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SOBRE ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA
Csaba Deák

Extraído de (1985) Rent theory and the price of urban land, pp.211-7) Tradução de Francisco de Almeida (1990), revisada pelo autor (2010; 2013)
 

8.3 Os limites à regulação pelo mercado

A análise da transformação do processo individual de produção de mercadorias sob os efeitos combinados do preço das mercadorias em si e do preço das localizações, já esclarece em parte o papel específico que cabe à organização espacial na produção de mercadorias até onde última é desempenhada pelo mercado. Como já anteriormente assinalado, no entanto, tal análise é necessariamente parcial, em primeiro lugar porque a economia não pode ser inteiramente mercadorizada, e em segundo, porque a produção de localização urbanas em especial não pode ser sequer individualizada, é muito menos mercadorizada, por isso sendo desempenhada necessariamente ao nível coletivo, com a produção do espaço urbano em sua totalidade. Estamos, na verdade, diante do rebatimento, ao nível da organização espacial, do fato elementar a dialética da forma-mercadoria, a saber, que a intervenção estatal é um complemento necessário, ainda que antagônico, à regulação pelo mercado. Algumas consequências imediatas para o processo individual de produção se manifestam sob a forma de tributação e do controle do padrão de assentamento ao nível da própria localização individual, através de leis de zoneamento e de regulações que garantem a compatibilidade com um padrão global de assentamento, como já visto. Além desse nível, no entanto, há a determinação da própria escolha da localização aberta ao processo individual de produção e que já depende da estrutura do espaço urbano como um todo. Nessa instância, a transformação do processo produtivo transcende os limites da localização individual e entra em relação direta com a própria produção do espaço.

A transformação do espaço urbano é dominada pela necessidade de combater a diferenciação espacial decorrente do desenvolvimento da produção. A contribuição da regulação via mercado para com a organização espacial está em assinalar o nível de diferenciação dentro do espaço urbano por intermédio dos níveis de preço das localizações: quando aumenta aquela, aumenta igualmente a competição por melhores localizações tanto internamente a determinado ramo industrial, quanto entre ramos de indústrias, e o preço das localizações se eleva.

No entanto, se preços de localização vistos como 'excessivamente' altos podem dar uma indicação correta, a saber, de que uma intervenção é necessária, de que trabalho precisa ser investido na transformação do espaço para torná-lo mais homogenêneo, e de que as atividades urbanas deveriam ser re-localizadas, os mesmos preços não dão indicação alguma quanto a como isso poderia ou deveria ser feito. Por exemplo, a falta de localizações para escritórios no centro urbano se fará sentir através de uma alta de preços destas, o que induz (uma combinação de) intensificação do uso do solo nos terrenos disponíveis -- processo esse que leva a um aumento do preço de produção (o que tem tembém seus próprios limites), e/ou uma expansão para novas localizações, vale dizer, uma transformação sobre localizações ocupadas por outros usos,13 como uso residencial de alta renda ou de alta densidade, ou serviços especializados e varejo. Estes últimos, por sua vez, temerão -- e com boa razão -- que tal transformação resulte em custos locacionais e de produção mais elevados. Na verdade, enquanto indivíduos, nem os primeiros nem estes últimos usuários podem ter a certeza de que, diante da opção de se mudar ou intensificar a técnica de produção, a decisão que terão tomado seja socialmente necessária e assim aceita, isto é, que seus custos de produção mais altos serão absorvidos pelo mercado. Tudo que resulta, portanto, é um conflito entre grupos relativamente homogêneos de usos ou usuários e que não tem solução a esse nível: um grupo de usuários pretende mudar-se para localizações ocupadas por outro grupo que não quer abandoná-las. Essa situação poderá dar origem a 'grupos de interesse', no entanto um confronto direto entre estes resultará ainda em crescimento anárquico -- a não ser que o Estado intervenha. Isso, para não falar do fato de que, mesmo se o conflito colocado nessa forma fôr resolvido, o resultado ainda será apenas o deslocamento de um uso por outro, vale dizer, uma re-localização da produção, que ainda exigirá a transformação do espaço pela provisão de infra-estrutura em consonância com os novos requisitos da produção.
 
