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Espaço & Debates 32:32-46
Acumulação entravada no Brasil
E a crise dos anos 80
Csaba Deák
ABSTRACT

This paper proposes that the roots of the specificity of Brazilian society reach back to colonial times and that its modern elite society is a result of the establishment, with Independence, of the internal conditions -the independent State- to the reproduction of both colonial society and its material basis, colonial production. Colonial production in the nation-State became hindered accumulation, the form taken by the capitalist process in Brazil, consisting in the (endogenously determined) expatriation of a portion of the surplus, which in the extensive stage of accumulation still leaves some room for accumulation. With the exhaustion of the extensive stage (and lower rates of surplus) by the end of the 1970s a decision between surplus expatriation and accumulation is imposed, and this provides a framework for an interpretation of the current crisis, for a cessation of surplus expatriation poses the question of transformation of the elite society itself. An Epilogue provides a preliminary assessment of the first year of the economic reform of 1990 and a summary of economic indicators related to expatriation and accumulation in the recent past is given in Appendix.

SUMÁRIO

Uma interpretação da 'crise dos anos 80' implica na caracterização da especificidade da sociedade brasileira contemporânea -uma sociedade de elite-, cujas raízes remontam à época colonial. Assim este trabalho enfoca primeiro as transformações que levaram à constituição do Estado brasileiro para captar o processo pelo qual a sociedade colonial que deriva sua formação e reprodução de forças externas, oriundas da metrópole, e cessando essas pela debilitação de Portugal, cria as condições internas para sua continuada reprodução. Passa em seguida à exploração do processo de acumulação entravada com sua dialética interna, em que o imperativo da acumulação está subordinado ao princípio da expatriação de excedente, como processo precípuo de produção capitalista que forma a base econômica para a reprodução ampliada da sociedade de elite no Brasil. Situa ainda o processo de acumulação entravada enquanto estágio de desenvolvimento, com suas relações com os estágios de acumulação extensiva e intensiva, permitindo assim a volta à interpretação da crise atual, especialmente em sua diversidade de todas as demais crises da história brasileira. Um Epílogo esboça uma avaliação do primeiro ano da reforma econômica de 1990 e um sumário de indicadores econômicos da história recente relativos à expatriação e à acumulação é dado em Anexo.
 

Acumulação entravada no Brasil
E a crise dos anos 80*

Csaba Deák
 
 

O encaminhamento das 'questões urbanas' ou, em outros termos, o estabelecimento dos níveis de serviço providos pela infraestrutura urbana decorrem do respectivo estágio de desenvolvimento específico, que impõe as condições de produção e reprodução social, e em particular, o nível de subsistência da força de trabalho. Em função desse ponto de partida eu esbocei recentemente uma interpretação da crise dos anos 80, em que preconizava que o esgotamento do estágio de acumulação extensiva no Brasil coloca a questão da permanência da sociedade de elite -como distinta da burguesa-, sociedade essa que vem se reproduzindo sem ruptura desde a época colonial, sendo a natureza da política urbana condicionada à natureza da sociedade a ser forjada pela crise ora em curso.

Retomando aquela interpretação, procuro aqui explicitar a relação da especificidade da sociedade de elite com a base material de sua reprodução, aprofundando em particular a ruptura com a visão dependentista e ressaltando o caráter autônomo do processo de reprodução social no Brasil. Enfocaremos primeiro as transformações que levaram à constituição do Estado brasileiro para captar o processo pelo qual a sociedade colonial que deriva sua formação e reprodução de forças externas, oriundas da metrópole, e cessando essas pela debilitação de Portugal, cria as condições internas para sua continuada reprodução. Passaremos em seguida à exploração do processo de acumulação entravada com sua dialética interna, em que o imperativo da acumulação está subordinado ao princípio da expatriação de excedente, como processo precípuo de produção capitalista que assegura a reprodução ampliada da sociedade de elite no Brasil.
 

Situaremos ainda o processo de acumulação entravada enquanto estágio de desenvolvimento, com suas relações com os estágios de acumulação extensiva e intensiva, permitindo assim um retorno à interpretação da crise atual, especialmente em sua diversidade de todas as demais crises da história brasileira.

Na época em que foi escrito (1989), este ensaio tinha necessàriamente de se restringir a meras conjecturas quanto às perspectivas de desenrolar da crise dos anos 80, dada a permanência do impasse das forças sociais a que se referirá no texto. Sua apresentação no Seminário Re-pensando o Brasil dos anos 80, em novembro de 1990, já encerra a oportunidade de se interpretar um fato novo, a saber, a eleição e o início de atividades do governo Collor. Este é o assunto do Epílogo: 1990.
 
 

1 A gênese do Estado brasileiro

A liderança do movimento da Independência pelas categorias dominantes, ligadas à terra, aos negócios e altos cargos, garantiram a sobrevivência da estrutura colonial de produção.

Organizar o Estado sem colocar em risco o domínio econômico e social e garantir as relações externas de produção seriam seus principais objetivos.

Emília Viotti, "Introdução ao estudo da emancipação política", 1968
A transformação da Colônia que com a vinda de D.João VI e do governo de Portugal já incorporava, ainda que embrionàriamente, os processos decisórios próprios de uma nação-estado, em Estado legalmente constituído, é nosso ponto de partida para captar a especificidade do processo de reprodução social em curso no Brasil. Já se disse que descrever a gênese de um processo não é explicar suas causas: é verdade, mas nosso intuito aqui não é explicar, e muito menos, explicar 'causas', senão de produzir uma interpretação que desvenda a dialética do processo em questão. Nosso ponto de apoio são trabalhos de Nícia Vilela da Luz, Emília Viotti e de outros, todos da década de sessenta ou mesmo anteriores, e que não só não foram incorporados, senão que por seu teor crítico e cunho nacionalista foram virtualmente eradicados no decurso da reação que seguiu a tentativa Goulart de dar curso a um processo de desenvolvimento endógeno, da esmagadora maioria dos trabalhos posteriores de interpretação da história brasileira. Quanto ao enfoque da abordagem, interessa-nos especialmente estabelecer as relações entre formas estruturais, tais como, Estado e classes sociais, e o processo de produção social que as molda através de seus estágios de desenvolvimento.

A produção colonial é constituída e organizada, evidentemente, em função da produção de um excedente a ser levado à metrópole. Se em estágios iniciais de sua constituição tal excedente resulta de simples extração ou saque, em estágios subsequentes o objetivo de expansão do excedente impõe a implantação de um processo de produção pròpriamente dita que inclui uma parcela local de produção para sobrevivência e mesmo de reprodução social, com produção de mercadorias. O processo de produção/reprodução local é antagônico à extração de excedente por parte da metrópole, pois que sòmente poderia se desenvolver plenamente se pudesse utilizar o excedente por ele produzido na ampliação de sua própria reprodução. No desenvolver da produção colonial e da relação colônia/metrópole, portanto, o princípio da extração de excedente precisa ser contìnuamente re-imposto contra a tendência para a ampliação da reprodução local, que no entanto é a própria fonte da ampliação do excedente retirável. A história das colônias no capitalismo é precisamente a história do desenvolvimento do antagonismo entre a reprodução local e a sua exploração pela respectiva metrópole. A re-imposição da exploração colonial se deu mediante diversos meios, como repressão armada ou -mais eficiente a longo prazo- redução da escala da reprodução local mesmo que ao preço de uma correspondente redução da escala da exploração. Tal re-imposição conheceu diversos graus de sucesso, que inclui fracassos, dos quais o caso mais notável foi sem dúvida a independência da colônia norte-americana da Inglaterra meio século antes da época que nos ocupa.

