado intervenha. Isso, para não
falar
do fato de que, mesmo se o conflito colocado nessa forma fôr
resolvido,
o resultado ainda será apenas o deslocamento de um uso por
outro,
vale dizer, uma re-localização da produção,
que ainda exigirá a transformação do espaço
pela provisão de infra-estrutura em consonância com os
novos
requisitos da produção. Crescimento anárquico
das aglomerações urbanas
Especulação
em terra urbana O crescimento espontâneo acima descrito leva em consideração apenas os usuários finais (capital produtivo e comercial mais a habitação), que tipicamente avançariam ao longo da fronteira apropriando certo número de "fileiras" sucessivas de localizações (lotes) por período
Tudo que precisa para se determinar então a lucratividade (esperada) de se comprar um terreno na, digamos, quarta fileira, para revenda em quatro anos (para um usuário final) é comparar seu preço atual e seu provável preço futuro com a taxa de juro esperada –procedimento esse que não difere em nada da especulação no mercado de ações. Os detalhes concretos das operações especulativas com terras são intrincados,15 devido a um sem-número de artifícios dos quais a atividade lança mão para fazer frente aos elevados riscos envolvidos nas previsões de evoluções futuras. Tampouco são os 'especuladores' meros especuladores, visto que frequentemente procuram, e conseguem, não apens 'prever' senão também direcionar o 'futuro' por intermédio dos mais diversos meios e manipulações, inclusive ilegais e violentos16 – motivo pelo qual foram sempre alvo de críticas generalizadas, e a atividade como um todo goza de má reputação -- e assim, a especulação acaba não apenas acompanhando como tembém moldando o processo de transformação do espaço. Mas a questão –e é isto que permite o surgimento e a permanência da especulação em uma economia não-planejada (e na medida em que essa não é planejada)– a questão é que, como resultado da especulação, a transformação de uso (aqui: Z1 ð Z2) pode se dar por largas extensões de solo ao invés de mero alastramento e destruição/reconstrução contínua restrita à vizinhança imediata da fronteira em movimento, tornando possível, assim, a provisão de infraestruturas (vias, esgotos, redes de comunicação etc.), em escala compatível, na zona de especulação. Esta, do ponto-de-vista do uso so solo, torna-se uma zona de transição – enquanto que a especulação torna-se parte orgânica do processo de crescimento anárquico (não-planejado).17 Uma transformação do uso do solo operada com base em tal 'organização', deixa ainda pendente a implantação de infraestruturas que satisfaçam aos novos requisitos da produção resultantes da própria transformação. Como já assinalado, se a regulação via mercado é capaz de desempenhar um papel bastante abrangente na regulação do uso do espaço uma vez que este tenha sido produzido (devido ao fato das localizações poderem ser consumidas como mercadorias), o mercado é totalmente incapaz no que toca à produção do espaço, que transcende a ação de capitais individuais. A intervenção estatal deve por força desempenhar um papel predomimante na produção do espaço -- ainda que, como no caso do crescimento anárquico, fique à trela das demandas criadas pelo crescimento 'espontâneo' ao invés de induzir ou sequer antecipá-las; e mesmo que o Estado deixe a cargo do mercado a boa parte da regulação do uso do espaço. A natureza precisa da atuação das duas instâncias de regulação, assim como a preponderância entre ambas, evolui segundo os estágios de desenvolvimento e determinam, em conjunto, a localização e os padrões de assentamento. Nos
estágios
iniciais de urbanização, quando a
diferenciação
do espaço era relativamente baixa, os níveis de
infraestrutura
requeridos eram igualmente reduzidos, de modo que a
interevenção
do Estado -- e com ela, a própria questão da
produção
do espaço -- não se tornava proeminente. Crescimento
anárquico
é justamente o padrão de urbanização que
acompanha
o capitalismo em seu estágio inicial, de
acumulação
predominantemente extensiva: a deformidade das estruturas urbanas, a
miséria,
e a escala das epidemias (como descritas por Vitor Hugo, Dickens e
Engels,
por exemplo)18
resultantes
do crescimento 'espontâneo', eram, ainda,
suportáveis.
