ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE
Honi soit qui mal y pense
Os
benefícios
da tecnologia de segunda geração
ficarão óbvios quando, em breve, a falta de terras
cultiváveis vier a limitar a produção |
A PRESTIGIOSA revista
"Science" publicou extensa reportagem sobre as origens e a
criação do Laboratório Nacional de Ciência e
Tecnologia do Bioetanol (CTBE, parte integrante do Centro Nacional de
Pesquisas em Energia e Materiais), em que já foram investidos R$
69 milhões e outros tantos serão ainda necessários
para sua implantação.
Essa iniciativa foi
chamada na mesma reportagem de megalomaníaca.
Recentemente, os Estados Unidos dedicaram a projeto análogo,
aplicado em três centros universitários, US$ 1
bilhão, ou seja, 12 vezes mais do que o investimento do CTBE.
Se comparados aos respectivos PIBs, fica clara a pertinência do
programa brasileiro. Também o governo do Estado de São
Paulo está investindo R$ 150 milhões em
biocombustíveis nas três universidades paulistas.
E ninguém reclama. Talvez porque espere cada um receber sua
quirera, embora, como sempre que há pulverização
de recursos, os resultados esperados venham a ser pífios.
Esperemos apenas que, sabedores que são dessa inexorável
condição, optem os responsáveis por uma
distribuição que concentre recursos em poucos projetos.
Esquecem ainda os
críticos extemporâneos que o CTBE é um
laboratório nacional, a cujos equipamentos e "expertises",
portanto, terão pleno acesso pesquisadores brasileiros e
indústrias nacionais.
É bom lembrar que os cinco programas de pesquisa e
desenvolvimento do CTBE foram elaborados em estrita
colaboração com órgãos governamentais,
universidades e empresas privadas e estatais, mais de 40
instituições ao todo, em um processo que durou cerca de
dois anos.
O professor José Goldemberg lembra com razão que ainda
há muito a fazer pela melhoria da tecnologia de primeira
geração, implicando, todavia, que seriam prematuras
iniciativas relativas à tecnologia de segunda
geração. Eu esperaria essa argumentação de
um usineiro tradicional, nunca de um físico.
Que esse meu
comentário não seja tomado como uma crítica
à posição do professor Goldemberg, mas apenas como
uma sincera expressão de minha perplexidade.
Explico-me: a cana-de-açúcar, grosso modo, é
composta de água (50%), e o restante divide-se em um
terço de suco (açúcar), um terço de
bagaço e um terço de palha. Ou seja, da biomassa total,
apenas um terço é aproveitado como açúcar
ou como álcool; dois terços, o material
lignocelulósico, não são convertidos em
açúcar ou em álcool dentro dos limites das
tecnologias de primeira geração.
Uma parte dessa biomassa é aproveitada, não obstante,
frequentemente com eficiência muito baixa, para produzir a
energia de que precisa a usina e, eventualmente, excedentes
comercializáveis.
As tecnologias de segunda geração permitirão
não somente total aproveitamento da biomassa contida na cana
como também dos atuais rejeitos e sobras hoje inaproveitados de
todas as demais culturas agrícolas.
Os benefícios da tecnologia de segunda geração se
tornarão óbvios quando, em futuro próximo, a
disponibilidade de terras cultiváveis vier a limitar severamente
a produção. A produtividade por hectare pode em
princípio dobrar com a aplicação dessa tecnologia,
mesmo que continuem as atuais formas de aproveitamento do bagaço
e da palha.
É claro que pesquisas relativas às tecnologias
tradicionais devem continuar a ser realizadas, e o CTBE também a
elas se dedica, mas o que alguns não percebem é que estes
dois possíveis ganhos, os pequenos incrementos progressivos em
tecnologia de primeira geração e o salto de produtividade
devido à introdução de tecnologias de segunda
geração, não são mutuamente exclusivos, mas
complementares, aditivos.
Quanto ao diagnóstico de megalomania atribuído aos
idealizadores do CTBE, esse é um fenômeno recorrente.
Aconteceu quando foi criado o Instituto de Física Gleb Wataghin,
da Unicamp, ocorreu logo depois com o projeto do Laboratório
Nacional de Luz Síncrotron, ocorreu ainda com a Coppe, no Rio,
em seu início etc.
E o mais interessante
é que esses céticos, esses
críticos, não se incomodam com o eventual fracasso e
consequente desperdício de recursos, mas, muito pelo
contrário, o que anima a sua fúria verborrágica
é a ameaça de sucesso do empreendimento.
O surrado comentário que foi atribuído a Beethoven, "Os
cães ladram e a caravana passa", encontra uma versão mais
apropriada no dizer de Sarmiento, o ex-presidente e intelectual
argentino: "Os cães ladram, é sinal que cavalgamos".
ROGÉRIO
CEZAR
DE CERQUEIRA LEITE , 78, físico, é professor
emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas),
presidente do Conselho de Administração da ABTLuS
(Associação Brasileira de Tecnologia de Luz
Síncrotron) e membro do Conselho Editorial da Folha.