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Espaço & Debates 28:18-31, 1989
Republicado em Deák (2001), Cap.6 
O MERCADO E O ESTADO NA ORGANIZAÇÃO ESPACIAL DA PRODUÇÃO CAPITALISTA (*)

Csaba Deák

Tradução de Micaela Krumholz
Revisão do autor

Versão provisória em html: 00.10.21; 03.05.7


 O debate sobre a teoria da renda, o preço da terra urbana –e conseqüentemente, o preço das próprias mercadorias–, a questão habitacional, a especificidade da regulação capitalista em contraposição ao planejamento socialista ou a atual crise do capitalismo tem o seguinte em comum: todas as questões assim levantadas estão relacionadas com a organização espacial da produção. Por esta razão, é conveniente, senão necessário, abordar tais questões a partir de um arcabouço teórico que inclua a análise da organização espacial da (re)produção capitalista desde o princípio, em vez de ser uma inserção de última hora como a 'teoria da renda' da Economia Política ou a 'teoria da localização' na economia vulgar1. Propomo-nos aqui a substanciar essa posição e esboçar algumas teses de tal arcabouço, que admite ainda uma segunda característica básica: a de situar o antagonismo mais profundo e a própria força motriz do capitalismo no que se pode chamar de dialética da forma-mercadoria.

Na falta de se poder expor detalhes de uma teoria dentro dos limites de um artigo2 utilizaremos algumas das questões acima referidas simplesmente como exemplos para ilustrar a abordagem em casos específicos. Espera-se, contudo, que através da sucessão de exemplos haja uma progressão, senão um movimento ininterrupto, dos níveis de abordagem concreto para abstrato, e que resulte num esboço coerente de uma teoria em uso.
 

1  Renda ou preço da terra?

A noção de que o preço da terra urbana se relaciona de alguma forma à `distribuição espacial' da atividade humana constitui uma noção das mais intuitivas em decorrêncta da própria experiência cotidiana. Porém, para a Economia Política e também para Marx, o preço da terra é a  'forma capitalizada' de sua renda e conseqüentemente, a análise urbana tem sido obstruída até hoje pela ortodoxia em relação à teoria de renda. Durante a década de 1970 o interesse nessa `teoria' encontrava-se no seu auge. Contudo, as várias tentativas de aplicação da teoria de renda à análise urbana falharam e uma linha crítica, potencialmente mais promissora e acompanhada de acalorado debate, esgotou-se sem chegar a sua conclusão3.

O argumento em favor da rejeição da teoria da renda pode ser resumido como segue**. No estágio inicial do capitalismo, a categoria de renda feudal foi transposta para a análise do capitalismo pela Economia Política (Smith, Stewart) junto com o fantasma da classe dos senhores feudais, a classe dos 'proprietários de terra'. Membros desta classe mantêm um suposto monopólio de alguns dons da natureza –notadamente da terra–, a renda sendo o pagamento que eles conseguem extrair dos capitalistas pelo uso dos `poderes produtivos' "originais e indestrutíveis" do solo. A renda da terra, tendo sido assim promovida ao status de categoria com base em tal conceituação, foi então analisada sob o pressuposto do equilíbrio (como na teoria da renda diferencial de Ricardo, que se tornaria hegemônica e da quaJ o próprio Marx não iria conseguir se livrar). Uma vez que o pressuposto do equilíbrio implica, por sua vez, a perfeita fluidez de capitais (permitindo a passagem de um equilíbrio para outro, instantaneamente, e sem custo), a teoria da renda não pode sequer abordar a questão da transformação do uso do solo, onde o fato crucial é a rigidez dos capitais materializados em processos concretos (individuais) de produção4.

Para se ter uma idéia de todo o peso de suas limitações, recorde-se que o marginalismo consiste precisamente na generalização da teoria da renda para a economia como um todo5. Na época de Ricardo tal desenvolvimento era apenas uma possibilidade, mas não passou despercebido para muitos e precisamente por essa razão,
 

Ricardo conquistou a Inglaterra tão completamente como a Santa Inquisição conquistou a Espanha, (Keynes, 1936, p.32)


Para a burguesia, que tinha acabado de dar um importante passo na conquista do poder político através da extensão do sufrágio com a aprovação do Reform Bill (1832) e que agora estava em posição de impor qualquer política que fosse de seu interesse – a rejeição das Leis dos Cereais (Corn Laws) e a vitória do livre-comércio (Free Trade) viriam logo a seguir –, era da maior importância que o capitalismo fosse visto como uma ordem natural e ser 'analisado' a partir do pressuposto do equilíbrio (harmonia, comunidade de interesses [commonwealth] etc, os próprios pilares da ideologia liberal), um arcabouço no qual a teoria da renda seria a peça central. Para a crítica, o mesmo reconhecimento conduz à necessidade de eliminação da teoria da renda da análise dos processos que regulam –espacialmente ou não– a produção capitalista.

0 abandono da teoria da renda deixa um vácuo que tanto permite quanto exige ser preenchido por novas categorias. No que tange à `terra' é preciso ressaltar, de início, que no capitalismo não se paga pela terra enquanto tal e muito menos enquanto `recurso natural', senão enquanto uma propriedade que permite o uso de uma determinada porção da Terra em exclusividade individual. Uma vez que a terra é uma propriedade privada, ela pode ser comprada e vendida e, portanto, comanda um preço. Tal preço não pode ser visto como uma forma `capitalizada' de renda em vista do desaparecimento desta categoria com o advento do capitalismo; ao contrário, deve ser analisada diretamente enquanto categoria por direito próprio. Contudo, não há relação social específica correspondente ao preço da terra a não ser a propriedade privada – uma pré-condição da própria relação capital. A especificidade do preço da terra, em relação ao preço das mercadorias em geral, reside na sua vinculação tanto com a produção quanto com o uso do espaço e, de fato, o preço da terra é governado pela necessidade da organização da produção por sobre o espaço.
 

2  Espaço e localização

Categorias são formas de ser, características de existência.
Marx


O espaço não é uma ‘nova dimensão’ da reprodução em sociedade – ainda que a organização espacial tenha-se tornado uma preocupação somente no estágio da acumulação predominantemente intensiva do capitalismo. Engels disse que matéria sem movimento é tão inconcebível quanto movimento sem matéria; é apenas um corolário dizer-se que produção material sem espaço é tão inconcebível como matéria sem movimento. Toda sociedade necessita de um território para viver; com a divisão social do trabalho este território é estruturado em espaço(6). Os conceitos de localização e espaço derivam da prática social da produção e reprodução dentro de uma divisão de trabalho, característica de um modo de produção.