Ao chegar no início do século XIX, a história do Brasil era uma sucessão ininterrupta de re-imposições da exploração colonial, re-imposições essas em que o expediente já mencionado de redução da escala da reprodução local era predominante em virtude do enfraquecimento tanto militar como econômico de Portugal a partir do século XVII. A sociedade local -de porte considerável, com uma população de uns 3 milhões, ou um quarto da população da Inglaterra- tinha se forjado ao longo de três séculos em torno da produção colonial 'em função do que se organizara sua vida', no dizer de Caio Prado Júnior. Ela tinha por característica de ser invulgarmente estável internamente, com fortes grupos sociais da classe dominante local "interessados em manter a estrutura de produção baseada no trabalho escravo, destinada à exportação de produtos tropicais para o mercado europeu" (Viotti, 1968 :122, onde a ênfase deve ser colocada sobre o essencial 'manter a estrutura de produção', mais do que sobre o circunstancial 'exportação de produtos tropicais').

Não que não ganhassem qualquer expressão social também os interesses ligados à reprodução local no período imediato que precede a declaração da Independência. Os chamados 'radicais' liderados por Gonçalves Ledo e que constituíam um grupo que hoje chamar-se-ia de tendência nacionalista, preconizavam a constituição de um Estado de molde burguês (eleição direta da Constituinte, liberdade de imprensa etc.) com desenvolvimento desimpedido das forças produtivas e primazia, portanto, da reprodução ampliada, ou seja, do próprio princípio da acumulação capitalista. Era precisamente em resposta a esses movimentos que os 'conservadores' se organizaram e formaram, em torno de José Bonifácio, o Apostolado:

Realizar a Independência com um mínimo de alteraçôes possíveis na economia e na sociedade era o objetivo de seus componentes, representantes da melhor sociedade da época. Como se sabe, as forças representadas pelo Apostolado -que Frei Caneca chamou de "um clube de aristocratas servis"- sairiam vitoriosas. Assim o objetivo da constituição do Estado brasileiro ficou sendo o de assegurar as condições da reprodução do status quo ante, isto é, da sociedade colonial, organizada em função da produção colonial.
 
 

A constituição de 1824

O arcabouço institucional do novo Estado foi assentado na Constituição de 1824, de forma liberal e de conteúdo elitista. Ainda nas palavras de Viotti: "Resguardava o direito de propriedade em toda sua plenitude,... excluía no entanto [sic] cuidadosamente dos direitos políticos as classes trabalhadoras, ...bem como todos que não tivessem uma renda líquida anual correspondente a 100$000 em bens de raiz, indústria ou emprego" (op.cit, p.123).

Diferia também em outro ponto essencial do modelo burguês, a saber, no tocante à (omissão sobre a) soberania nacional:

O artigo 179 que garantia as liberdades individuais inspirava-se diretamente na Declaração dos Direitos do Homem feita pelos revolucionários franceses em agosto de 1789. Havia parágrafos que eram mera transcrição. Omitia-se entretanto a afirmação, constante na Declaração dos Direitos do Homem, da soberania da nação... (op.cit, p.123). Esse fato se refletia igualmente nas atitudes efetivas do novo estado. Em vez de organizar seu próprio exército -que implicaria em armar uma parte de seu povo, do qual tinha medo-, "o governo de Rio de Janeiro contratou os serviços de oficiais e navios britânicos e franceses -Grenfell, Cochrane, Labatut (para vencer a resistência de tropas e comerciantes portugueses de Bahia, Maranhão e Pará)" (op.cit, p.122). A discrepância entre a forma (burguesa) e o conteúdo (elitista) do arcabouço institucional seria cuidada pela produção daquilo que acaba vindo a constituir uma dupla farsa: a 'adaptação' -ou simples adoção- da ideologia liberal. Se na sociedade burguesa a ideologia liberal esconde a essência (a dominação de classe), ao menos ela se apoia em algumas aparências (decorrentes da igualdade formal na reificação das relações sociais). Já no Brasil, retomando palavras de Viotti, estabelece-se uma "flagrante contradição entre o estatuto legal e a realidade brasileira ...", que no entanto ... não parece preocupar os legisladores que depois de incluirem na carta os preceitos do liberalismo passaram a declamá-lo em frases sonoras e vazias na Câmara e no Senado. Por outro lado, e em seguimento, [uma] elite de letrados, porta-voz das categorias socialmente dominantes, forjaria uma ideologia mascarando as contradições do sistema e ignorando a distância entre as disposições jurídicas e a realidade (op.cit,p.125), complementando a obra dos legisladores.

Faltaria ainda um elo importante nas condições de reprodução da sociedade formada na colônia após a independência dessa última. Trata-se da inserção do Brasil nas relações econômico-financeiras internacionais, de uma maneira que assegurasse a continuidade do padrão produtivo da vida econômica do país.
 

Fiat dívida externa

A dívida externa foi a solução encontrada. Na interpretação de Viotti, apesar da 'simpatia discreta da Coroa Britânica',

(o) reconhecimento da Independência exigiria não obstante um esforço penoso junto ao governo inglês que agiu como mediador entre Portugal e Brasil. A anuência de Portugal à Independência só foi obtida depois que o Brasil concordou em assumir a dívida de dois milhões de libras esterlinas de um empréstimo feito por Portugal em Londres. (op.cit, p.122) Ou seja: ao nascer, o Estado brasileiro assumiu uma dívida externa que seria um dos principais meios para transformar -aqui, no sentido estrito de dar nova forma a- a remessa de uma parcela do seu excedente produzido para fora do país: no caso, o tributo colonial tomou a form de pagamento de juros sobre a dívida externa.

