Observações
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Algemas, "London
cabs", súmula vinculante
As cabeças colonizadas,
evocando princípios humanistas,
resistem ao desenvolvimento de um aparelho repressivo que alveja ricos
e pobres indistintamente.
JORGE BARBOSA PONTES
NELSON RODRIGUES disse, depois de ganharmos nosso primeiro
título
mundial de futebol, em 1958 (Suécia), que, naquele momento, o
brasileiro chutava para longe, definitivamente, o vira-lata que sempre
foi. Infelizmente, o genial dramaturgo não acertou o
prognóstico. Vemos
ainda hoje, exatos 50 anos após Bellini levantar a Jules Rimet
em
Estocolmo, que o nosso "vira-latismo" anda mais forte do que nunca. Foi
em uma viagem a Londres, em 2006, observando pequenos detalhes da vida
cotidiana na Inglaterra, que pude constatar o complexo de
inferioridade, a culpa, a vergonha e até o ridículo que a
grande
maioria de nós brasileiros ainda cultivamos. Em uma visita a uma
unidade da Scotland Yard, uma das mais conceituadas Polícias do
planeta
e que goza de prestígio pelo respeito que tem aos direitos
humanos
daqueles que persegue em seu dia-a-dia, observei um cartaz que dizia
que seus policiais deviam algemar, indistintamente, todos os que se
encontrassem em condição de preso ou detido, pois os
riscos se
classificariam em apenas dois tipos: os conhecidos e os desconhecidos.
Nada mais democrático, profissional e técnico. Um homem
rico, um senhor
de idade, uma mulher, um político, um banqueiro, um homem culto,
todos
têm potencial para, ao se exasperar no momento estressante da
prisão,
colocar a vida do policial que o conduz, a de transeuntes ou a sua
própria integridade em risco. Não há como o
policial perscrutar o que
se passa na cabeça de uma pessoa que acaba de ser presa.
Reação
violenta não é exclusividade de homens de poucos recursos
e pouca
cultura. Um preso por crime financeiro ou por corrupção
pode reagir de
forma violenta ao perceber que caiu em desgraça e que
terá sua fortuna,
que foi amealhada ilegalmente, congelada pelas autoridades. Não
há por
que condicionar, de forma absoluta, a colocação da algema
ao crime
cometido, relativizando o tratamento a ser dado aos infratores de
colarinho-branco. Prevalecendo o que decidiu o Supremo Tribunal
Federal, as equipes da Polícia Federal deverão contar,
daqui em diante,
com um paranormal para ler as mentes dos conduzidos e, conforme o caso,
sugerir a colocação de algemas, de forma preventiva.
Preso na
Inglaterra significa algemado. E não há
humilhação nisso. Não há nenhum
prazer especial por parte do policial em algemar nem há
humilhação
extra do preso por ser algemado. Uma coisa pressupõe a outra. O
sujeito
preso fica numa cela, e a algema é a forma daquela
condição de
cerceamento de liberdade continuar quando houver necessidade de
translado do preso. Não algemar seria a mesma coisa que deixar a
porta
da cela aberta. As cabeças colonizadas, evocando
princípios humanistas,
resistem ao desenvolvimento de um aparelho repressivo que alveja ricos
e pobres indistintamente. Esse traço cultural forte contrasta
com o
mundo em que vivemos e começa a ser desafiado por uma
geração de
delegados, promotores e juízes que, aprovados em concursos
públicos
muito concorridos, conquistaram uma posição de
independência crítica em
defesa dos interesses da sociedade e das instituições em
que atuam.
Procuram tachar de tratamento indigno a colocação de
algemas quando
estar algemado não é indigno. A prisão, ou melhor,
os motivos da prisão
talvez sejam a indignidade. Daí intentarem maquiar a vergonha, a
indignidade da prisão, suprimindo um dos seus mais fortes "trade
marks", as algemas, e, dessa forma, impedindo que a sociedade perceba
que sua própria máscara caiu. Mas faltaria ainda uma
explicação em
relação ao preso sem posses. Não se levantam os
tribunais em defesa da
humilhação do algemado desvalido "não perigoso"
porque sua humilhação
já precede a prisão. Ele já é humilhado por
ser pobre, por ser
destituído de camisas, gravatas e abotoaduras. A algema não grita, não
cria contraste quando colocada num joão-ninguém.
JORGE BARBOSA PONTES, 48, delegado federal, é chefe da
Interpol no Brasil e assessor internacional da Polícia Federal.
Atua na área de cooperação internacional desde
1992.
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