Designamos por ‘espaço’ no capitalismo, o território de um mercado unificado no qual a forma-mercadoria se generalizou. Tal espaço encerra localizações, uma localização sendo o locus de um processo individual de produção (ou de reprodução). A especificidade de um espaço concreto é definida pelas relações entre suas localizações7. Tais relações se materializam em estruturas físicas: trilhas, estradas, fios, cabos, tubulações, satélites e assim por diante. Por sua vez as localizações em si se materializam em extensões finitas, delimitadas do território, cuja expressão elementar é a forma jurídica da propriedade – um pedaço de terra ou uma unidade de área construída8. Todos esses elementos precisam ser construídos através do dispêndio de trabalho humano. O espaço urbano e as localizações ali contidas são, portanto, produtos históricos. A terra enquanto localização, longe de ser uma dádiva da natureza, é um produto do trabalho que continuamente (re)produz o espaço de acordo com os requisitos sempre mutantes da acumulação.

A categoria renda da terra dá lugar assim à categoria pagamento pela localização. Este último pode tomar, como historicamente tomou de fato, a forma de renda ou a forma de preço, de acordo com o período e o nível de controle exercido sobre a localização enquanto condição de produção. Já mostrei em outro lugar9, que o preço é a forma compatível com a forma-mercadoria plenamente desenvolvida, sendo a renda uma forma subsidiária em casos como, em particular, nos estágios inicial e final de desenvolvimento de ramos industriais específicos onde a forma-mercadoria ainda não se desenvolveu plenamente ou onde ela já ultrapassou sua maturidade. Aqui lembremos apenas que qualquer condição duradoura de produção pode ser arrendada, com o resultado de transformar o correspondente capital fixo em capital circulante – o arrendamento da terra sendo apenas um caso particular de tal transformação.

Prosseguindo, a própria localização pode assumir várias formas, das quais a ‘terra’ é sem dúvida a mais comum, porém de modo algum a  única. Uma característica peculiar do espaço contemporâneo consiste precisamente na variedade crescente das formas nas quais as localizações podem materializar-se: além da terra pode-se ter localizações (loci de processos individuais de produção) no ar; no mar, no solo marinho ou em satélites artificiais. Sendo uma condição necessária de produção (ou reprodução), e sendo colocadas no mercado, conquanto não produzidas, como mercadorias, o direito de seu uso será pago, seja na forma de renda, seja na forma de preço. Em todos esses casos, nos confrontamos com uma das muitas formas de materialização de uma mesma categoria, a saber, da categoria de pagamento pela localização.
 

3  O pagamento pela localização: um meio de organização espacial da produção

Chegamos assim à conceituação do preço da terra como sendo um meio da organização (espacial) da produção, da mesma forma como o é o preço das próprias mercadorias. Esta última idéia é colocada com clareza na definição de Rowthorn:

O preço natural [isto é, o preço de produção, CD] de uma mercadoria é simplesmente o preço que deve ser pago, em condições competitivas, para garantir a produção de tal mercadoria numa dada escala (10).
Precisamos acrescentar apenas que "garantir a produção" deve seguramente incluir uma localização que por sua vez deve ser paga, de maneira que o pagamento pela localização está incluído no preço de produção de uma mercadoria juntamente com os meios de produção, matéria-prima e trabalho. Conseqüentemente, o preço da produção determina, juntamente com a técnica (escala) de produção, o nível de pagamento pela localização e, portanto, a inserção (`localização') do respectivo processo individual de produção no espaço urbano. Note-se que esta última determinação não precede nem segue a determinação de um suposto processo de produção ‘como tal’, ou seja, sua determinação em tudo exceto a localização. De fato, ambas determinações são simultâneas e, na verdade, um processo concreto de produção é inconcebível sem uma localização onde possa se dar (11).

Na medida em que a produção é regulada pelo mercado, o preço da localização desempenha seu papel na distribuição espacial dos processos individuais de produção e reprodução. No entanto, a regulação não se dá exclusmamente através do mercado. Se a noção acerca da "natureza anárquica" da produção capitalista nunca significou a total ausência de intervenção do Estado no funcionamento da “mão invisível" de Adam Smithl2, no estágio de acumulação predominantemente intensiva tal noção deve ser definitivamente descartada. Já em 1891, Engels dava conta de que o capitalismo não podia mais ser visto como desprovido de planejamento. “Esta idéia se tornou obsoleta; desde a existência de trustes, a ausência de planejamento desaparece"13. Conforme prosseguia o desenvolvimento do capitalismo, ampliava-se o papel da intervenção do Estado no âmbito da produção, para não falar de seu papel na reprodução das condições ‘não-econômicas’ da produção14, muitas das quais pertencem precisamente ao âmbito da produção e do controle do uso do espaço.

O que é verdadeiro para a organização da produção em geral vale também para a organização espacial em particular. Assim como o fluxo de capital entre empresas e ramos industriais é regulado em grau menor ou maior (de acordo com o estágio da acumulação) através de impostos, subsídios, intervenção direta, regulação afetando a concentração e a centralização do capital, controles nas fronteiras nacionais e assim por diante, da mesma maneira a localização espacial é enquadrada mediante zoneamento legal, impostos e taxas de localização, empreendimentos públicos etc, de modo que o preço da localização exerça sua função de organização apenas dentro daquilo que ainda resta de ‘liberdade’ ao mercado. O preço da terra – a forma dominante de pagamento pela localização – torna-se assim um dos meios de organização espacial da produção juntamente com outros meios, tais como as ações normativas, indutivas e coercivas do Estado. Da mesma maneira em que a regulação econômica se dá através de uma combinação de forças do mercado e planejamento, a regulação espacial se exerce por uma combinação dos mesmos processos, que se concretizam, respectivamente, no preço da localização e na intervenção do Estado. A combinação particular dos diversos meios de regulação utilizados em uma época histórica específica é determinada pelo estágio de desenvolvimento das forças produtivas, ou mais precisamente, do antagonismo entre a produção de valores de uso enquanto valores de troca (isto é, a produção de mercadorias) e a produção direta de valores de uso. Como será discutido adiante, um dos aspectos da crise atual diz respeito ao aumento do papel do Estado na regulação do capitalismo até um ponto que coloca em questão a própria primazia da forma-mercadoria, o que delineia uma perspectiva de abordagem para análise do pagamento pela localização e em particular, do preço da terra na aglomeração urbana.
 

4  Organização espacial em estágios específicos de desenvolvimento

É de evidência elementar que para uma dada diversificação do espaço (e portanto, para mesma intensidade de regulação necessária),  quanto mais a organização do espaço for exercida através de intervenção estatal, menos sobra para ser organizado pelo preço – que será então mais baixo – e, reciprocamente, quanto menos intervenção direta houver na regulação espacial, maior a responsabilidade do preço das localizações o qual deverá então apresentar maiores diferenciais e, portanto, cobrirá um campo de variação maior – em outras palavras, o preço das localizações será mais elevado. Um exemplo histórico eloqüente e que ilustra o que precede foi fornecido pela introdução do Novo Mecanismo Econômico (NME) na Hungria l5. Em Budapeste, o preço do solo tinha se mantido estacionário e baixo, quase que puramente nominal, por cerca de duas décadas depois da II Guerra Mundial. A localização de atividades (empresas estatais, e até unidades residenciais) era regulada mediante planejamento altamente centralizado, virtualmente por decreto. Com a introdução do NME em 1968, os preços do solo na capital dispararam, para em alguns casos superarem em até dez vezes, os níveis anteriores ao NME, em um movimento cuja causa, no caso de Budapeste, não pode ser atribuída ao rápido crescimento, nem demográfico, nem da produção (que efetivamente impõe uma necessidade maior de regulação espacial), de vez que o crescimento era virtualmente nulo. Uma clara explicação do referido movimento é fornecida, contudo, pela simples descriçâo da natureza da mudança ocasionada pelo NME:

A essência da refiorma econômica húngara de 1968 pode ser resumida como sendo a introdução de orientação indireta através de reguladores econômicos (preço, crédito, política fiscal e salarial) em lugar de uma orientação direta das unidades econômicas de instruções (Kemenes, 1981 , p. 583).
Entre as tendências mais recentes do capitalismo contemporâneo, além do fortalecimento do papel da intervenção do Estado, pelo que até aqui entendemos implicitamente Estado nacional, outra transformação de longo alcance atualmente em curso refere-se precisamente ao papel do Estado nacional dentro do capitalismo mundial. Embora a acumulação de capital nunca mais e em nenhum lugar foi tal processo relativamente autônomo como nos primórdios do capitalismo na Inglaterra, pois a introdução da produção capitalista em novos centros de acumulação como Alemanha, França ou Japão foi em boa medida induzida pela pressão dos focos de irradiação constituídos pelos centros mais antigos – exercida pela Inglaterra e mais tarde pelos Estados Unidos16, os processos mais fundamentais do capitalismo, como a imposição da relação salarial e a unificação do mercado, se restringiram por ora essencialmente ao quadro institucional da nação-estado. Hoje, contudo, e qualquer que seja o desfecho da presente crise, é pouco provável que a reprodução e a reestruturação do capital possam continuar no relativo isolamento dos níveis nacionais no qual – e não obstante as várias tentativas de regulação supranacional a partir do início deste sécuio – tais processos permaneceram até hoje. Se é que as condições para a acumulação capitalista possam ser restabelecidas, isto deverá se dar com base em planejamento e controle transnacionais consideravelmente ampliados, o que por sua vez requer um quadro também supranacional de infra-estrutura institucional. É possível que então a organização do espaço deva ser analisada com base em novas premissas em que um nível internacional venha a ser imposto e sobreposto aos níveis regionais ou locais de organização espacial, mas tais transformações ainda são por demais embrionárias e não poderiam ser analisadas por antecipação. Nesta interim, o espaço econômico nacional, onde o livre fluxo de capital e trabalho é assegurado e onde prevalece uma relação-salário específica, continua sendo o objeto principal da organização espacial, o que, por sua vez, estabelece o referencial para a análise do preço da terra.
 

5  Valor de uso e valor do espaço e da localização

A abordagem segundo a qual o preço da terra não é uma renda paga pelo uso de uma ‘dádiva da natureza’ senão um pagamento pela localização em um ambiente produzido pelo homem, permite um reexame das questões do valor de uso e valor das localizações, da produção do espaço e, finalmente, do papel desse último no processo de acumulação. Comecemos pelas implicações do ‘teor de trabaIho’ do espaço, tanto no que se refere ao valor da localização quanto à determinação do nível de pagamento pela mesma.

O importe do fato de que o espaço é produto do trabalho não é tanto que o espaço urbano perde seu conteúdo ‘natural’ – por certo seu estofo é matéria encontrada na natureza – senão, antes que quaisquer que sejam as transformações pelas quais os elementos constitutivos ‘originais’ da natureza que constituem o espaço tenham passado até uma determinada época, os mesmos elementos ‘naturais’ e o produto de trabalho passado podem ser novamente transformados, de maneira que não há elemento permanente no espaço. Daí a futilidade de tentativas de descobrir o elemento natural no espaço, como no caso da teoria de renda, ou de determinar a quantidade de natureza e a quantidade de trabalho ‘contidos’ no espaço em determinada época histórica específica para medir seu valor, como no caso da teoria do valor

Tanto a teoria de renda como a teoria do valor são, na verdade, abordagens que procuram determinar o que é ao invés de o que está se tornando (no sentido de devir) ambas, portanto, voltadas à análise de situações em vez de processos. Em última instância, ambas implicam o conceito de equilíbrio, como se um equilíbrio (de processos produtivos, de distribuição espacial de atividades etc.) pudesse instantaneamente se formar a partir de uma estrutura vigente – apenas para ser substituído no instante seguinte. Nossa própria abordagem aqui enfoca, antes, as transformações lavradas no espaço pelo trabalho em resposta às exigências mutáveis do desenvolvimento das forças produtivas que acompanham o processo de acumulação. Na verdade, a produção do espaço é transformação do espaço no sentido estrito, em que o produto final da intervenção no espaço não é alguma estrutura particular (‘nova’), senão a própria transformação em si das relações que constituem o espaço. As estruturas físicas que se materializam no processo podem permanecer – e partes das mesmas permanecem de fato – inalteradas durante algum tempo, mesmo que somente aguardando serem, por sua vez, transformadas, assim que necessidade para tal se faça sentir. Mesmo enquanto permanecerem fisicamente inalteradas, contudo, tais partes da estrutura alteram-se ainda assim enquanto valores de uso, com o desenvolvimento do processo de produção (bastaria lembrar as Sete Maravilhas do Mundo, por exemplo).

Analogamente, conquanto uma localização não é consumida em produção, ao nível individual, as localizações tornam-se ainda assim obsoletas através do tempo, devido, tanto ao desgaste físico, como pelo fato de que as inovações tecnológicas que acompanham o desenvolvimento da produção implicam mudanças nos requisitos da produção e reprodução, às quais o espaço – se não, a localização individual – precisa constantemente ser adaptado mediante trabalho adicional. Portanto, nenhuma localização particular é (como a forma-preço de pagamento pela mesma poderia sugerir) uma condição ‘permanente’ de produção, nem possui um valor de uso intrínseco: o valor de uso de uma localização é incessantemente transformado e as atividades econômicas individuais precisam, por sua vez, se adaptar às mudanças do espaço urbano – o que constitui o proprio processo de transformação do uso do solo. Elas devem vir de novo ao mercado como ‘consumidoras’ barganhando por localizações adequadas. Na verdade, a intervenção no espaço – a produção do espaço – consiste em transformação, mais do que, seja em conservação de estruturas existentes, seja em alcançar alguma estrutura ou ‘situação’ particular, que somente poderia ser concebida como um ‘ideal’. 0 que o desenvolvimento do processo de produção requer, pelo contrário, é a incessante transformação do espaço.