Também erem toleradas as atividades especulativas como processo
precípuo predominante de produção do espaço
urbano. 8.4 A emergência das condições históricas para o planejamento William
Morris 19
Por outro lado, o período de acumulação acelerada estava se esgotando, para dar lugar à Grande Depressão (1875-95). Isto marcou o fim da breve era do 'laissez-faire' (restrita à Inglaterra, de qualquer maneira), dando origem, por oposição, aos trustes, monopólios, ao capital financeiro, corporações e, em última instância, à ampliada, e sempre crescente, intervenção do Estado -- o caráter 'não-planejado' do capitalismo desapareceu com o estágio de acumulação predominatemente extensiva. Assim, os mesmos processos que levaram à necessidade de intervenção espacial planejada criaram também as condições para a sua concretização, e esta – a intervenção planejada– veio a ser uma característica fundamental do estágio de acumulação intensiva -- na verdade, do capitalismo 'plenamente desenvolvido'. A história do planejamento urbano -- a forma assumida pela intervenção do Estado na organização espacial-- é dominada pelo processo de difusão do capitalismo em seu estágio de acumulação intensiva ou em outras palavras, pelo rumo que tomou o desenvolvimento dos estados nacionais que se tornaram os principais centros de acumulação dentro da estrutura imperialista mundial. A reconstrução de Paris por Haussmann no transcorrer da década de 1850,22 ou o plano diretor da Ringstrasse de Viena (1859),23 eram exemplos admirados de intervenção urbana; porém, em nenhum lugar o planejamento urbano se desenvolveu em escala e abrangência como na Alemanha. De fato, a Alemanha se tornou o 'país-modelo' para países que iniciavam então seu processo de industrialização, como o Japão; para os Estados Unidos24 --ainda no estágio de acumulação extensiva--; e mesmo --depois do 'país-berço' do capitalismo ter tardiamente tomado consciência da necessidade planejamento-- para a própria Inglaterra.25 A expressão máxima desse processo foi a Bauhaus, que em sua efêmera existência /... (13) A questão relevante sendo, qual alternativa resultaria em um menor trabalho socialmente necessário. Esta é uma questão difícil de responder, mesmo em planejamento; e no âmbito do mercado, onde só poderia ser respondida por tentativa-e-erro (impraticável, em vista da rigidez dos processos produtivos), a questão sequer é colocada. (14) É compreensível que, depois de sua monumental pesquisa, incursionando em "cem anos de valores fundiários em Chicago" (Hoyt, 1933), o padrão de usos do solo tenha parecido a Hoyt bem mais diferenciado --"caleidoscópico", de fato (p. ix)-- que simplesmente concêntrico. (15) Para uma descrição destes, ver Castells (1978):136. (16) Ou ainda, legais, porém às custas do Estado. "A Comissão Metropolitana de Obras Públicas, por exemplo, levou a efeito um plano de melhoramentos em Whitechapel e Limehouse, e vendeu uma gleba naquele local à Peabody Trustees por £10.000. Tivesse ela sido autorizada a vender esse mesmo terreno para fins comerciais, teria podido obter £54.000 por ele, de modo que uma carga adicional de £44.000 foi jogada nas costas dos contribuintes" (Ashworth,1954:101). --Peabody Trust: uma organisação na Inglaterre Vitoriana com a suposta finalidade de construir e administrar habitações para a classe operária, 'sem fins lucrativos'; na prática, tem "subido nas faixas de mercado", buscando lucros ou, na opinião e nas palavras de uma Comissão de Notáveis que investigava suas atividades, em 1882, "um tanto além dos meios e fora das aspirações das classes menos favorecidas" (id.ibid, p.85). (17) É de se notar, assim, que por mais repugnante que esse processo