 

Crescimento anárquico das aglomerações urbanas
 
Na ausência da intervenção do estado, o conflito entre usos do solo, ao nível individual, resultaria em que usos de categoria superior desbancam usos de categoria imediatamente inferior (que por sua vez farão o mesmo ao uso seguinte na hierarquia abaixo) resultando num padrão de crescimento espontâneo no qual os limites entre usos contíguos estão em movimento centrífugo constante...
A assim-chamada "Escola de Chicago" é uma interpretação fenomenológica de exatamente tal crescimento espontâneo das cidades no auge do laissez-faire americano (por exemplo, a 'teoria de zonas concêntricas' de Burgess, 1925, e o 'padrão setorial' de Hoyt) partindo do comportamento dos preços dos lotes individuais.14
... tendo de vencer constantemente a rigidez do capital fixo materializado em estruturas físicas (dentro e fora das localizações individuais), independentemente da taxa de obsolescência ou do estágio de desvalorização destas. É precisamente isto que leva ao processo de especulação.
 
 

Especulação em terra urbana
 

O crescimento espontâneo acima descrito leva em consideração apenas os usuários finais (capital produtivo e comercial mais a habitação), que tipicamente avançariam ao longo da fronteira apropriando certo número de "fileiras" sucessivas de localizações (lotes) por período
de tempo, digamos, anos. No entanto, é óbvio (a todos da área urbana) em qualquer dado momento, que após decorridos dois períodos temporais (anos) não apenas a primeira, mas também uma segunda fileira serão transformadas (e seus preços aumentarão de acordo), ou que em 3 ou 4 anos a terceira e quarta fileiras serão também transformadas, e assim sucessivamente, com um correspondente aumento do preço das localizações em questão. Isso cria uma zona de especulação do lado da categoria inferior da fronteira em movimento, acompanhando e precedendo aquela. Da profundidade de algumas "fileiras",
essa zona contém as localizações cujo preço vai subir em uma medida previsível num futuro previsível.

Tudo que precisa para se determinar então a lucratividade (esperada) de se comprar um terreno na, digamos, quarta fileira, para revenda em quatro anos (para um usuário final) é comparar seu preço atual e seu provável preço futuro com a taxa de juro esperada –procedimento esse que não difere em nada da especulação no mercado de ações.

Os detalhes concretos das operações especulativas com terras são intrincados,15 devido a um sem-número de artifícios dos quais a atividade lança mão para fazer frente aos elevados riscos envolvidos nas previsões de evoluções futuras. Tampouco são os 'especuladores' meros especuladores, visto que frequentemente procuram, e conseguem, não apens 'prever' senão também direcionar o 'futuro' por intermédio dos mais diversos meios e manipulações, inclusive ilegais e violentos16 – motivo pelo qual foram sempre alvo de críticas generalizadas, e a atividade como um todo goza de má reputação -- e assim, a especulação acaba não apenas acompanhando como tembém moldando o processo de transformação do espaço. Mas a questão –e é isto que permite o surgimento e a permanência da especulação em uma economia não-planejada (e na medida em que essa não é planejada)– a questão é que, como resultado da especulação, a transformação de uso (aqui: Z1 ð Z2) pode se dar por largas extensões de solo ao invés de mero alastramento e destruição/reconstrução contínua restrita à vizinhança imediata da fronteira em movimento, tornando possível, assim, a provisão de infraestruturas (vias, esgotos, redes de comunicação etc.), em escala compatível, na zona de especulação. Esta, do ponto-de-vista do uso so solo, torna-se uma zona de transição – enquanto que a especulação torna-se parte orgânica do processo de crescimento anárquico (não-planejado).17

Uma transformação do uso do solo operada com base em tal 'organização', deixa ainda pendente a implantação de infraestruturas que satisfaçam aos novos requisitos da produção resultantes da própria transformação. Como já assinalado, se a regulação via mercado é capaz de desempenhar um papel bastante abrangente na regulação do uso do espaço uma vez que este tenha sido produzido (devido ao fato das localizações poderem ser consumidas como mercadorias), o mercado é totalmente incapaz no que toca à produção do espaço, que transcende a ação de capitais individuais. A intervenção estatal deve por força desempenhar um papel predomimante na produção do espaço -- ainda que, como no caso do crescimento anárquico, fique à trela das demandas criadas pelo crescimento 'espontâneo' ao invés de induzir ou sequer antecipá-las; e mesmo que o Estado deixe a cargo do mercado a boa parte da regulação do uso do espaço. 

A natureza precisa da atuação das duas instâncias de regulação, assim como a preponderância entre ambas, evolui segundo os estágios de desenvolvimento e determinam, em conjunto, a localização e os padrões de assentamento.

