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Gazeta Mercantil 1988.5.4:4  Versão em html cd 06.3.12

"Livre mercado" como pseudo-solução da crise econômica
 

LUIZ ANTONIO DE OLIVEIRA LIMA


Os inegáveis problemas que o financiamento do déficit público vem trazendo para a economia brasileira têm permitido que muitas pessoas — num misto de ignorância e má fé — concluam que tais problemas decorrem da excessiva presença do Estado e que uma eliminação ou uma restrição de sua interferência seria a fórmula ideal para a resolução da crise atual. Uma análise mais objetiva dos fatos mostra-nos, no entanto, que a verdadeira raiz da crise presente decorre não do fato de o Estado interferir na economia, mas exatamente do fato de que nas condições atuais o Estado perdeu capacidade de obter recursos financeiros para realizar uma série de atividades, que são exigidas não só pela sociedade como um todo mas principalmente pelo grupo que mais reclama da sua presença, isto é, pela classe empresarial.

Um diagnóstico adequado da crise requer que se abandone o dogma de que, se deixarmos o "mercado funcionar", todos os nossos problemas estarão resolvidos. Na verdade, a experiência histórica dos últimos quinze anos mostrou que a interferência do Estado foi utilizada em momentos econômicos críticos e que, apesar das limitações próprias do Estado capitalista, foi ela que criou condições para períodos de crescimento, bem tomo. para evitar graves erises.                             

Tal afirmação, que a muitos pode chocar, deve ser ilustrada por uma análise, ainda que superficial, dos momentos de crescimento e crise dos últimos 25 anos. Assim, o chamado "milagre econômico" do início dos anos 70 não pode ser compreendido sem que se considere o conjunto de modificações institucionais que vieram corrigir o processo inflacionário dos anos 60, decorrente da então frágil estrutura financeira do Estado. Assim, a partir de 1965,  paralelamente ao ajuste recessivo, implantaram-se profundas reformas no setor público (reforma tributária e "verdade tarifária"), visando a recuperar o poder de gasto do Estado, o que possibilitou que este se incumbisse do fornecimento de insumos básicos, que, impulsionado pela expansão de bens de consumo duráveis, permitiu elevadas taxas de crescimento econômico. Tal ocorreu, no entanto, sem a internalização da produção de bens de capital e de certas matérias-primas, cujo fornecimento dependia de nossa capacidade de importar.

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A crise do petróleo dos anos 70, combinada com um processo especulativo internacional com matérias-primas, ocorre num momento em que já se esgotava o dinamismo interno da expansão baseado na produção de duráveis.

Urgia, assim, alterar nossa estrutura produtiva, tornando-a menos dependente da economia mundial. Ora, tal se fez durante o governo Geisel, mediante vultosos investimentos na produção de equipamentos e insumos básicos — aço, metais não terrosos, papel e celulose, produtos petroquímicos, etc. —, o que só se tornou possível mediante uma articulação gerenciada pelo Estado entre o capital privado e o capital estatal, encarregando-se o primeiro da expansão do setor de bens de capital e alguns insumos e o segundo, através das estatais, das obras de infraestrutura e também da produção de alguns insumos. Tal opção, que impediu o processo recessivo nos anos 70, só foi viável pela possibilidade de financiamen­to externo, baseado em grande parte em projetos apresentados pelo setor público, daí este ter carregado o maior ônus, em termos de dívida externa.

A segunda crise do petróleo de 1979, juntamente com a crise do mercado financeiro de 1982, viria progressivamente inviabilizar a utilização do endividamento externo como força de financiamento do setor público no Brasil. Assim, a extinção das fontes externas de financiamento, dada a incompressibilidade em termos absolutos do gasto estatal, forçou como única saída o recurso ao endividamento interno, com a elevação do patamar das taxas de juro. Seria enganoso, porém, pensar que tal endividamento se destinou a financiar apenas o gasto público; na verdade,foi a fórmula que permitiu, principalmente, uma brutal transferência de recursos do setor público ao setor privado a partir dos anos 80, mediante o que se convencionou chamar de "perdão fiscal", isto é, uma redução da carga tributária líquida (receita tributária bruta menos subsídios, incentivos e juros exclusive a correção monetária).

Tal valor, de l7,5% do PIB em 1973, passa sucessivamente para 11,25% em 1979 e a 8,9% em 1985. Se considerarmos apenas o período 1980/85, o valor dessa perda de receita, em benefício do setor privado, atinge US$ 91,899 bilhões, que correspondem a 78% do total da dívida líquido do setor público, a qual em 1985 era de US$ 117,942 bilhões.
 
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Ora, esses números permitem- -nos pôr em dúvida algo que já se tornou artigo de fé para muitos, isto é, que o setor privado, durante os anos 80, soube ajustar-se, ao passo que o setor público, por ser "irracional", teve de endividar-se.

Na verdade, na medida em que o setor privado recebeu tal volume de recursos do setor público, ele pôde escapar da crise, reduzindo a dependência de empréstimos e passando de contribuinte a credor do governo.

Desse modo, o ajustamento do setor privado foi em grande parte feito à custa do desajuste do setor público. Se a este fato juntarmos o conjunto de subsídios implícitos na indústria privada, incorporados no preço do aço ou da nafta que é transferida pela Petrobrás para toda a indústria petroquímica, ou ainda da energia elétrica industrial, pode-se temer grandemente pelo desempenho do nosso setor privado se este não contar com o amparo estatal.

Em resumo, a insistência em pseudo-soluções, tal como a de se deixar o mercado "resolver tudo", impede um  diagnóstico adequado da crise atual e a proposta de medidas efetivas de política econômica. O que ocorre atualmente é a incapacidade do Estado de continuar financiando-se mediante a elevação do déficit público. Assim, é fundamental pensar em novas alternativas, através das quais, ao lado da coibição do abuso no uso de recursos públicos, se consiga a elevação da carga tributária líquida, que permita ao Estado continuar exercendo o papel que vem realizando historicamente, tal como ilustrado acima. Além disso, a não resolução da crise fiscal condena a economia a operar com elevadas e instáveis taxas de juros reais, aumenta a incerteza e dificulta a realização de investimentos produtivos em setores já saturados e que até nas mãos do setor privado vêm impedindo, dessa forma, qualquer plano de estabilização de preços, mesmo com taxas de crescimento modestas.

 

(*) Professor do Departamento de Economia da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV), de São Paulo.

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