Folha de S Paulo,
02.3.15:B-2
OPINIÃO
ECONÔMICA
O
que nos reserva o futuro?
LUIZ
CARLOS MENDONÇA DE BARROS
Estive em Fortaleza
no último fim de semana participando de um evento privado paralelo
ao encontro dos governadores do Banco Interamericano de Desenvolvimento,
mais conhecido como BID. Para o leitor que não está familiarizado
com a dinâmica dessas reuniões dos chamados órgãos
multilaterais, como o BID, o Banco Mundial e o FMI, explicarei o que representam
em poucas palavras. Sua espinha dorsal é o encontro oficial que
reúne os principais dirigentes dessas instituições
e os representantes dos países-membros. Como a maioria desses fóruns
internacionais, ele se desenvolve dentro de uma modorra diplomática
de pouco interesse. As decisões mais importantes já foram
discutidas antes e são de conhecimento dos mercados e governos.
De vez em quando, como ocorreu agora com as declarações duras
do presidente FHC sobre o tratamento do FMI a nós, latino-americanos,
a tensão sobe um pouco. Mas a dinâmica mais importante desses
encontros ocorre na sua vertente privada, organizada pelos maiores bancos
internacionais e que reúne mercado e representantes dos governos
nacionais para discutir o futuro da economia.
Fui convidado pelo
Deutsche Bank para falar sobre o Brasil dos próximos cinco anos.
Meu público: um grupo de analistas de bancos e fundos de investimento
internacionais e brasileiros. Bastante jovens na sua grande maioria e com
sinais evidentes de sangue latino em suas faces. Mas, nos valores e idéias,
de uma homogeneidade perigosa. Como Keynes foi brilhante ao comparar os
mercados financeiros e seus participantes a um rebanho de carneiros que
se movimentam sempre juntos!
Fui avisado por um
dos participantes que eu era visto como um economista identificado com
o pensamento do senador José Serra e que, de certa forma, falaria
por ele e por um futuro governo do PSDB. Além disso, fui advertido
de que o hoje senador por São Paulo era visto com um certo desconforto
por suas posições consideradas heterodoxas em relação
ao manual de Wall Street. Por isso tomei o cuidado de falar em português
e no jargão do mercado financeiro, que conheço muito bem,
porque dele participo, com paixão e algum sucesso, desde 1968.
Embora eu seja considerado
por muitos de meus companheiros de trabalho uma ovelha pink e desajustada,
conheço muito bem seus mitos e valores, sejam eles corretos e falsos.
Procurei expor minhas idéias, propostas e previsões usando
as palavras do mercado. Parece-me interessante resumir para meu leitor
da Folha que Brasil procurei desenhar para os próximos anos.
Para falar do futuro,
disse, é preciso conhecer o presente que herdamos dos oito anos
de FHC. O Brasil de hoje é um país muito diferente daquele
que Wall Street imagina ser o paradigma da América Latina, com exceção
do "darling" desse pessoal, que é o Chile. Meus principais exemplos:
a situação fiscal e a institucionalidade legal que regula
a ação do administrador público no trato dos recursos
do Estado. Ressaltei que a Lei de Responsabilidade Fiscal que temos aqui
não existe, na sua rigidez e na extensão de suas penas legais,
em nenhum outro país, mesmo fora de nossa desmoralizada região.
Falei também
sobre o fato de que temos uma moeda nacional autônoma, que tem o
respeito e a confiabilidade da população. Identifiquei o
colapso da Argentina principalmente com a inviabilidade de ter uma moeda
sem relação com o povo, a cultura e a institucionalidade
do país. Daí a importância do real para pensar sobre
nosso futuro. Mostrei a importância de um BC responsável,
competente e com um mandato formal -as chamadas metas de inflação-
para manter confiança na moeda nacional. Fiz alguns comentários
sobre mudanças pontuais que a meu ver devem ser feitas nesse compromisso
e que, de certa forma, foram também defendidas pelo presidente atual
do BC e que, cogita-se, deve ser mantido no cargo no caso de um futuro
governo José Serra.