Nos estágios iniciais de urbanização, quando a diferenciação do espaço era relativamente baixa, os níveis de infraestrutura requeridos eram igualmente reduzidos, de modo que a interevenção do Estado -- e com ela, a própria questão da produção do espaço -- não se tornava proeminente. Crescimento anárquico é justamente o padrão de urbanização que acompanha o capitalismo em seu estágio inicial, de acumulação predominantemente extensiva: a deformidade das estruturas urbanas, a miséria, e a escala das epidemias (como descritas por Vitor Hugo, Dickens e Engels, por exemplo)18 resultantes do crescimento 'espontâneo', eram, ainda, suportáveis. Também erem toleradas as atividades especulativas como processo precípuo predominante de produção do espaço urbano.
 
 

8.4 A emergência das condições históricas para o planejamento

Londres e as demais grandes cidades comerciais da Inglaterra [não passam de] "meros amontoados de sordidez, imundíce e miséria, embelezados com remendos de uma hediondez pomposa e vulgar".
William Morris 19
A maturação da necessidade e das condições históricas para a regulação espacial planejada e a intervenção estatal, foi no entanto, uma consequência inevitável do próprio desenvolvimento do estágio predominantemente extensivo de acumulação. Por uma combinação de acumulação acelerada,20 que trouxe rápido crescimento demográfico, e do desenvolvimento da machinofatura, que requeria concentração espacial, as aglomerações urbanas alcançavam escalas sem precedentes –acumulação, neste estágio, era o crescimento do proletariado–, enquanto que a retórica do laissez-faire e do livre-comércio mantinham a regulação (espacial ou outra) em estado não-planejado.21 Pelo final da década de 1860, por um lado, o crescimento 'espontâneo' das aglomerações urbanas havia resultado em estruturas espaciais ineficientes e virtualemte ingovernáveis, que ameaçavam a própria reprodução social. Vinte anos depois, William Morris se referiria a elas como "meros amontoados de sordidez, imundíce e miséria, de uma hediondez pomposa e vulgar", como na citação em epígrafe.

Por outro lado, o período de acumulação acelerada estava se esgotando, para dar lugar à Grande Depressão (1875-95). Isto marcou o fim da breve era do 'laissez-faire' (restrita à Inglaterra, de qualquer maneira), dando origem, por oposição, aos trustes, monopólios, ao capital financeiro, corporações e, em última instância, à ampliada, e sempre crescente, intervenção do Estado -- o caráter 'não-planejado' do capitalismo desapareceu com o estágio de acumulação predominatemente extensiva. Assim, os mesmos processos que levaram à necessidade de intervenção espacial planejada criaram também as condições para a sua concretização, e esta – a intervenção planejada– veio a ser uma característica fundamental do estágio de acumulação intensiva -- na verdade, do capitalismo 'plenamente desenvolvido'.

A história do planejamento urbano -- a forma assumida pela intervenção do Estado na organização espacial-- é dominada pelo processo de difusão do capitalismo em seu estágio de acumulação intensiva ou em outras palavras, pelo rumo que tomou o desenvolvimento dos estados nacionais que se tornaram os principais centros de acumulação dentro da estrutura imperialista mundial. A reconstrução de Paris por Haussmann no transcorrer da década de 1850,22 ou o plano diretor da Ringstrasse de Viena (1859),23 eram exemplos admirados de intervenção urbana; porém, em nenhum lugar o planejamento urbano se desenvolveu em escala e abrangência como na Alemanha. De fato, a Alemanha se tornou  o 'país-modelo' para países que iniciavam então seu processo de industrialização, como o Japão; para os Estados Unidos24 --ainda no estágio de acumulação extensiva--; e mesmo --depois do 'país-berço' do capitalismo ter tardiamente tomado consciência da necessidade planejamento-- para a própria Inglaterra.25  A expressão máxima desse processo foi a Bauhaus, que em sua efêmera existência /...


Notas

(13)  A questão relevante sendo, qual alternativa resultaria em um menor trabalho socialmente necessário. Esta é uma questão difícil de responder, mesmo em planejamento; e no âmbito do mercado, onde só poderia ser respondida por tentativa-e-erro (impraticável, em vista da rigidez dos processos produtivos), a questão sequer é colocada. 

(14)  É compreensível que, depois de sua monumental pesquisa, incursionando em "cem anos de valores fundiários em Chicago" (Hoyt, 1933), o padrão de usos do solo tenha parecido a Hoyt bem mais diferenciado --"caleidoscópico", de fato (p. ix)-- que simplesmente concêntrico.

(15)  Para uma descrição destes, ver Castells (1978):136.

