Cartórios brasileiros: porque
não mudar?
O
sistema cartorial brasileiro constitui, hoje, o mais expressivo exemplo
do patrimonialismo que marca nosso país
EDMUNDO
ANTÔNIO DIAS NETTO JR.
O SISTEMA cartorial brasileiro constitui, hoje, o
mais expressivo
exemplo do patrimonialismo que marca nosso país. Basta ver que
os tabeliães daqui são comumente tratados por "donos" de
cartórios, que, no compasso da mesma metáfora, ressoam em
suas placas e timbres os nomes pessoais dos seus titulares.
Ocorre que a atividade notarial e de registro
consiste em um
serviço público que o Estado delega à
exploração em caráter privado.
Para remunerar-se, o particular
delegatário recolhe emolumentos
-que
nada mais são que uma espécie de taxa- dos
usuários do serviço. Apenas
parte disso é repassada ao Estado, pela função
fiscalizatória que
desempenha no setor. Em clara inversão de valores, o que cabe ao
particular supera, em geral, algumas vezes o que é recolhido aos
cofres
públicos.
Como tal atividade é exercida em
caráter privado,
não tem incidência o teto remuneratório do
serviço público. Também não tem
aplicação a súmula vinculante do STF que veda o
nepotismo. Assim, o constituinte de 87/88 acabou mantendo uma classe, a
dos notários e registradores, com privilégios que nem
sequer os agentes políticos tiveram a ousadia de prever
expressamente para si mesmos.
Indaga-se, porém -sem fazer pouco do papel
do tabelião,
indispensável a que se confira certeza a determinados registros
de interesse público-, qual dessas funções
é mais importante (ou seja, pressuposto de existência das
demais atribuições do Estado) para o desenvolvimento de
um país.
Na última semana, o Conselho Nacional de
Justiça editou
duas resoluções que estabelecem regras para a
realização de concursos públicos em
cartórios, inclusive para os que, mesmo após a
Constituição de 88, foram preenchidos à margem do
procedimento impessoal nela determinado.
Na contramão disso, dois movimentos se
articulam. O primeiro
é para que
os serviços notariais e de registro deixem de ser fiscalizados
pelo
Judiciário. O segundo é a tramitação de
proposta de emenda
constitucional, que em breve deve ser votada na Câmara dos
Deputados,
com o objetivo de efetivar nas funções os
tabeliães que, à margem de
concurso público, tenham-nas exercido entre 88 e 94.
Bem ao contrário do disposto na
resolução 80 do
CNJ, a citada PEC põe os notários e registradores no
ponto de fuga de uma perspectiva privada que muitos lutam para banir da
cena pública nacional. Nessa distorcida maneira de enxergar o
mundo, tais cartorários não concursados, não
podendo ser considerados donos de suas serventias, passam a assumir o
sentido figurado de meros possuidores.
Assim, nada mais natural aos nossos
patrimonialistas que possam esses
tabeliães, pelo exercício de posse longa e
pacífica, ter finalmente
reconhecido seu domínio sobre as serventias extrajudiciais,
mediante a
invenção de nova espécie de usucapião que
os efetive, enfim, em seus
cartórios.
De acordo com dados que
foram divulgados na página do CNJ na internet, somente em 2006
as
serventias extrajudiciais arrecadaram no país mais de R$ 4
bilhões. Em
2005, a arrecadação global dos cartórios
ultrapassou R$ 3,5 bilhões.
Esses valores compreendem o faturamento das serventias privatizadas e
das oficializadas.
Sustentamos que todos os cartórios
deveriam ser oficiais,
vertendo para os cofres públicos os importantes recursos que
auferem. A PEC 356/04, apresentada na Câmara, tinha essa
finalidade, mas foi devolvida ao autor por não contar com o
número mínimo de assinaturas.
Bastaria que outra PEC fosse oferecida, acolhendo
modelo cujo
pressuposto é a existência de quadro de servidores
remunerados em
patamar condizente com a responsabilidade, mas distante das cifras
milionárias de hoje. Recursos não faltariam.
Embora não estejam divulgados os dados de
2008, o faturamento
dos cartórios do país, em 2006, seria suficiente para
bancar toda a despesa prevista no Orçamento de 2009
relativamente à Câmara dos Deputados (R$ 3.532.811.091),
ao Senado Federal (R$ 2.742.975.855), ao Ministério do Meio
Ambiente (R$ 3.460.640.619) ou ao Ministério das
Relações Exteriores (R$1.891.740.902).
Trata-se, como se vê, de reinventar nosso
sistema cartorial,
redesenhando-o com o traço firme das instituições
republicanas.
A reinvenção do sistema, nos moldes
sugeridos, apresenta
óbvia
dificuldade política. Haverá ainda, todavia, uma maneira
simples de
corrigir as distorções atuais na
remuneração dos notários e
registradores.
Basta que uma lei preveja o aumento do
número de
cartórios conforme uma equação que combine
quantitativos populacionais e um mínimo de atos remunerados em
cada serventia.
Assim, mais serventias extrajudiciais permitiriam
uma mais
equânime
divisão do que é recolhido dos particulares,
oferecendo-lhes uma melhor
prestação do serviço, mais descentralizada e menos
congestionada.
EDMUNDO
ANTÔNIO DIAS NETTO JR., 35, é
procurador da República em Minas Gerais.
Topo
|