0 valor do trabalho despendido na prcdução do espaço dissipa as objeções – como aquelas\levantadas na Economia Política clássica no âmbito da teoria de renda – contra o fato de o pagamento pela terra entrar no preço de produção das mercadorias. O tempo de trabalho despendido na produção do espaço é socialmente validado indiretamente e ao nível agregado através do consumo das mercadorias produzidas por sobre o espaço como um todo. A correspondente transformação do espaço dá origem a novos níveis de pagamento pelas localizações contidas nesse espaço e que serão ocupadas por novos processos individuais (na mercadoria, na quantidade e na técnica) de produção. Tais pagamentos são incorporados ao preço de produção da mercadoria de maneira que o trabalho despendido na transformação do espaço seja fmalmente validado nesta forma, mediante o consumo de mercadorias. ‘Valor de umã localização’, no entanto, não tem significado, dado que nenhuma porção do espaço encerra um conteúdo específico de trabaIho abstrato: todo trabalho desempenhado sobre qualquer porção particular do espaço redefine (transforma) o espaço urbano como um todo17. Conseqüentemente – e da mesma maneira que no caso de mercadorias – o preço de uma localização não se origina em (e muito menos é regulado por) um suposto valor dessa localização, mas simplesmente no requisito de organização da produção sob as condições vigentes de competição entre capitais.
 

6  O pagamento pela localização e o processo de acumulação

Seguindo a linha da teoria de renda, o preço localização (sob a forma de preço da terra) tem sido visto como barreira à acumulação, dando origem a teses amplamente difundidas (e, curiosamente, amiúde acompanhadas da idéia de socialização) sobre a nacionalização da terra, como maneira de ‘aumentar a eficiência’ da acumulação capitalista. Muito embora tenha sido também sobejamente assinalado que a propriedade privada da terra é essencial para a separação do trabalhador de seus meios de subsistência, isto é, para a própria existência do trabalho assalariado e, conseqüentemente, do próprio capitalismo, propostas no sentido de abolir a propriedade privada da terra atingiram o nível de debate político da Inglaterra (Massey & Catalano, 1978, p. 16 ss) ao Japão (Uno, 1964, p. 102, 108) não sem passar também pelo Brasil (Singer, 1978). Uma forma arquetípica do argumento utilizado reza que:

(...) o preço de cormpra da terra (renda do solo capitalizada sob a ficção [sic] legal do valor da terra) tem o efeito de retirar capital do investimento na produção agrícola. A propriedade privada da terra (grande ou pequena) constitui um obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas na agricultura18.
Antes de passar a avaliar esta visão, examinemos um pouco mais as condições nas quais a acumulação se dá. Nem o trabalho que produz a estrutura espacial, nem o trabalho que produz a infra-estrutura político-administrativa19 estão explícitos na clássica fórmula da valorização:
 VE = V + VS
na qual a relação-salario divide o trabalho abstrato total20 ou valor total do trabalho da sociedade V/E, no valor da força de trabalho V e a mais-valia  VS, no interior tão-somente da produção de mercadorias.

Vimos que a produção do espaço não pode ser `governada pela lei do valor imposta num mercado' (ou mais simplesmente, governada pelo mercado) e portanto precisa ser levada ao plano coletivo. Um quantum da força de produção da sociedade (trabalho abstrato) é dedicado anualmente à produção da somatória de todas as mudanças nas infra- e superestruturas físicas21 exigidas para adaptar o espaço urbano aos requisitos da produção e reprodução. O tempo de trabalho despendido na produção do espaço durante um certo período representa o valor desse último. Tal valor, longe de ser uma dedução de uma mais-valia, que sem essa dedução pudesse de alguma forma ser maior (o que seria a mesma falácia que dizer, como na linha neo-ricardiana, que salários são uma ‘dedução’ dos lucros): é, pelo contrário, uma das próprias condições de produção da mais-valia. Sem a transformação do espaço não pode haver produção sustentada, de modo que o trabalho despendido na produção do espaço é tão necessário quanto o trabalho despendido na reprodução da força de trabaIho e dos meios de produção, e o mesmo vale, também, para todos os demais trabalhos necessários para manter o aparelho do Estado, isto é, para reproduzir a infra-estrutura legal, política e administrativa da produção. Para explicitar essas parcelas do trabalho social, podemos então dividir o trabalho necessário total V em suas partes constituintes e escrever:

 V = W + VL + VT

onde W é o trabalho despendido na reprodução da força de trabalho (‘bens de salário’) e nos meios diretos de produção (‘bens de capital’ e matéria-prima) consumidos na produção de mercadorias, enquanto VL e VT são os tempos de trabalho despendidos na produção do espaço e em todas as outras atividades do Estado, respectivamente. A fórmula da valorização torna-se então:

 VE = (W+VL+VT) + VS

sendo a taxa de acumulação:

        VS           VS
 e = –––  =  –––––––––
         V       W+VL+VT

Agora podemos voltar à questão de o pagamento pela localização ser um entrave à acumulação e à questão de uma eventual nacionalização da terra. Fica claro pelo exposto acima que nem o pagamento pela localização entrava, nem sua ‘abolição’ iria ajudar a expansão do capital: do ponto de vista da acumulação, só o que importa nesse particular é o montante de trabalho abstrato (social) despendido na produção do espaço como proporção do trabalho necessário22. Isto significa que a única coisa que poderia acelerar a acumulação nessa área seria a redução do tempo de trabaIho necessário para produzir o espaço, LV, reduzindo assim o tempo de trabalho total necessário V e já vimos anteriormente que isto não tem nada a ver com o preço da terra.

Se a terra não tivesse preço (e a regulação espacial fosse exercida mediante planejamento central, uma suposição tão absurda quanto uma completa anarquia da produção), a diferença seria apenas que a quantia de dinheiro correspondente aos pagamentos pelas localizações seria retirada de circulação – e a expressão monetária do trabalho abstrato (isto é, o ‘valor’ do dinheiro) iria mudar de acordo23. A quantidade de trabalho despendido, as técnicas de produção e finalmente a taxa de acumulação VS/V permaneceriam as mesmas. Somente se alterariam, portanto, as denominações sob as quais os fluxos de capital seriam efetuados (excluindo, no último caso, a denominação ‘preço da terra’ ou ainda, no caso de meras variações no nível do preço da terra), tais como as provenientes de normas legais como zoneamento de uso do solo que não eliminam o preço da terra, mas interferem na sua magnitude as proporções dos mesmos fluxos que compõem o capital investido em produção, porém sem afetar VS/V nem mesmo a taxa de lucro, VS/W.

Vale observar que, incidentalmente, o argumento por trás da idéia de planejamento ‘racional’ é o mesmo a sustentar que a ‘renda’ constitui um entrave à acumulação: o planejamento através do zoneamento de uso do solo, empresas públicas etc.. – tornaria a produção ‘mais eficiente’. O que precede permite-nos concluir, no entanto, que o planejamento – uma das formas de intervenção do Estado – não surge no sentido de aumentar a ‘eficiência’ da produção (digamos, elevar a taxa de acumulação) que sem ele seria ‘mais baixa’, senão antes, nasce da pura necessidade imposta pelos limites à mercadorização da economia. Em outras palavras, a intervenção do Estado não torna a produção de mercadorias mais eficiente, senão que a torna sequer possível, ao assegurar as próprias condições de sua existência.
 