Para avaliar a ordem de grandeza do valor dessa dívida surgida por geração espontânea, podemos compará-la com os investimentos em estradas de ferro na Inglaterra que construiu da ordem de 350 milhas de rede nos primórdios da 'idade do trem', entre 1800 e 1825, no valor total de £1,5 milhão, extensão essa que seria alcançada pelas linhas férreas brasileiras (presumivelmente, de semelhante valor) por volta de 1864. Ou seja, a dívida assumida pagava com folga todos os investimentos naquele novo meio de transporte feitos até aquela data na maior potência da época, ou então cobriria igualmente os investimentos correspondentes no próprio Brasil pelos 40 anos subsequentes. Pagaria ainda pelo custo, para a Inglaterra, de cinco dos vinte cinco anos de Guerras Napoleônicas, e é equivalente a 2/3 de toda a renda proveniente anualmente do exterior para o mesmo país na mesma época. Ainda, para se ter uma idéia de um valor atual correspondente, seria ela equivalente a algo como US$ 23 bilhão como proporção das exportações brasileiras (metade do total anual), ou a US$ 35 bilhão, como proporção do maior Produto Nacional do mundo (0,7%, então da Inglaterra, hoje dos EEUU). Por qualquer critério, pode-se afiançar que constituía uma amarração adequada - e que posteriormente foi ainda reforçada por uma política de comércio exterior pela qual o Brasil sustentava um déficit na balança comercial por um período de quatro décadas, aumentando evidentemente sua dívida ainda mais.
 

Independência ou dependência?

Com a constituição do Estado independente, e estando as questões de ordem institucional e econômica resolvidas, opera-se a tranformação que permite a preservação da ordem econômica e social. O que era exploração colonial torna-se expatriação de excedente. O que era determinado de fora passa a ser determinado de dentro. O que era colônia, passa a ser nação-Estado, ainda que 'do Terceiro Mundo', ou 'dependente'.

Esse último ponto requer esclarecimento. Em meio a, e apesar de, sua interpretação da constituição do Estado brasileiro sobre o qual nos apoiamos no que precede, Emília Viotti escreve em conclusão do último de seus parágrafos citados acima:

... Independente de Portugal, o país passou à tutela britânica. (p.122) Ou seja, permeia a interpretação a idéia da dependência, isto é, a determinação externa da natureza do Estado recém constituído e dos processos de reprodução de sua sociedade. 'Teoria de dependência' à parte, a mesma idéia permeia a maioria até mesmo das interpretações mais poderosas sobre o Brasil. Em outra formulação Caio Prado Júnior sugere igualmente a idéia de um fracasso frente a circunstâncias externas: O Brasil, já com tantas dificuldades para sair deste sistema que lhe tinham legado três séculos de formação colonial, e em função do que se organizara sua vida, assistia agora a seu reforçamento ...(Prado Júnior,1945:134-5), e Chico de Oliveira entitula sua indagação sobre os processos internos da economia brasileira de A economia da dependência imperfeita (Oliveira, 1977): dependência, ainda que imperfeita ... E Nícia Vilela da Luz interpreta as lutas em torno da industrialização no Brasil como sendo uma luta pela sua industrialização (Luz,1961). Também Faoro produz colocações dúbias, como ao notar que "(a) teia comercial, armada nos focos diretores do mercado mundial, não aniquila a autonomia nacional," ou ao ver no Brasil de 1850 um "país dependente, mas não dominado."

Trata-se de pôr a história em pé. Isso requer mais que correções de enfoque ou a procura de respostas a questões que já encerram o conceito de dependência (além do pressuposto de uma comunidade nacional de interesses) a priori, tais como: Porque o Brasil não consegue sair da dependência? ou: Porque o Brasil 'não dá certo'? É necessário reconhecer a especificidade da sociedade brasileira tal qual ela é -e não com referência a algo que ela 'deveria ser', ou 'poderia ter sido'- e explorar a dialética do processo de sua reprodução. A importância prática de tal enfoque vem do fato de que as interpretações alternativas, como o (sub-) desenvolvimentismo, de cunho naturalista, ou o dependentismo, de filiação estruturalista levam, além de obstrução da análise, à imobilização da acão política. Já em 1972 Chico de Oliveira alertou, que

... a teoria do subdesenvolvimento sentou as bases do 'desenvolvimentismo' que desviou a atenção teórica e a ação política do problema da luta de classes... A teoria do sub-desenvolvimento foi, assim, a ideologia própria do chamado período populista". A alerta referente à teoria do subdesenvolvimento vale igualmente para a teoria da dependência, e isso, não obstante o fato dessa colocar-se como uma crítica daquele. Pois se o primeiro coloca as 'causas' do subdesenvolvimento na natureza, assim como preconiza desenvolvimento como caminho 'natural', o segundo situa a causa da dependência no âmbito das relações internacionais (imperialismo, trocas desiguais etc.) promovidas a verdadeiro Deus ex machina. A atitude condenatória da teoria de dependência a tal estado de coisas pouco adianta, assim como o reconhecimento de elementos internos (burguesia 'nacional', ou o próprio Estado) como sócios menores com interesse na manutenção da 'dependência'. Em ambos os casos, no essencial, os males da sociedade brasileira originam-se fora dela e assim, sua solução fica fora do alcance dos brasileiros -fato esse que explica o sucesso de que ambas as interpretações desfrutavam e a facilidade com a qual a ideologia conseguia incorporar e neutralizá-las na prática, dada sua compatibilidade de fato com a manutenção do status quo.

A exploração da dialética da sociedade brasileira exige conceitos novos, correspondentes à especificidade do processo em questão, tais como, acumulaçãoentravada como distinto tanto de exploração colonial quanto de acumulação capitalista em geral, e expatriação de excedente como distinta de 'produção para exportação' ou 'troca desigual'. Na história em pé, a sociedade colonial forjada por forças externas (da metrópole) constituiu, na Independência, as condições de sua reprodução por suas próprias forças. A base institucional dessa reprodução é o Estado, criado precisamente com este fim. Sua base de produção material é a acumulação entravada e que determinaria sua evolução futura. No que segue, esboçamos uma interpretação dessa última, um processo de expatriação de excedente que toma o lugar da exploração colonial.
 

2 Expatriação de excedente no estágio extensivo

Receava [José da Silva Lisboa, em 1808] pois, que uma política industrial de auto-suficiência causasse danos aos interesses predominantemente agrícolas do Brasil.
Nícia Vilela da Luz A luta pela industrialização do Brasil, 1961
Embora com a Independência a escravidão não foi abolida, nem tampouco, e apesar de todos os esforços da Inglaterra, o tráfico de escravos foi extinto, o trabalho assalariado estava se generalizando ràpidamente no Brasil, fato esse do qual a Lei da Terra e a abolição do tráfico negreiro, ambas em 1850, constituem apenas o reconhecimento ao nível institucional, em vista da falência de fato do trabalho escravo. Assim, sendo a relação salário o próprio fundamento da produção capitalista, a especificidade do processo de reprodução social no Brasil deve ser definida em relação a esse mesmo modo de produção.

