LUIZ ANTONIO DE OLIVEIRA LIMA
Os inegáveis
problemas que o
financiamento do déficit público vem trazendo para a
economia brasileira têm
permitido que muitas pessoas — num misto de ignorância e
má fé — concluam que
tais problemas decorrem da excessiva presença do Estado e que
uma eliminação ou
uma restrição de sua interferência seria a
fórmula ideal para a resolução da
crise atual. Uma análise mais objetiva dos fatos mostra-nos, no
entanto, que a
verdadeira raiz da crise presente decorre não do fato de o
Estado interferir na
economia, mas exatamente do fato de que nas condições
atuais o Estado perdeu
capacidade de obter recursos financeiros para realizar uma série
de atividades,
que são exigidas não só pela sociedade como um
todo mas principalmente pelo
grupo que mais reclama da sua presença, isto é, pela
classe empresarial.
Um diagnóstico adequado da crise requer
que se abandone o dogma de que, se deixarmos o "mercado funcionar",
todos os nossos problemas estarão resolvidos. Na verdade, a
experiência
histórica dos últimos quinze anos mostrou que a
interferência do Estado foi
utilizada em momentos econômicos críticos e que, apesar
das limitações próprias
do Estado capitalista, foi ela que criou condições para
períodos de
crescimento, bem tomo. para evitar graves erises.
Tal
afirmação, que a muitos pode chocar,
deve ser ilustrada por uma análise, ainda que superficial, dos
momentos de
crescimento e crise dos últimos 25 anos. Assim, o chamado
"milagre
econômico" do início dos anos 70 não pode ser
compreendido sem que se
considere o conjunto de modificações institucionais que
vieram corrigir o
processo inflacionário dos anos 60, decorrente da
então frágil estrutura
financeira do Estado. Assim, a partir de 1965, paralelamente
ao ajuste recessivo, implantaram-se
profundas reformas no
setor público (reforma tributária e "verdade
tarifária"), visando a
recuperar o poder de gasto do Estado, o que possibilitou que este se
incumbisse
do fornecimento de insumos básicos, que, impulsionado pela
expansão de bens de
consumo duráveis, permitiu elevadas taxas de crescimento
econômico. Tal
ocorreu, no entanto, sem a internalização da
produção de bens de capital e de certas
matérias-primas, cujo fornecimento
dependia de nossa capacidade de importar.
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A crise do petróleo
dos anos 70,
combinada com um processo especulativo internacional com
matérias-primas,
ocorre num momento em que já se esgotava o dinamismo interno da
expansão
baseado na produção de duráveis.
Urgia, assim,
alterar nossa estrutura
produtiva, tornando-a menos dependente da economia mundial. Ora, tal se
fez
durante o governo Geisel, mediante vultosos investimentos na
produção de
equipamentos e insumos básicos — aço, metais não
terrosos, papel e celulose,
produtos petroquímicos, etc. —, o que só se tornou
possível mediante uma
articulação gerenciada pelo Estado entre o capital
privado e o capital estatal,
encarregando-se o primeiro da expansão do setor de bens de
capital e alguns
insumos e o segundo, através das estatais, das obras de
infraestrutura e
também da produção de alguns insumos. Tal
opção, que impediu o processo
recessivo nos anos 70, só foi viável pela possibilidade
de financiamento
externo, baseado em grande parte em projetos apresentados pelo setor
público,
daí este ter carregado o maior ônus, em termos de
dívida externa.
A segunda crise do
petróleo de 1979,
juntamente com a crise do mercado financeiro de 1982, viria
progressivamente
inviabilizar a utilização do endividamento externo como
força de financiamento
do setor público no Brasil. Assim, a extinção das
fontes externas de
financiamento, dada a incompressibilidade em termos absolutos do gasto
estatal,
forçou como única saída o recurso ao endividamento
interno, com a elevação do patamar
das taxas de juro. Seria enganoso, porém, pensar que tal
endividamento se
destinou a financiar apenas o gasto público; na verdade,foi a
fórmula que
permitiu, principalmente, uma brutal transferência de recursos do
setor público
ao setor privado a partir dos anos 80, mediante o que se convencionou
chamar de
"perdão fiscal", isto é, uma redução da
carga tributária líquida
(receita tributária bruta menos subsídios, incentivos e
juros exclusive a
correção monetária).
Tal valor, de l7,5% do PIB em
1973, passa
sucessivamente para 11,25% em 1979 e a 8,9% em 1985. Se
considerarmos apenas o
período 1980/85, o valor dessa perda de receita, em
benefício do setor privado,
atinge US$ 91,899 bilhões, que correspondem a 78% do total da
dívida líquido do
setor público, a qual em 1985 era de US$ 117,942 bilhões.
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Ora, esses números
permitem- -nos
pôr em
dúvida algo que já se tornou artigo de fé para
muitos, isto é, que o
setor privado, durante os anos 80, soube ajustar-se, ao passo que o
setor
público, por ser "irracional", teve de endividar-se.
Na verdade, na
medida em que o setor
privado recebeu tal volume de recursos do setor público, ele
pôde escapar da
crise, reduzindo a dependência de empréstimos e passando
de contribuinte a
credor do governo.
Desse modo, o ajustamento do
setor
privado foi em grande parte feito à custa do desajuste do setor
público. Se a este
fato juntarmos o conjunto de subsídios implícitos na
indústria privada,
incorporados no preço do aço ou da nafta que é
transferida pela Petrobrás para
toda a indústria petroquímica, ou ainda da energia
elétrica industrial, pode-se
temer grandemente pelo desempenho do nosso setor privado se este
não contar com
o amparo estatal.
Em resumo, a
insistência em
pseudo-soluções, tal como a de se deixar o mercado
"resolver tudo",
impede um diagnóstico adequado da
crise
atual e a proposta de medidas efetivas de política
econômica. O que ocorre
atualmente é a incapacidade do Estado de continuar
financiando-se mediante a
elevação do déficit público. Assim,
é fundamental pensar em novas alternativas,
através das quais, ao lado da coibição do abuso no
uso de recursos públicos, se
consiga a elevação da carga tributária
líquida, que permita ao Estado continuar
exercendo o papel que vem realizando historicamente, tal como ilustrado
acima.
Além disso, a não resolução da crise fiscal
condena a economia a operar com
elevadas e instáveis taxas de juros reais, aumenta a incerteza e
dificulta a
realização de investimentos produtivos em setores
já saturados e que até nas
mãos do setor privado vêm impedindo, dessa forma, qualquer
plano de
estabilização de preços, mesmo com taxas de
crescimento modestas.
(*)
Professor do Departamento de Economia da Escola de
Administração de Empresas da
Fundação Getúlio Vargas (FGV), de São Paulo.
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