7  O processo urbano

(...) Mas agora o mercado triunfou sobre a comunidade.
Christopher Hill, Reformation to industrial revolution


A abordagem das questões levantadas até aqui com respeito à organização espacial mostrou que a produção do espaço urbano deve sua especificidade em relação à produção de mercadorias ao fato de que o espaço não pode ser produzido como valor de uso individualizado metamorfoseado em valor de troca, isto é, ele não pode ser produzido como mercadoria. Isto nos leva à própria questão dos limites à generalização da forma-mercadoria. A generalização da forma-mercadoria constitui uma das tendênciás mais profundas do capitalismo dado que tem suas raízes na própria relação-salário. Esta tendência gera sua própria contratendência, antagônica, e que a nega, de modo que a produção dos valores de uso enquanto valores de troca precisa ser complementada pela produção de valores de uso enquanto tais. A dialética da forma-mercadoria assim definida não se restringe à organização do espaço, senão que domina a produção e reprodução sociais como um todo, até o ponto da reificação das relações sociais24. Isto permite uma ampliação correspondente de nossa abordagem, de maneira a abarcar o que se poderia chamar também de processo urbano, sendo nada mais que o capitalismo contemporãneo 25.

A primazia da forma-mercadoria e o processo de reificação das relações sociais impõem que a regulação da produção capitalista seja efetuada em primeira instância pelo mercado e em segunda instância pela intervenção do Estado, a combinação específica de ambos sendo determinada pelas condições de mercadorização da produção de acordo com o estágio de desenvolvimento das forças e relações de produção. A Economia Política conseguiu isolar o setor de mercadorias da ‘economia’ e se restringir à sua análise26, ao preço de paulatinamente excluir tanto o Estado como a organização espacial, à medida mesma do desenvolvimento de ambos esses últimos. O estudo da produção em suas localizações no espaço urbano, no entanto (e dizer: "o estudo do capitalismo contemporâneo" seria dizer o mesmo), torna manifestamente impossível sequer tentar tal separação. É inconcebível um ‘setor mercadoria’ na produção do espaço e, inversamente, categorias ‘puramente econômicas’, tais como produção, consumo e troca, derivadas da produção de mercadorias apenas, se dissolvem em atividades urbanas ou usos do solo. Enquanto a localização ainda pode ser postulada como uma mercadoria a ser comercializada em um (conquanto restrito) mercado, a produção do espaço escapa ao processo de mercadorização e cai inteiramente no domínio do social, a ser desempenhada ao nível coletivo27.

A totalidade das condições materiais da vida reemerge no processo urbano. À condição de não se excluir do processo urbano, desta vez, seu core e raiz na produção de mercadorias e o restringir a ‘movimentos sociais’28 (isto é, a forças sociais de produção não ancoradas nas relações de produção), o processo urbano adquire uma especificidade como sendo a crise decorrente da ameaça direta à reificação das relações sociais e à primazia da forma-mercadoria. Os limites à mercadorização não advêm somente da necessidade de organização espacial, mas o estudo da organização espacial projeta tais limites em contornos particularmente nítidos ao colocar em evidência o papel necessariarnente crescente da produção e regulação coletivas na produção social. Isto não deve ser obscurecido por todas as tentativas de preservação das relações (capitalistas) de produção, impondo e re-impondo a forma-mercadoria e a regulação do mercado, nem pelo disfarce do Estado por trás do ‘interesse geral’, ou ainda pelo escamoteamento da flagrante violação das relações sociais reificadas pela intervenção do Estado por trás do véu da ‘racionalidade’. Incidentalmente, tais tentativas explicam a retórica (liberal) de planejamento que acompanha a intervenção estatal, que ostensivamente se submete ao princípio da regulação do mercado, enquanto – no intuito de preservá-lo – é forçada a circunscrevê-lo cada vez mais29.

Contudo, por mais liberal que seja, a retórica não pode reverter a (contra-)tendência de estreitamento dos limites à produção de mercadorias. `Crises de acumulação' podem ser superadas através de uma desvalorização geral do capital e de uma reorganização da produção e da reprodução (em meio a um processo em que, ele próprio, está longe de estar isento de intervenção estatal)30. Mas a dialética da forma-mercadoria não é simplesmente um movimento pendular no qual períodos de retração da forma-mercadoria podem ser seguidos pelo seu restabelecimento, meramente através de sua reafirmação como forma dominante, tanto na produção, como nas relações sociais. A análise da organizaçáo espacial revela que o aumento da intervenção do Estado, ou da produção direta de valores de uso, só se reforça com o desenvolvimento da produção, pois quanto mais o espaço for diferenciado por força da produção de valores (incluindo a mais-valia postulada como ‘lucro’), maior a necessidade de homogeneização do espaço através da produção de valores de uso. A implicação ou a última conseqüência da retração da forma-mercadoria não é uma limitação ao aumento da produtividade do trabalho e portanto, à reprodução ampliada, senão antes, a cessação da primazia da forma-mercadoria na produção e a superação da reificação das relações sociais como princípio dominante na orqanização social. Enquanto isso, o antagonismo entre a forma-mercadoria e a intervenção do Estado continua sendo a força motriz da acumulação intensiva ou, em outras palavras, do processo urbano capitalista.
 

Notas
 

* Meus agradecimentos a Mike Edwards e Jõrn Janssen pelos valiosos comentários a uma versão anterior do texto. –Sua versão em português foi publicado em Deák (1989).

** O mesmo argumento foi exposto mais detalhadamente em Deák (1987) "Uma interpretaçáo histórica da teoria da renda" [aqui: Capítulo 4 –CD], Revista de Desenvolvimento Urbano e Regional 2(1):41-57 (N.do A.).

1  Economia vulgar: como definida por Marx, ou seja, aquela que "chafurda no interior do arcabouço aparente [das relações de produção], ruminando incessantemente material há muito revelado pela economia política científica, e procurando aí explicações plausíveis dos fenômenos mais rudimentares, para o uso caseiro da burguesia'' (n.34, Cap.1 do Capital I). Vale acrescentar que seria um equívoco grosseiro atribuir as platitudes da economia vulgar à simples ignorância de seus produtores e promulgadores. Por sua substituição da essência pelas aparências, a economia vulgar, ensinada nas escolas e difundida pelos meios de comunicação, é poderoso instrumento de produção da apologética do capitalismo e da ideologia burguesa.

2  Um relato mais completo pode ser encontrado em Deák (1985).

3  No primeiro grupo ver, por exemplo, Lojkine (1971), Alquier (1971), Lipietz (1974), Edel (1975) e Broadbent (1975). Para crítica e debate ver Ball (1977), Murray (1977,8), Fine (1979), Ball (1980) e Fine (1980b). Ao revisar este artigo em 1988 pareceu-me que um comentário adicional seria pertinente. A parte anterior (original) desta nota refere-se à situação nos meados de 1982 quando eu estava finalizando minha própria crítica e interpretação histórica da teoria da renda, que se tornaria a Parte I de minha tese de doutoramento, concluída três anos mais tarde (Deák, 1985), cujas demais partes se voltam à análise da transformação do processo individual de produção (incluindo uma abordagem do capital fixo e da substituição de técnicas de produção) em geral e à transformação do uso do solo (incluindo o anterior, mais o pagamento pelo uso da localização) em particular. Até onde eu vejo, contudo, a situação não se alterou muito desde então. Chamaram minha atenção para Ball et alii (Ed, 1985), por exemplo. No entanto, por mais contribuições efetivas que a mesma traga à abordagem de algumas questões urbana, e que não são poucas, essa coletânea é tudo menos uma ruptura decidida com a teoria da renda. Este não é o lugar para substanciar esta opinião e assim posso apenas ilustrá-la lembrando tão somente o título do livro: Land rent,  housing and urban planning (Renda da terra, habitação e planejamento urbano). Concluindo esta nota quero reiterar que meu objetivo aqui não é meramente advogar uma `visão crítica' em relação à teoria da renda, senão, adicionalmente, mostrar que a crítica da teoria da renda conduz à rejeição dessa última de uma vez por todas; e ainda, ilustrar os caminhos abertos por tal rejeição para a análise do processo de produção em geral, aí incluída sua organização espacial em particular (N do A, 1988).