Uma sociedade capitalista é movida pelas forças antagônicas originadas na tendência para a generalização da forma-mercadoria no mercado unificado dentro do arcabouço de uma nação-Estado, resultando em um processo de acumulação autônomo. Os limites à generalização da forma-mercadoria impõem a intervenção estatal com produção direta de valores de uso. Tal é a dialética da forma-mercadoria, em que a produção é organizada pelos processos simultâneos e antagônicos de mercado e de intervenção do Estado, sendo postulada a primazia dos primeiros. No estágio de acumulação extensiva a expansão da forma-mercadoria procede relativamente desimpedida predominantemente mediante a extensão da produção de mercadorias às custas de formas não-capitalistas de produção. Já no estágio intensivo, em que a expansão da produção fica restrita essencialmente ao aumento da produtividade do trabalho, o antagonismo entre mercado e Estado atinge novo patamar, porque a intervenção do Estado (planejamento, produção do espaço etc) -que nega a forma-mercadoria, ainda que seja necessária para sua preservação- se intensifica e a reasserção da primazia da forma-mercadoria -a negação da negação- torna-se cada vez mais problemática.

Já o processo de produção e reprodução social no Brasil, como vimos, ficou subordinado na Independência aos requisitos da reprodução das condições de dominação por uma elite, anteriormente colonial. Ao nível das relações sociais a sociedade brasileira se diferencia no capitalismo por ser uma sociedade de elite, como distinta da burguesa, onde a reificação das relações sociais não é completa, como nem poderia ser, uma vez que não predomina o princípio da generalização da forma-mercadoria. No que toca à organização da produção, os mesmos requisitos se traduzem na primazia da expatriação de excedente sobre a acumulação no mercado interno e assim, sobre a própria dialética da forma-mercadoria (que demandaria a generalização da forma-mercadoria na mais larga escala possível, sendo limitada tão-sòmente pela ação antagônica, se necessária, do Estado). Uma dialética da acumulação entravada toma o lugar da dialética da forma-mercadoria, e cuja história é a recomposição/reimposição da primazia da expatriação de excedente sobre a acumulação através de crises sucessivas.

As crises são geradas pelo antagonismo entre a expatriação de excedente e a acumulação - de maneira similar ao próprio processo de exploração colonial já discutido, à diferença que nesse último tais crises eram resolvidas pelo confronto entre forças internas, de um lado, e externas à colônia, do outro lado. No processo de acumulação entravada uma parte substancial do excedente é contìnuamente retirada e enviada além das fronteiras, ao invés de ser incorporada à reprodução ampliada. No entanto, ainda assim há uma certa acumulação (correspondente à parte não expatriada do excedente), sendo essa última uma condição da expansão do excedente expatriável, ou seja, imposta pelo próprio princípio de maximização do excedente expatriado. Uma vez que a produção -e assim, também a produção de excedente- é baseada em trabalho assalariado, a força de trabalho deve se expandir e com ela, a massa salarial, por sua vez, deve pelo menos acompanhar a taxa de crescimento da força de trabalho -mesmo que o nível salarial seja mantido baixo-, resultando em uma expansão correspondente do mercado interno. Por mais restrito que seja esse mercado, a saber, aos bens de consumo dos trabalhadores assalariados (por razões às quais voltaremos, uma atrofia crônica é imposta sobre o Departamento I, de meios de produção, por um lado, e por outro, a produção para subsistência é històricamente alta, ainda que em queda com o recuo paulatino das 'fronteiras' da expansão), a esse nível prevalecem as leis da acumulação e levantam forças antagônicas à expatriação de excedente.

Acumulação desimpedida no mercado interno tanto requereria quanto induziria o pleno desenvolvimento das forças produtivas e em particular o fortalecimento da burguesia que em última instância acabaria por desafiar a dominação da elite enquanto classe. Por essa razão a mesma é impedida a todo custo, através do desmantelamento sistemático do desenvolvimento embrionário da indústria por uma variedade de meios tais como, medidas fiscais, monetárias e financeiras, complementados por uma política 'liberal' de importações centrada nas indústrias estratégicas da respectiva época (particularmente, dos meios de produção, donde a atrofia do Departamento I mencionada acima). Ciclos sucessivos de 'substituição de importações' são, ainda assim, necessários devido à restrição da balança de pagamentos; quando a mesma se manifesta, as indústrias dinâmicas (que variam de acordo com cada época) são entregues ao controle de capitais estrangeiros, ou em muitos casos serão constituídas em empresas estatais, que não criarão, nem os primeiros nem as segundas, forças internas que desafiariam a posição da elite. O resultado até a virada do século XX é ilustrado por um depoimento da época:

Cerca de 85% da atividade comercial não nos pertencem e não ficam no país; os fretes de navegação, os lucros e dividendos de bancos, de empresas de seguros de toda espécie, de aluguéis de prédios, o salário devido ao trabalho nas fazendas de café etc, e tudo isso em larga escala, aqui não fica e sai do excesso do valor de nossa produção agrícola sobre o valor que importamos.
 
Cerzedelo Corrêa, 1903 (cit.in Luz,1961:81)
Exemplos mais recentes são o caso da indústria automobilística dos anos 1950, inteiramente em mãos estrangeiras desde o princípio, ou da indústria eletro-eletrônica durante os anos sessenta, quando uma indústria nacional nascente foi levada à falência ou depreciação através de política recessiva e então entregue ao capital estrangeiro (daí 'entreguismo'). Tais indústrias são protegidas total ou parcialmente de competição quer seja interna quer externa, com a consequência adicional que por um lado, elas operam a taxas extremamente elevadas de lucro e por outro lado, e o que é mais importante, o estímulo ao progresso técnico é removido.

Nas crises provocadas quer por uma restrição da balança de pagamentos quer pelo excessivo fortalecimento da produção nacional no período antecedente (a um ou outro dos polos entre os quais se tende a acumulação entravada) -e tìpicamente, em períodos de crise mundial em que se afrouxam os vínculos externos-, as forças a favor e contra a manutenção do status quo entram em conflito aberto. Tais crises atravessam a história brasileira em uma aparentemente infindável sucessão desde a transmigração da côrte de D.João VI (1808) de geração em geração, dando a aparência de uma 'sociedade sem história' onde se aplicaria o adágio "Plus ça change, plus c'est la même chose", como lembra Florestan Fernandes. (A frase de Lampedusa: 'É preciso mudar, para que tudo possa permanecer o mesmo', vem da Itália num estágio em muitos aspectos semelhante.) A história parece estancar. De fato, o que é o mesmo nessas crises é que elas foram sempre resolvidas até hoje a favor da re-imposição da primazia da expatriação de excedente sobre acumulação.

No entanto, acumulação-com-expatriação-de-excedente só é possível a taxas muito elevadas de excedente, como aquelas permitidas por um estágio de acumulação extensiva, em que a taxa de expansão é igual à taxa de excedente pròpriamente dita (dentro da produção de mercadorias) mais a taxa de extensão da produção de mais-valia (isto é, da própria produção de mercadorias à custa de outras formas de produção), onde a segunda é a parcela mais substancial. Nessas condições, uma parte do excedente é expatriada e ainda assim sobra algum para acumulação - ainda que acumulação entravada.