possa ser, o que 'faz subir' os preços das localizações urbanas não é a especulação, aquela sendo apenas o processo precípuo de constituição e alocação das localizações dentro das condições vigentes de organização espacial em uma economia de mercado, senão a crescente diferenciação do espaço, e especialmente, a exacerbação desta devido a um atrazo, omissão ou deficiência na construção de infraestrutura urbana. (18) Les misérables; Oliver Twist; The conditions of the working class in England (Engels, 1845, especialmente 59ss e 120ss) respectivamente. (19) Cit. in Ashworth (1954):171. (20) Como já assinalado, 'acumulação' no regime predominantemente extensivo é na verdade principalmente expansão --ou extensão--, no caso, do trabalho assalariado (e com ele, da produção de mercadorias) em prejuízo a outras formas e relações de produção, mais do que um genuíno processo de acumulação autônoma. (21) "Durante esse primeiro século [de meados do século 18 aos meados do século 19] de urbanização industrial, os órgãos públicos pouco fizeram para controlar a evolução do ambiente urbano. Muitos dos novos centros industriais, tais como Manchester e Birmingham, ascenderam tão ràpidamente a partir de um status de aldeia ou pequena cidade entreposto, que nem dispunham de órgãos públicos municipais." (Sutcliffe, 1981:48). (22) Sutcliffe (1981):131ss. (23) Breitling (1980):40ss. (24) Sobre a influência germânica soobre o planejamento no início do século XX nos EEUU, ver Sutcliffe (1981:121-2), e a respeito dessa influência sobre a escola de Chicago em particular, Lees (1984). (25)
Patrick Abercrombie, 'pai' do planejamento urbano na Inglaterra,
constatava
em 1913: "A Alemanha chegou a um ponto mais avançado em
planejamento
urbano (town planning) que qualquer outro país" (cit in
Sutcliffe, 1981:9). Na Grã-Bretanha, o melhoramento das
condicões
da aglomeração urbana surgiu como necessidade imperiosa
para
assegurar as próprias condições de
repodução
do proletariado. "A Guerra Sul-Africana [dos Boeres, na virada do
século
XIX] fez mais do que tudo para encarecer a urgência da
necessidade
de melhorias na saúde pública nas cidades, por causa da
alta
proporção [perto da metade] dos recrutas para o
exército
inaptos para o serviço militar." O exemplo da Alemanha, ademais,
apereceu sob uma outra ótica também. "Planejamento urbano
[town planning] era defendido ... por temor à Alemanha: a menos
que comcemos já proteger finalmente a saúde de nossa
gente
tornando as cidades onde a maioria do povo agora vive, mais
favoráveis
ao corpo e ao espírito, tanto faz simplesmente entregarmos numa
bandeja, para a Alemanha, nosso comércio, nossas colônias,
toda a nossa influência no mundo." (Ashworth, 1954:168-9).
Referências ASHWORTH, William (1954) The genesis of modern British town planning Routledge & Kegan Paul, London BREITLING, Peter (1980) "The role of the competition in the genesis of urban planning: Germany and Austria in the nineteenth century" in SUTCLIFFE (Ed, 1980) CASTELLS,Manuel (1978) "Urban social movements and the struggle for democracy: the Citizen's Movement in Madrid" International Journal of Urban and Regional Research 2 (1):133-46 ENGELS, Friedrich (1845) The conditions of the working class in England Lawrence & Wishart, London HOYT, Homer (1933) One hundred years of land values in Chicago etc. Chicago UP, Chicago SUTCLIFFE, Anthony (Ed, 1980) The rise of modern urban planning 1800-1914 Mansell, London SUTCLIFFE, Anthony (1981) Towards the planned city/ Germany, Britain, the United States and France Basil Blackwell, London SUTCLIFFE,
Anthony (Ed, 1984) Metropolis 1890-1940 Mansell, London
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