4  Igualmente, a Economia politica não pode analisar a transformação do processo individual de produção. Mesmo em Marx, e não obstante a sugestão correta contida no conceito de desvalorização, o tratamento do capital fixo/circulante fica ausente de toda sua obra. Foi Engels que inseriu no vol. III de O capital: "A única distinção essencial em seu capital que o capitalista percebe se refere ao capital fixo ou circulante" (Marx, 1959 ed, p.75), que no entanto, junto com o exemplo numérico que a segue, permanece uma observação isolada.

  5  Fine (1980a), p.l45ss.

  6  No comunismo primitivo, onde a produção não é individualizada, não é necessário que o território esteja estruturado em espaço. É claro que os membros e os objetos da comunidade não deixam de se movimentar dentro do território, mas este é usado em sua forma natural sem ser transformado através do trabalho: não se individualizam localizações. É isso que permite a tais comunidades migrar com facilidade de um território para outro sob efeito de algum impulso externo, como, por exemplo, uma agressão por parte de outra comunidade ou sociedade, ou as meras variações sazonais da natureza. Um pequeno número de tais formas de sociedade sobrevive até hoje, como, por exemplo, alguns grupos indígenas da própria região amazônica, aos quais ainda resta um território suficientemente extenso para sustentar sua forma ‘nativa’ de vida.

  7  O plano cartesiano nada mais é que a representação matemática do espaço de um mercado unificado, onde os pontos são definidos em relação a um único sistema de referência. A especificidade de tal espaço é definida por uma métrica, isto é, pela maneira pela qual são medidas as distâncias entre seus pontos, uma representação abstrata das localizações.

  8  Note-se que a forma mais simples de localização: um lote ou gleba, já constitui por si só um produto social materializado, se em mais nada, em um título legal escrito – cujo peso concreto foi duramente sentido por um sem-número de lavradores independentes na Inglaterra do século XVII, depois da abolição dos direitos feudais e da instituição do direito burguês (a propriedade privada) sobre a terra, com a qual perderam o acesso ao seu meio de subsistência (ver por exemplo, Hill, 1967, p. 147ss).

  9  Deák (1985), especialmente Capítulo 6.

10  Rowthorn (1980), p.183-4.

11  Incidentalmente tal reconhecimento acaba com a clássica disputa que perdura desde que Malthus e Ricardo terçavam armas sobre a questão de se a ‘renda’ (isto é, pagamento pela localização) determinava o preço das mercadorias, ou pelo contrário, o preço das mercadorias é que determina a ‘renda’. Também implica que não pode haver uma `teoria da localização' – ou seja, uma teoria da organização espacial – como tal, da mesma maneira como não pode haver uma análise do processo de produção ‘em si’, isto é, excluindo a questão de sua localização.

12  À primeira vista, é surpreendente a que ponto se generalizou designar este estágio inicial do capitalismo de ‘livre-comércio’ ou de capitalismo ‘concorrencial’ . Tais termos, além de serem relativamente irrelevantes do ponto de vista da acumulação, são na melhor das hipóteses enganosos, se se considerar que dos cerca de dois séculos nesse estágio, a Inglaterra – no intuito de assegurar o desenvolvimento de suas próprias indústrias, livre da concorrência da indústria bem mais avançada do noroeste da Europa – seguiu uma política ferrenhamente protecionista durante mais de um século e meio a partir da Revolução Inglesa e até as Guerras Napoleônicas (Hill, 1967, p.181), ao passo que a política de ‘livre-comércio’ teve a vida efêmera de parcos 20 anos no final desse estágio (1846-65) – depois que a política de protecionismo havia afinal surtido seu efeito espetacular que chegou a ser chamado de ‘revolução industrial’. Este estágio, que tarnbém poderia ser chamado de ‘capitalismo em um só país’, por se restringir essencialmente à Inglaterra, termina com a expansão do capitalismo pelo mundo durante o século XIX e desemboca no imperialismo, estágio esse também comumente chamado de `monopolista' com uma variante posterior de capitalismo ‘monopolista de Estado’ com igual falta de fundamento. (Monopólio não é específico a qualquer estágio do capitalismo em particui lar: ele não é específico nem ao próprio capitalismo). Por essa razão, além dos razoavelmente óbvios termos ‘estágio inicial’ e ‘imperialismo’ utilizamos também (estágio de) acumulação ‘predominantemente extensiva’ e ‘predominantemente intensiva’ como em Aglietta (1976), onde estes conceitos vêm acoplados ao conceito adicional de "regimes de acumulação". O conceito de regime de acumulação de Aglietta não deixa de ser problemático e não precisamos aceitá-lo, mas as expressões ‘predominantemente extensivo’ e `predominantemente intensivo' apontam com precisão um aspecto crucial de cada estágio, respectivamente. No primeiro, a expansão da produção de mercadorias se baseia principalmente na extensão das relações de produção capitalista (isto é, do trabalho assalariado) em detrimento de relações pré-capitalistas, enquanto no último, uma vez esgotadas as possibilidades do primeiro, a expansão só pode se dar mediante a intensificação da produção através do progresso técnico (vale dizer, mediante aumento da produtividade do trabalho).

13  Como citado em Lênin (1969ed), p.138.

14  Estas foram relegadas por Marx ao limbo das ‘condições gerais da produção’, asseguradas pelo dispêndio de trabalho ‘improdutivo’ (a melhor passagem a respeito é provavelmente Grundrisse p.521ss, esp. 533). Tal visão resulta da redução da produção capitalista à produção de mercadorias, cujas últimas conseqüências foram exploradas por Uno (1964) e que serão discutidas mais adiante. Pela mesma razão, também não há lugar para o Estado em O capital de Marx…

15  Esse exemplo vem de um país socialista, mas os meios de regulação socialista são muito semeIhantes a seus pares da regulação capitalista, a diferença (de resto, fundamental) sendo somente que a primazia na dialética da forma-mercadoria, a saber, da produção dos valores de uso enquanto mercadoria sobre a produção dos valoresde uso como tais, fica invertida. No capitalismo, não há casos de alteração tão brusca do nível de intervenção estatal e efeitos tão dramáticos sobre o preço da localização. É verdade que no Brasil e em São Paulo, em particular, por exemplo, houve um aumento significativo da atividade de planejamento e da intervenção estatal no início da década de 1970 e, de fato, houve uma queda nos preços relativos às áreas centrais e pericentrais da área metropolitana. No entanto, tal movimento não foi de longe tão intenso como no caso citado de Budapeste e seu impacto foi amortecido ainda pela tendência generalizada de elevação do nível de pagamento pelas localizações como resultado de rápido crescimento (da ordem de 7% aa e mais) e a conseqüente diferenciação do espaço.