O mesmo não ocorre com a passagem ao estágio de acumulação intensiva, em que a taxa de expansão se restringe à taxa de excedente pròpriamente dita proveniente exclusivamente do aumento da produtividade do trabalho, e o excedente resultante então pode ou bem ser expatriado ou bem ser utilizado em reprodução ampliada, isto é, acumulado. Com a exaustão do estágio extensivo acumulação entravada torna-se impossível. Assim, o que não é 'o mesmo' na história brasileira são as condições em que a primazia da expatriação de excedente tem sido re-imposta mesmo durante o estágio extensivo, com o paulatino crescimento do peso relativo do mercado interno e das forças sociais correspondentes, e decididamente diverso é as condições em que aquela primazia pode ser reimposta agora, findo aquele estágio.
 
 

3 A crise atual e as questões urbanas

[Outra tarefa gigantesca:] reintegrar o país dentro (sic) de sua linha histórica.
 
Presidente do Brasil, 2 junho 1988
A exploração da dialética da acumulação entravada, processo específico de reprodução social desde a Independência até o fim dos anos 1970, e especialmente sua vinculação ao estágio extensivo permite uma interpretação da crise que se implanta no início da década de 80 e que ainda está por ser resolvida. A exaustão do estágio extensivo no Brasil implica a exaustão da acumulação entravada, e a crise precisa ser resolvida mediante um embate entre as forças sociais: seja, por um lado, a favor da manutenção da primazia da expatriação de excedente -e da sociedade de elite- que no entanto implica agora a anulação, e não mais mero retardamento, da acumulação, vale dizer, da própria reprodução ampliada; seja, por outro lado, a favor do princípio da acumulação com a passagem ao estágio de acumulação intensiva, que implica por sua vez a anulação da expatriação de excedente -e na transformação da sociedade que nela se sustenta.

As implicações da resolução específica da crise para as 'questões urbanas' em geral e a infraestrutura urbana em particular prendem-se às diferenças nas condições de reprodução da força de trabalho nas duas perspectivas delineadas. A primeira, da manutenção da expatriação, significa uma involução das forças produtivas com a cessação da reprodução ampliada, a suspensão do progresso tecnológico (deve estar claro que as 'zonas francas' e filiais de empresas estrangeiras não são focos de irradiação de técnica avançada), e o rebaixamento do nível de subsistência do trabalhador. A segunda, acumulação desimpedida implica na transição para o estágio de acumulação intensiva suportada no aumento da produtividade do trabalho e consequentemente, com a elevação do nível de subsistência da força de trabalho.

Ora, as aglomerações urbanas são o local precípuo da reprodução social. A elas cabe o papel de assegurar as condições de reprodução da força de trabalho, aos níveis requeridos pelo estágio de desenvolvimento da sociedade. No passado, assistimos à miséria urbana que acompanha o estágio de acumulação extensiva, e não sòmente no Brasil, senão em todos os lugares históricos - recordemos apenas Os miseráveis de Victor Hugo ou Oliver Twist de Dickens. Quanto ao futuro, abrem-se duas perspectivas de encaminhamento da política urbana de acordo com as alternativas históricas abertas ao Brasil. Dessas, a primeira na ordem acima citada, ou seja, a reimposição da expatriação de excedente, não vale o papel gasto em seu esboço. Seria a 'bolivianização' do país, conforme preconizado recentemente (1988) por um ministro de Estado. Já a segunda, ou seja, a transição para o estágio intensivo com a transformação da ordem elitista em ordem burguesa, deve -conforme eu havia argumentado em outro lugar- impor sobre as aglomerações urbanas requisitos de performance, alguns a um patamar nìtidamente superior aos atuais, e outros inteiramente novos. Tal performance dever  naturalmente ser assegurada por uma infraestrutura urbana relativa a todos os aspectos da reprodução social, da produção de mercadorias à reprodução da força de trabalho.

Para tomar apenas um exemplo, o transporte urbano não poderia continuar em seu estado de virtual abandono e preso a técnicas obsoletas. Em particular, o ritmo histórico de implantação dos Metrôs de São Paulo e Rio de Janeiro, equivalente a 2km de linha por ano na primeira dessas cidades, é insuficiente para sequer acompanhar o ritmo de crescimento de sua aglomeração urbana. Uma alteração qualitativa de tal quadro implicaria em algo como a quintuplicação do volume de investimentos para em torno de 0,5% do Produto Nacional por um período como 15 anos, para se chegar a uma rede da ordem de 300km de extensão, o que deixaria o índice de atendimento a níveis ainda baixos segundo padrões internacionais -inclusive os latino-americanos-, mas já seria compatível com uma elevação considerável da produtividade do trabalho. Considerações semelhantes valem também para outros elementos de infraestutura, como telefonia e telecomunicações, saneamento básico ou equipamentos e serviços de saúde e educação. Trata-se, em resumo, de uma mudança radical e não apenas de grau, com o abandono do princípio da escassez e sua substituição pelo reconhecimento das condições da reprodução social enquanto necessidade histórica, correspondente ao respectivo estágio de desenvolvimento.

A ideologia promove, como dizíamos, uma visão segundo a qual o processo de desenvolvimento é determinado externamente, fugindo ao alcance de membros da sociedade. Fomenta uma luta quixotesca contra inimigos imaginários, promovidos sob nomes de pseudo-conceitos -difundidos pela 'grande' imprensa e por boa parte dos intelectuais que, coletivamente, os produziram-, tais como fantasma da inflação, espectro da recessão, problema da dívida externa, ineficiência do Estado, fisiologismo de parlamentares ou atraso da sociedade em substitução dos respectivos processos concretos, e que são, na verdade, os próprios instrumentos de manutenção do 'status quo'. Em contraponto, o enfoque sobre a dialética do processo social brasileiro permite romper a barreira ideológica e interpretar a atual crise pelo que ela é: uma crise de reprodução da sociedade de elite no âmbito da acumulação entravada que -e apesar das tentativas de recomposição do status quo ante desde o abandono do II PND há quase quinze anos-, mantém em aberto a questão mesma que todas as transições, umas mais, outras menos, 'democráticas' pretenderam evitar, a saber: a questão da transformação da ordem social.
 
 

4 Epílogo: 1990

"Por trás dos príncipes de 1850, por trás de Austria e Prússia, estava a moderna grande burguesia, ràpidamente colocando-as sob seu jugo por meio da dívida nacional."

Eu sinto ter de dizer que nesse parágrafo excessiva homenagem foi prestada à burguesia alemã. Tanto na Áustria como na Prússia ela tinha, de fato, a oportunidade de "ràpidamente colocar sob seu jugo" a monarquia "por meio da dívida nacional", mas ela não se valeu desta oportunidade em qualquer dos casos. (...) Essa burguesia não quer governar.

Engels (1874) The Peasant War in Germany, Prefácio

As interpretações que precedem dizem respeito à história brasileira e à crise pós-76 da maneira como essa última vinha se desenvolvendo nos anos 80 em geral. A realização do Seminário Repensando os anos 1980 no final de 1990 fornece, no entanto, oportunidade para se apontar alguns desdobramentos para além do simples empate de forças sociais que prolongava a crise.