Tratei também
das causas e principais restrições que estão por trás
do crescimento medíocre, seguindo o modelo do vôo da galinha,
que foi a marca negativa dos últimos anos no Brasil. Mostrei a meus
ouvintes que essa situação é insustentável
a longo prazo, principalmente pelos problemas sociais que está criando.
Defendi a mudança da ênfase da política econômica
nos próximos anos e da correção de certos entraves
que foram criados pela necessidade de priorizar a estabilidade nos dois
últimos mandatos presidenciais.
Para não ficar
apenas ao nível das generalidades, dei como um exemplo importante
a estrutura atual de impostos no Brasil. Diante das dificuldades políticas
e legais do governo para reduzir seus gastos em alguns setores, o necessário
superávit primário nas contas públicas foi obtido
mais pelo lado do aumento da receita, principalmente via contribuições
ao sistema de seguridade pública calculadas sobre o faturamento
das empresas -os chamados impostos em cascata - e o aumento dos impostos
fáceis de serem arrecadados, como os incidentes sobre consumo de
energia elétrica, combustíveis e serviços de telefonia.
Ora, essa saída
eficiente do ponto de vista da arrecadação introduziu ineficiências
graves ao nível do sistema produtivo. O baixo crescimento econômico
nos últimos anos agravou esse problema à medida que reforçou
a prevalência da eficiência da arrecadação sobre
a racionalidade econômica de nosso sistema tributário. Isso
precisará ser corrigido nos próximos anos!
Mostrei a meus ouvintes
que outro ponto que não tem permitido ao Brasil gozar do tão
necessário período longo de crescimento mais acelerado e
estável é o excessivo déficit em conta corrente de
nossa balança de pagamentos. A instabilidade no seu financiamento,
com alternância quase anual de períodos de bonança
e de crise, cria uma instabilidade destruidora na relação
real/dólar, incompatível com as decisões de longo
prazo no setor privado. Exportadores, importadores, devedores em moeda
estrangeira, contas fiscais e política monetária do BC são
os grandes perdedores nesse vaivém do valor externo de nossa moeda.
Na tentativa de diminuir
os movimentos bruscos da taxa de câmbio, o governo é obrigado
a manter os juros internos em níveis elevados e a emitir títulos
da dívida indexada em dólar de forma a permitir operações
de hedge cambial para o setor privado. Com isso, na busca de um ambiente
econômico mais estável, acaba contribuindo para o aumento
das incertezas sobre o comportamento futuro das atividades empresariais.
Nesse cenário, o vôo da galinha do crescimento econômico
é inevitável.
A redução
do déficit de nossa conta corrente precisa ser buscada com toda
energia nos próximos anos, principalmente via consolidação
do equilíbrio nas contas públicas e o aumento de nossas exportações.
Disse àqueles que estavam me ouvindo que isso seria o suficiente
no mundo abstrato do livre comércio entre as nações,
que nem os EUA do presidente Bush nem a União Européia seguem
em função de suas políticas de subsídios e
cotas de importação.
No mundo do senhor
Bush, de monsieur Bové e de Lula, mundo real em que o Brasil opera,
será
necessário que, além de controle da despoupança do
setor público, do aumento das exportações, o próximo
governo cuide também de reduzir importações em alguns
setores-chave -citei o da microeletrônica e o da química fina
como os mais importantes- com medidas de estimulo à produção
interna.
Tenho certeza de
que, quando deixei a sala em que havia falado por mais de uma hora, eu
tinha a forma de um gato da Alice, ou melhor, de um carneiro pink!
Luiz
Carlos Mendonça de Barros, 59, engenheiro e economista, é
sócio e editor do site de economia e política Primeira Leitura.
Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo
FHC).