16  Há uma idéia enganosa no legado de Marx no que se refere a esse ponto, a saber: a noção de que a Inglaterra é um ‘país modelo’ no desenvolvimento do capitalismo, no sentido de que na medida em que o capitalismo ia se expandindo pelo mundo, as demais nações iriam seguir a trajetória da Inglaterra. Embora esta visão tenha sido desafiada no que concerne aos países ‘periféricos’ em oposição àqueles no ‘centro’ da acumulação capitalista, a mesma ainda é amplamente aceita no que se refere aos países que hoje estão no ‘centro’. Em contraposição a esta visão, a periodização do capitalismo em estágios inicial e maduro, acompanhados respectivamente, de acumulação predominantemente extensiva e intensiva, permite ver na Inglaterra um país único ao invés de modelo, um país no qual o estágio inicial ficou restrito e cujo caminho de desenvolvimento não seria seguido em nenhum outro lugar. Quando o capitalismo se espalhou pelo mundo com a formação de novos centros de acumulação, ele já estava passando ao estágio de acumulação intensiva. A Alemanha, a França, o Japão e os Estados Unidos seguiram caminhos de desenvolvimento próprios e especïficos, distintos em particular daquele aberto pela Inglaterra. No que nos concerne aqui especialmente, naqueles países, a forma-renda nunca se desenvolveu como forma histórica dominante do pagamento pela localização.

17 O mesmo ocorre também com as mercadorias as quais `encerram' quantidades específicas de trabalho concreto apenas, e onde também mesmo a quantidade de trabalho abstrato necessário para a produção de uma determinada mercadoria é desprovido de sentido, dado que o trabalho necessário somente pode ser definido ao nível social coletivo e que além do mais evolui com o desenvolvimento da produção. O não reconhecimento deste fato deu origem ao chamado ‘problema da transformação’ – a transformação de valores em preços (para alguns elementos desse debate que vem desde a Economia Política, ver, por exemplo, Kay, 1979, Aglietta, 1976 e uma interpretação do último em Driver, 1981). Vale notar a esse respeito que Driver afirma que Aglietta resolveu o problema da transformação: seria melhor dizer que para Aglietta a mesma não constitui um ‘problema’, uma vez que valores e preços não pertencem a um mesmo espaço por terem dimensões diferentes. De qualquer maneira, se é mais difícil ver que não há sentido em ‘valor de uma mercadoria’ porque pareceria que a mercadoria pode ser produzida individualmente, o mesmo torna-se evidente no caso das localizações no espaço, as quais não podem sequer ser concebidas isoladamente em si.

18  Hindess (1972), p.16 citado em Massey & Catalano (1978), p.52.

19  Para uma definição de infra-estrutura, em contraposição à superestrutura, ver nota 21.

20  Seguimos aqui a visão de Aglietta segundo a qual como o trabalho abstrato, ou necessário, assim também os valores só podem ser definidos ao nível social (Aglietta, 1976, especialmente p.38-47). Apesar desta visão, contudo, o próprio Aglietta acaba por restringir o valor à forma-mercadoria na qual o trabalho socialmente necessário é diretamente validado e a produção direta de valores de uso (não-mercadorias) entra na sua análise como uma divisão dos lucros, que então podem ser remetidos de volta ao campo do valor "simplesmente como resultado ex-post sem maior significado" (op. cit. p.62).

21  Infraestruturas: que servem de suporte a unidades jurídicas de localização, ou (quando definidas na superfície da Terra e dentro de uma aglomeração urbana) lotes. Superestruturas construções dentro do lote, que podem (mas não necessariamente) dar origem a mais localizações individuaìs tais como apartamentos e escritórìos. A distinção relevante entre infra-estrutura e superestrutura é que a primeira pertence ao domínio do ‘público’ – de modo que tanto sua produção como seu uso são necessariamente desempenhados coletivamente –, enquanto a última (superestrutura) pode ser produzida, servida e usada em possessão por indivíduos, vale dizer, dentro do domínio da propriedade privada e da produção de mercadorias. Aqui tratamos principalmente da infra-estrutura, mas é útil notar que a distinção entre a infra e a superestrutura, assim como a delimitação precisa de uma localização, dependem ambas da maneira – e que pode variar, adaptando-se à prática social, com o tempo – pela qual a propriedade privada é definida no território.

22  Também já ficou claro hoje em dia que a história não justificou o temor de Ricardo de que o capitalismo fosse ameaçado por uma tendência para estagnação, a longo prazo, por causa da tendência da elevação da renda. A diminuição do pagamento pela localização relativamente ao capital total investido é particularmente pronunciada na manufatura (a produção industrial propriamente dita) que ademais se tornaria o setor de produção dominante. A participação da renda no capital total do conjunto de todas as indústrias (produto nacional menos lucros e juros) caiu de mais de 40% por volta de 1689 para 31% em 1801, 22% em 1865, 18% em 1900 e para menos de 5% em 1950 (fonte dos dados brutos: Deane & Cole, 1967, p.301 ). Mas mesmo na agricultura. a `alta secular' da renda era acompanhada por uma queda na participação da renda no valor do produto agrícola (Murray, 1978, p.23, 30-1).

23  A posição em favor de uma ‘abolição’ da renda implica, na verdade, em confundir capital com uma quantidade de dinheiro. Ao mesmo título poder-se-ia dizer, como já mencionado, que os salários são uma dedução do lucro (como na formulação neo-ricardiana onde o salário é uma ‘variável distributiva’), como se o último precedesse o trabalho e o salário correspondente, e como se estes não fossem á própria condição de sua existência.

24  Uma analogia atraente poderia sugerir que o socialismo (`existente' ou `real') é governado por um antagonismo similar entre a produção de valores de uso e a produção de valores de troca, com a óbvia diferença de que, enquanto capitalismo é primazia da forma-mercadoria sobre o valor de uso, no sociatismo a polaridade se inverte, com a afirmação da primazia do último sobre o primeiro, do planejamento sobre o mercado, e acima de tudo, das relações sociais sobre sua própria reificação. Tal analogia não deve ser levada muito adiante sem mais aprofundamento, pois a dialética (digamos) do planejamento pode não ser, e provaveimente não é, simplesmente o ‘oposto’ da dialética da forma-mercadoria. Mesmo o ponto .alcançado até aqui torna claro, contudo, que a dialética do capitalismo (ou do socialismo) não é uma questão de mera combinação ou de proporções, entre règulação pelo mercado e intervenção do Estado, senão de qual detém a primazia; e que assim, uma ampliação do ‘Estado de bem-estar’ (Welfare State), por exemplo, não é uma tendência para o socialismo, nem, por ou tro exemplo, a China está ‘se tornando capitalista’ por conta de sua ‘abertura ao mércado’ depois de 1984.