As respostas ou mesmo as implicações da questão colocada pela eventual transformação radical da economia e da sociedade brasileiras no bojo da transição para o estágio de acumulação intensiva foram simplesmente proteladas pelo imobilismo do Governo Sarney. As indefinições assim geradas em pràticamente todos os níveis e âmbitos da organização social, levadas ao paroxismo no final do mesmo governo e manifestas em hiperinflação e 'desassossego social' iminentes, trouxeram um imponderável como elemento novo, na forma da eleição de um presidente da república inteiramente fora do espectro político, vale dizer, dos partidos políticos estabelecidos.

O novo governo anunciou no dia de sua posse uma reforma econômica de tal profundidade que, se efetivamente implantada, leva à transformação de algumas das características seculares mais fundamentais da economia brasileira, referidas acima. Entre as medidas concretas estão o fim do financiamento automático do déficit público pela via da emissão de moeda, a unificação do planejamento, execução orçamentária e política monetária, a montagem de um sistema financeiro capaz de crédito de longa maturação, e drástica redução da imunidade fiscal -tantas condições elementares de uma estrutura de produção regulada sob a primazia do mercado. Nesse mesmo sentido, a reforma inclui ainda a extinção (ou o anúncio de intenção para tanto) das muletas para indústrias selecionadas (subsídios, cartéis, monopólios, nichos de proteção), assim como a montagem de sistema de financiamento do comércio exterior (até hoje dependente de crédito de curto prazo levantado na praça de Nova York), e mais geralmente, favorecimento do desenvolvimento do Departamento I (de produção dos meios de produção), estímulo ao progresso técnico e correspondente elevação dos salários e primazia do mercado interno. No todo, tal reforma, sempre se implantada, equivale à remoção dos entraves auto-impostos à acumulação na economia brasileira. Por essa razão, de vez que uma tal transformação implica na transformação da própria sociedade -que deve perder seu caráter de elite-, a 'reforma' equivale também a uma revolução. Uma revolução 'por cima', oriunda que é da cúpula do poder executivo, e deixando a questão maior escancarada: qual a sustentação -se houver- para a efetiva implantação de tal 'reforma'?
 

von Bismarck Collor de Mello?

Bismarck nunca teve a sombra sequer de uma idéia política original e era bom apenas em se apropriar de idéias toda-feitas de outrem. Mas tal estreiteza era sua sorte. Sem ela nunca poderia ser ele capaz de perceber a História sob o ponto de vista exclusivamente prussiano. ...Sua força de vontade nunca o desertou ... e que se transformava frequentemente em pura brutalidade. E era esse, acima de tudo, a chave de seu sucesso. Todas as classes dominantes da Alemanha, tanto os Junkers como os burgueses, haviam perdido suas energias a tal ponto, ser sem-caráter tornou-se tão generalizado na Alemanha 'educada', que o único dentre eles que ainda ostentava força de vontade, tornou-se por isso só seu maior expoente - e tirano, segundo cuja música dançavam até mesmo contra seu melhor juízo e natureza.

... Bismarck realizou os anseios da burguesia alemã contra sua própria vontade. (...) A Prússia tornou a ser uma Grande Potência, e não mais a 'quinta roda' do carro da Europa. A realização das aspirações nacionais da burguesia ia de vento em popa, mas o método escolhido não foi o método liberal burguês. ... Bismarck executava seu programa nacional com uma velocidade e precisão que os enchia de espanto.

Engels, The role of force in history 1888.
As reações à reforma econômica -prontamente denominada de 'Plano', como é hábito, já preconizando seu 'fracasso', também, como de hábito-, iam do espanto, incompreensão e retórica vazia, à indignação, ódio vociferante e sabotagem. Membros individuais da elite (os 'eleitos') davam vazão descontrolada a sua frustração nas formas mais variadas e frequentemente pitorescas, enquanto sua 'grande' imprensa tratava de defender 'os trabalhadores' contra os efeitos maléficos da reforma cujo sentido era precisamente romper o impasse que já durava quinze anos, mantido a todo custo em nome da continuidade e do consenso e que já havia resultado no que não pôde deixar de ser chamado de década perdida. Os partidos políticos de direita foram jogados em total desorientação, enquanto os 'de esquerda' optaram pela oposição automática à política de um governo que só podia ser visto como 'de direita' enquanto se recusavam terminantemente a sua análise concreta. O resultado foi uma gigantesca cortina de fumaça que impedia, ao nível político, qualquer posicionamento mais explícito a favor ou contra o conteúdo efetivo da transformação preconizada na reforma.

Os representantes dos 'eleitos' no Congresso (auto-denominados de representantes do 'povo') desdobravam-se em zêlos para 'defender' os salários dos mesmos trabalhadores, estando empenhados, de fato, no restabelecimento do status quo ante. Seus 'economistas' alardeavam os efeitos recessivos do 'plano' -como se em alguma economia a produção pudesse ser reorganizada sem uma queda da taxa de lucro ou de consumo-, preconizavam seu iminente 'fracasso', e pontificavam a dependência do país de investimentos e de tecnologia estrangeiros, re-entoando a ladainha dos 'liberais' do século passado e de sempre. Aparentemente, tudo como dantes, no quartel de Abranches ...

No entanto, apesar da generalizada resistência à mudança, não emergiu qualquer projeto alternativo e assim, e sòmente por isso, a reforma vai se implantando aos trancos e barrancos e no reconhecimento recalcitrante da absoluta falta de alternativa. "Alternativa", no caso, seria a continuidade, o 'consenso' -isto é, a manutenção da acumulação entravada, expatriação de excedente e sociedade de elite- e isto, como vimos, é estágio superado devido à exaustão do estágio de acumulação predominantemente extensiva. Assim, a reforma é menos um grande desígnio, um 'novo projeto para o Brasil' que mera falta de alternativa para o desenvolvimento das forças produtivas, devido à inviabilização de acumulação com expatriação de excedente.

O que caracteriza as posições assumidas, de um lado e outro, é a virtual ausência de uma ideologia que as acompanhasse. Com todos os problemas da ideologia liberal já assinalados, ficou ela por demais associada à manutenção do status quo para dela ser descolada de repente e poder ser utilizada pelo projeto oposto, e isto, apesar de que por seu conteúdo, a este teria melhor aderência. Em consequência, qualquer organização das posições políticas segundo linhas partidárias (ou 'propostas claras') fica virtualmente impedida. Daí o caráter bonapartista, a aparência de uma 'revolução por cima': contra tudo e contra todos, Fernando Otto von Bismarck Collor de Mello vai se mantendo como instrumento de uma transformação social profunda em fermentação.