(16)  Ou ainda, legais, porém às custas do Estado. "A Comissão Metropolitana de Obras Públicas, por exemplo, levou a efeito um plano de melhoramentos em Whitechapel e Limehouse, e vendeu uma gleba naquele local à Peabody Trustees por £10.000. Tivesse ela sido autorizada a vender esse mesmo terreno para fins comerciais, teria podido obter £54.000 por ele, de modo que uma carga adicional de £44.000 foi jogada nas costas dos contribuintes" (Ashworth,1954:101). --Peabody Trust: uma organisação na Inglaterre Vitoriana com a suposta finalidade de construir e administrar habitações para a classe operária, 'sem fins lucrativos'; na prática, tem "subido nas faixas de mercado", buscando lucros ou, na opinião e nas palavras de uma Comissão de Notáveis que investigava suas atividades, em 1882, "um tanto além dos meios e fora das aspirações das classes menos favorecidas" (id.ibid, p.85).

(17) É de se notar, assim, que por mais repugnante que esse processo possa ser, o que 'faz subir' os preços das localizações urbanas não é a especulação, aquela sendo apenas o processo precípuo de constituição e alocação das localizações dentro das condições vigentes de organização espacial em uma economia de mercado, senão a crescente diferenciação do espaço, e especialmente, a exacerbação desta devido a um atrazo, omissão ou deficiência na construção de infraestrutura urbana.

(18) Les misérables; Oliver Twist; The conditions of the working class in England (Engels, 1845, especialmente 59ss e 120ss) respectivamente. 

(19) Cit. in Ashworth (1954):171.

(20)    Como já assinalado, 'acumulação' no regime predominantemente extensivo é na verdade principalmente expansão --ou extensão--, no caso, do trabalho assalariado (e com ele, da produção de mercadorias) em prejuízo a outras formas e relações de produção, mais do que um genuíno processo de acumulação autônoma.

(21)  "Durante esse primeiro século [de meados do século 18 aos meados do século 19] de urbanização industrial, os órgãos públicos pouco fizeram para controlar a evolução do ambiente urbano. Muitos dos novos centros industriais, tais como Manchester e Birmingham, ascenderam tão ràpidamente a partir de um status de aldeia ou pequena cidade entreposto, que nem dispunham de órgãos públicos municipais." (Sutcliffe, 1981:48).

(22)  Sutcliffe (1981):131ss.

(23)  Breitling (1980):40ss.

(24)  Sobre a influência germânica soobre o planejamento no início do século XX nos EEUU, ver Sutcliffe (1981:121-2), e a respeito dessa influência sobre a escola de Chicago em particular, Lees (1984).

(25)  Patrick Abercrombie, 'pai' do planejamento urbano na Inglaterra, constatava em 1913: "A Alemanha chegou a um ponto mais avançado em planejamento urbano (town planning) que qualquer outro país" (cit in Sutcliffe, 1981:9). Na Grã-Bretanha, o melhoramento das condicões da aglomeração urbana surgiu como necessidade imperiosa para assegurar as próprias condições de repodução do proletariado. "A Guerra Sul-Africana [dos Boeres, na virada do século XIX] fez mais do que tudo para encarecer a urgência da necessidade de melhorias na saúde pública nas cidades, por causa da alta proporção [perto da metade] dos recrutas para o exército inaptos para o serviço militar." O exemplo da Alemanha, ademais, apereceu sob uma outra ótica também. "Planejamento urbano [town planning] era defendido ... por temor à Alemanha: a menos que comcemos já proteger finalmente a saúde de nossa gente tornando as cidades onde a maioria do povo agora vive, mais favoráveis ao corpo e ao espírito, tanto faz simplesmente entregarmos numa bandeja, para a Alemanha, nosso comércio, nossas colônias, toda a nossa influência no mundo." (Ashworth, 1954:168-9).
 

Referências

ASHWORTH, William (1954) The genesis of modern British town planning Routledge & Kegan Paul, London

BREITLING, Peter (1980) "The role of the competition in the genesis of urban planning: Germany and Austria in the nineteenth century" in SUTCLIFFE (Ed, 1980)

CASTELLS,Manuel (1978) "Urban social movements and the struggle for democracy: the Citizen's Movement in Madrid" International Journal of Urban and Regional Research 2 (1):133-46

ENGELS, Friedrich (1845) The conditions of the working class in England Lawrence & Wishart, London

HOYT, Homer (1933) One hundred years of land values in Chicago etc. Chicago UP, Chicago

SUTCLIFFE, Anthony (Ed, 1980) The rise of modern urban planning 1800-1914 Mansell, London

SUTCLIFFE, Anthony (1981) Towards the planned city/ Germany, Britain, the United States and France Basil Blackwell, London

SUTCLIFFE, Anthony (Ed, 1984) Metropolis 1890-1940 Mansell, London


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