25  A superação da dicotomia campo/cidade – na qual o campo era o lugar onde o excedente era produzido (sob a forma de renda), enquanto a cidade era o lugar onde aquele era trocado – no capitalismo já está razoavelmente reconhecida, hoje em dia. Ainda assim, esse conceito (na verdade, outro legado feudal) ressurge, amiúde, sob a forma de uma suposta dicotomia ‘rural/ urbano’ que, por sua vez, seria facilmente superada por críticas como Ball (1979), por exemplo, que mostra que não é possível circunscrever sequer uma economia ‘urbana’, e muito menos, tomá-la como categoria de análise. Espaço urbano e espaço capitalista, ou processo urbano e capitalismo, são, na verdade, expressões equivalentes. A especificidade do termo ‘urbano' pode ser no máximo conotação, destinada a chamar atenção para alguns conflitos particularmente intensos, mas outrossim nada específicos, da grande aglomeração urbana que surge com a .diferenciação do espaço no estágio de acumulação intensiva. Para estudá-los, em mais um passo na fragmentação das ciências sociais, temos ‘urbanismo’  e para lidar com eles, uma disciplina própria, o ‘planejamento urbano’.

26  As últimas conseqüências da redução do capitalismo a uma ‘economia de mercado’ (commodity economy), implicita nos pressupostos de Marx são ilustradas por Uno (1964 e também por Sekine, 1977), que chega à conclusão de que uma "sociedade puramente capitalista" jamais se desenvolverá pois ela "somente pode ser aproximada pela realidade" (em decorrência dos limites à mercadorização da economia). Ou seja, identificar o capitalismo com a produção de mercadorias é defini-lo de tal maneira que sociedades reais se Ihe escapem. Sustentar então que "o estado burguês é uma instituição estranha ao capital" (Sekine, 1977, p.154) constitui apenas mais um passo lógico na mesma direção.

27  Até mesmo a habitação, uma ‘superestrutura’ simples, tem resistido obstinadamente à mercadorização, contra todas as tentativas para estender a produção de mercadorias a este particular componente do salário, que, em países ‘periféricos’ (ou ex-colônias) pode atingir mais do que 40% do custo da subsistência (ver, por exemplo, Mautner, 1986, onde também estão esboçadas as condiçoes concretas e as tentativas de mercadorização da habitação).

28  Como reação à abordagem economicista, muitos estudiosos do urbanismo tentaram resgatar a ‘totalidade de vida’ em suas análises. Contudo, o que seria comumente designado por algo como o “peso esmagador dos muitos aspectos do processo urbano" ou sua "complexidade", mas que, na realidade, não é senão a falta de capacidade ou de propósito de se elevar ao nível da crítica e acima da ideologia, levou freqüentemente à seleção de algum ou de alguns aspectos particulares de estudo autônomo por direito próprio – uma forma arquetípica de tal é a influente (dos meados dos anos 70 até os meados dos anos 80) abordagem dos `movimentos sociais urbanos' (Castells, 1972 etc.). A dificuldade reside na recuperação do que falta para a ‘totalidade da vida’ sem se perder a conexão com seus fundamentos originais, que no capitalismo continuam deitados na produção de mercadorias. Pouco tem sido produzido a esse respeito; pode-se citar no entanto Mike Edwards em "Notes..." (Edwards, 1980).

29  As políticas neoliberais perseguidas ao final dos anos 70 e no começo dos 80 por parte dos governos nacionais dos países imperialistas constituem precisamente uma tentativa (crescentemente desesperada) de 'remercadorização’ de suas economias. (O Estado capitalista tem que tentar isso, uma vez que assegurar as condições da produção de mercadorias é sua própria razão de ser, mesmo se, assim fazendo, Ihe escapa inteiramente o fato de que a negação da negação da forma-mercadoria não pode restabelecer essa última: privatização não é o mesmo que mercadorização.) Tais políticas têm sido epitomizadas como 'Reaganismo' e 'Tatcherismo', um bom relato dos quais (isto é, dos casos dos Estados Unidos e da Inglaterra) pode ser encontrado em Tomaskovic-Devey & Miller (1982) e em Gough (1982), respectivamente. Tais relatos, por sua vez, tornam oportunas aqui duas observações. Em primeiro lugar, Tomaskovic-Devey & Miller usam o termo 'recapitalização', e não remercadorização. Uma vez que eles claramente querem dizer remercadorização ("recapitalização do capitalismo" et seq, p.24), isto mostra quão forte é a idéia de identificar o capitalismo com a forma-mercadoria, em vez da predominância da forma-mercadoria. A distinção, contudo, é importante porque sem ela crises de acumulação não podem ser distinguidas de uma crise de mercadorização (vide também a observação anterior sobre a ‘hiperabstração do tipo Uno’). Em segundo lugar, ambos relatos compartilham a visão amplamente generalizada segundo a qual os governos dos Estados Unidos e da Inglaterra estavam fazendo de fato o que eles diziam estar fazendo – a saber, ‘reduzindo o governo’ – baseado principalmente em suas políticas de redução do salárìo social e de ‘privatização’. Nos poucos anos que se passaram entre os escritos daqueles autores e este [esta nota, em Deák, 1985, p.227n], já se tornou provavelmente mais aparente, contudo, que ver em "mais um [sic] passo para a centralização do Estado e intervenção estatal, obscurecido por uma retórica de descentralização" uma alternativa ao 'Tatcherismo' (Gough, op.cit, p.62) é ter sido seduzido, precisamente, pela retórica da descentralização. O citado é de fato uma excelente descrição do que ’Reaganismo/ Tatcherismo’ é ao invés de uma alternativa ao mesmo. Pois se tais governos de fato reduziram os benefícios sociais e privatizaram um certo número de empresas estatais (algumas delas, segundo regras muito diferentes das do mercado), eles também alargaram sua própria intervenção em uma ampla gama de áreas, desde o envio de polícia contra operários em greve, ao aumento das despesas do Estado para socorrer (grandes) bancos em falência, e até tentar (embora tenham falhado nisso) intervir no mercado monetário mundial, o derradeiro regulador financeiro, e criando cada vez mais instrumentos de controle do Estado em níveis supranacionais. Se a amplitude de tais intervenções é nova, o que também é novo é a dificuldade encontrada pelo Estado em sua própria legitimação, a ponto de se levantar a questão da "governabilidade das democracias" à maneira de Crozier et alii (1975), devido precisamente à clivagem entre o que o Estado faz e o que deveria estar fazendo, ou melhor, o que a ideologia quer fazer crer que ele está fazendo.

30  Cuja essência é, como na colocação de Edwards (1985, p. 208) que "ativos públicos e privados obsoletos ... estão sendo desvalorizados a custo coletivo ... até o ponto em que os mesmos podem ser comprados tão barato que se tornam rentáveis para investidores privados" (CD, 1988).
 

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