A menos de um ano de seu governo -ao se escrever as linhas deste epílogo, na tentativa de concluir uma interpretação da crise dos anos 80- permanece, é claro, em aberto o desfecho do processo em curso. Sabemos que

(t)ransformações são incubadas por muito tempo em segredo antes de se fazerem sentir violentamente na superfície. Um relato certeiro da história (econômica) de determinada época nunca pode ser produzido contemporàneamente, tão-somente em um momento subsequente. Menos ainda seriam autorizadas previsões -que seriam necessàriamente profecias- sobre quais das forças em oposição prevaleceriam em última instância, ou mais exatamente, como elas mesmas iriam se transformar no processo do próprio conflito e que formas concretas -de organização social e de estágio de desenvolvimento- iria tal processo produzir. O objetivo destas interpretações também não era mais que caracterizar as tendências em jogo, bem como a própria natureza da respectiva transformação social, ora em questão.
 
 
 

Referências
 

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BARRATT BROWN, Michael (1988) "Away with all the great arches: Anderson's history of British capitalism" New Left Review 167:26-51

BETHELL, Leslie (1970) A abolição do tráfico de escravos no Brasil (A Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do tráfico de escravos 1807-1869 Expressão e Cultura/Edusp, São Paulo, 1976

CRUZ, Paulo Davidoff (1983) "Notas sobre o endividamento externo brasileiro nos anos setenta" in Belluzzo,Luiz Gonzaga & Coutinho, Renata (Org,1983) Desenvolvimento capitalista no Brasil, Nº2/ Ensaios sobre a crise Brasiliense, São Paulo

DEÁK, Csaba (1985) Rent theory and the price of urban land/ Spatial organization in a capitalist economy PhD Thesis, Cambridge

DEÁK, Csaba (1986) "The market and the State in spatial organization of capitalist production" Comunicação apresentada à BISS 1986 -Bartlett International Summer School, Dessau

DEÁK, Csaba (1988) "Preliminares para uma política urbana" Espaço & Debates 24:7-13

DEÁK, Csaba (1990) "Elementos para uma política de transportes públicos em São Paulo" Espaço & Debates 30:42-55

DEANE, Phyllis & COLE, W A (1967) British economic growth 1688-1959 CUP, Cambridge

ENGELS, Friedrich (1885) "Introduction" to MARX, Karl (1850) The class struggles in France, 1848-50 Progress, Moscou, 1979

ENGELS, Friedrich (1888) The role of force in History Lawrence & Wishart, London, 1968

FAORO, Raimundo (1957) Os donos do poder/ Formação do patronato político brasileiro Globo, Rio de Janeiro,1984

FERNANDES, Florestan (1972) "Classes sociais na América Latina" in Fernandes (1972) Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina Zahar, São Paulo, 1981

MANTEGA, Guido (1984) A economia política brasileira Polis, São Paulo

LUZ, Nícia Vilela (1961) A luta pela industrialização do Brasil Alfa-Omega, São Paulo, 1975

MOTTA, Carlos Guilherme da (1968) O Brasil em perspectiva Difel, São Paulo

OLIVEIRA, Francisco (1972) "A economia brasileira: Crítica à razão dualista" Cadernos Cebrap, 2:5-98

OLIVEIRA, Francisco (1977) A economia da dependência imperfeita Graal, São Paulo

OLIVEIRA, Francisco (1990) "Fernando Otto von Bismarck Collor de Mello" Folha de SP, 26.3.90:3

PINTO, Virgílio N (1968) "Balanço das transformações econômicas no século XIX" in Motta (1968)

PRADO Jr,Caio (1945) História econômica do Brasil Brasiliense, São Paulo, 1986

VIOTTI da Costa, Emília (1968) "Introdução ao estudo da emancipação política" in Motta (1968)
 
 


 

Anexo

Balanço de pagamentos, Brasil 1959-90

Taxas de acumulação, investimento e expatriação
 
 

Apresentamos aqui alguns itens selecionados das contas nacionais, agrupados de maneira a permitir uma avaliação da evolução recente da economia brasileira (1959-90) e do papel do capital estrangeiro, ou, em um sentido mais lato, das contas externas do país.

A evolução do produto nacional é uma boa medida da taxa de acumulação em si. O saldo da conta de capitais, isto é, conta de serviços mais empréstimos menos amortizações, é uma medida razoável da expatriação de excedente (Tabela 1) -que admitiria a alternativa de se considerar o saldo da balança comercial (exportações menos importações) menos a variação das reservas internacionais (Tabela 2), desprezando, no entanto, o déficit (ou mais raramente, superávit) das transações correntes. Cruz (1983), por sua vez, deduz os servicos "de alguma forma produtivos" (fretes, seguros etc.) da conta de serviços, desprezando com isto o fato que tais itens são crônicamente negativos precisamente para a, ou em função da, reprodução do entravamento da acumulação. Por essa razão, nas ilustrações das Figuras 1-3, a expatriação é medida pela primeira dessas alternativas.
 

Figura 1 Brasil 1959-90: Taxas de Investimento

A Figura 1 representa simplesmente a taxa de investimento, medida pela formação bruta de capital fixo- FBCF (azul) --que determina em boa medida, a taxa de acumulação futura--, os investimentos externos diretos (vermelho) e a conta de capital (verde), contra o pano de fundo da evolução do produto nacional- PIB (pardo).

Figura 2 Brasil 1959-90: Acumulação e expatriação

Figura 3 Brasil 1959-90: Expatriação e renda

As Figuras 2 e 3 põem em relação a taxa de expatriação de excedente (verde) e o PIB, e aquela e a renda per cápita, respectivamente. Elas apresentam a evolução histórica (azul) de fato e uma evolução hipotética 'sem expatriação' (vermelho), do produto nacional e da renda per cápita, respectivamente, a partir da base de 1959. Se tais curvas chegam a ser indicativos do 'efeito' da expatriação, elas levam em conta apenas o efeito imediato, ano a ano, dessa última, sem tais outros como a distribuição de renda ou o aumento da produtividade a longo prazo e são assim, meramente ilustrativos das ordens de grandeza envolvidas. Tabela 1: (apresentação provisória)

BRASIL, 1959-88
PIB, BALANÇO DE PAGAMENTOS E TAXA DE INVESTIMENTO (FBCF)
US$ Correntes
 
 

PIB      C O N T A DE C A P I T A L EXPATRIAÇãO TxaInv Tx jur

Ano PNB Cr.real Inv.d. Serviços Emprest Amortiz Saldo S/PIB FBCF j/Dív

(bi) (%a.a) US$ mi US$ mi US$ mi US$ mi US$ mi (%) (%) (%a.a)
[1] [2] [3] [4] [5] [6] [7] [8] [9] [10]
 
 

1959  17.14 5.6 124 -373 439 -377 -187 -1.1 18.5 -
1960 19.56 9.7 99 -471 347 -500 -525 -2.7 -

1961 22.44 10.3 108 -359 545 -326 -32 -0.1 -
1962 24.57 5.3 69 -406 343 -310 -304 -1.2 -
1963 25.94 1.5 30 -333 262 -364 -405 -1.6 -
1964 27.97 3.7 28 -259 226 -271 -276 -1.0 -
1965 30.17 3.7 70 -447 363 -304 -318 -1.1 16.1 -

1966 32.54 3.7 74 -550 508 -395 -363 -1.1 17.6 -
1967 35.09 3.7 76 -524 512 -447 -383 -1.1 17.6 -
1968 40.74 11.2 63 -582 700 -609 -428 -1.1 19.8 0.3
1969 46.67 9.0 136 -630 1 201 -701 6 0.0 19.8 0.1
1970 53.52 8.8 122 -815 1 510 -687 130 0.2 20.6 0.8

1971 62.60 11.4 169 -980 2 037 -850 376 0.6 21.3 2.4
1972 72.99 11.9 337 -125 4 299 -1 202 3 309 4.5 22.2 5.8
1973 87.96 13.9 974 -1 458 4 547 -1 662 2 401 2.7 23.6 9.9
1974 103.64 8.3 945 -2 433 6 891 -1 920 3 483 3.4 24.7 13.4
1975 119.06 5.1 1 007 -3 213 6 530 -2 120 2 204 1.9 25.8 5.9

1976 138.02 10.2 1 145 -3 919 7 920 -2 888 2 258 1.6 25.0 6.7
1977 153.18 4.9 956 -4 134 8 424 -4 060 1 186 0.8 23.6 6.9
1978 173.22 4.9 1 031 -6 037 13 810 -5 324 3 480 2.0 23.5 5.7
1979200.91 6.8 1 685 -7 778 11 882 -7 314 -1 525 -0.8 22.9 8.3
1980 239.80 9.3 1 487 -10 152 10 596 -5 010 -3 079 -1.3 22.9 9.3

1981 250.34 -4.4 1 795 -13 135 15 554 -6 242 -2 028 -0.8 21.0 12.6
1982 275.51 0.6 1 370 -17 082 12 515 -6 952 -10 149 -3.7 19.5 13.1
1983 281.82 -3.5 861 -13 415 6 708 -6 863 -12 709 -4.5 16.9 9.2
1984 308.64 5.1 1 123 -13 215 10 401 -6 468 -8 159 -2.6 16.2 10.4
1985 347.96 8.3 804 -12 877 7 078 -8 491 -13 486 -3.9 16.7 10.5

1986 386.76 7.6 -120 -13 694 3 109 -11 546 -22 251 -5.8 19.0 -
1987 413.90 3.6 669 -12 678 3 988 -13 819 -21 840 -5.3 18.3 -
1988 427.11 -0.3 2 445 -15 030 2 845 -17 087 -26 827 -6.3 17.5 -
1989 457.52 3.0 3 788 -14 800 29 612 -33 985 -15 385 -3.41 16,0 -
1990 466.30 -2.0 3 256 -13 753 2 337 -7 487 -15 647 -3.4 15,0 -
 
 

Fontes:
[1] De [2] com 1980: Baer (1989):102; valores correntes segundo a inflação do dólar.
[2] 1959-63:Baer (1989):61; 1964-70: idem, p.81; 1971-88: IBGE (1989); 1989-90: aprox.
[3] 1959-76: IBGE (1968-76: inclui reinvestimento); 1977-90: CjEcon.
[4] IBGE.
[5],[6] 1959-87: IBGE; 1988-90: CjEcon.
[9] 1965-9: Paiva et alii (1987):181; 1970-88: IBGE (1989).
[10] Taxa de juro real sobre a dívida externa. BAER (1989): 106.

Tabela 2:

BRASIL, 1959-88
COMERCIO EXTERIOR, RESERVAS INTERNACIONAIS E EXPATRIAção DE EXCEDENTE (US$ correntes)
 
 

PIB COMERCIO EXTERIOR RESERVAS EXPATRiação (1)

Ano US$ Export Import Saldo Variação US$bi Ex/PIB
(bi) US$bi US$bi US$bi US$bi (13-14) (%)
[1] [11] [12] [13] [14] [15] [16]
 
 

1959  17.14 1.28 1.21 0.07 -  -  -
1960 19.56 1.27 1.29 -0.02 -0.02 0.00 0.0

1961 22.44 1.40 1.29 0.11 0.20 -0.09 -0.4
1962 24.57 1.21 1.30 -0.09 -0.20 0.11 0.4
1963 25.94 1.41 1.29 0.11 0.10 0.01 0.0
1964 27.97 1.43 1.09 0.34 -0.01 0.35 1.3
1965 30.17 1.60 0.94 0.66 0.30 0.36 1.2

1966 32.54 1.74 1.30 0.44 -0.10 0.54 1.7
1967 35.09 1.65 1.44 0.21 -0.20 0.41 1.2
1968 40.74 1.88 1.86 0.03 0.10 -0.07 -0.2
1969 46.67 2.31 1.99 0.32 0.40 -0.08 -0.2
1970 53.52 2.74 2.51 0.23 0.50 -0.27 -0.5

1971 62.60 2.90 3.25 -0.34 0.50 -0.84 -1.3
1972 72.99 3.99 4.24 -0.24 2.50 -2.74 -3.8
1973 87.96 6.20 6.08 0.12 2.20 -2.08 -2.4
1974 103.64 7.95 12.64 -4.69 -1.10 -3.59 -3.5
1975 119.06 8.67 12.17 -3.50 -1.30 -2.20 -1.8

1976 138.02 10.13 12.28 -2.15 2.60 -4.75 -3.4
1977 153.18 12.12 12.02 0.10 0.66 -0.56 -0.4
1978 173.22 12.66 13.68 -1.02 4.64 -5.66 -3.3
1979 200.91 15.24 17.96 -2.72 -2.21 -0.51 -0.3
1980 239.80 20.13 22.96 -2.82 -2.78 -0.05 0.0

1981 250.34 23.29 22.09 1.20 0.59 0.61 0.2
1982 275.51 20.18 19.40 0.78 -3.51 4.29 1.6
1983 281.82 21.90 15.43 6.47 0.57 5.90 2.1
1984 308.64 27.01 13.92 13.09 7.43 5.66 1.8
1985 347.96 25.64 13.15 12.49 -0.39 12.87 3.7

1986 386.76 22.35 14.04 8.30 -4.85 13.15 3.4
1987 413.90 26.22 15.05 11.17 0.70 10.47 2.5
1988 427.11 33.78 14.69 19.10 2.08 17.02 4.0
1989 457.52 34.38 18.26 16.12 0.54 15.58 3.4
1990 466.30 31.41 20.41 11.01 0.29 10.71 2.3

Fontes:
[11], [12] 1959-88: IBGE; 1989-90: CjEcon.
[14] Da posição das reservas em 1959: Baer (1989): 202; em 1960-76: Cruz (1983):61; em 1977-88: IBGE (1989), e em 1989-90: CjEcon (1988=US$9, 54 bilhões). (em 31/12)

Referências das fontes citadas:

IBGE: Anuário estatístico
IBGE (1988) Contas nacionais consolidadas do Brasil
CjEcon: Conjuntura Econômica
BAER,Werner (1989ed) The Brazilian economy Preager, New York
PAIVA, Paulo et alii (1987) Plano Cruzado/ Ataque e defesa, Forense Universitária, Rio de Janeiro
 

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