Dossiebrasil
11 de maio de 2000

Editorial
O falso príncipe da sociologia
é o monarca dos 500 anos.
Alguns sinais permitem que se perceba se um presidente – e consequentemente seu governo - é ou não verdadeiramente comprometido com os valores mais caros de justiça, de igualdade e de humanidade, mesmo que seja lá no fundo da sua consciência.

Quando de sua primeira eleição, muitos dos incautos eleitores de FHC ainda argumentavam que seu passado de “sociólogo de esquerda” (os cientistas políticos conhecedores da obra garantem que esse esquerdismo era bastante relativo) era a garantia de que apesar de suas alianças espúrias com Toninho Malvadeza ou Maluf, ele tinha na verdade cartas na manga para, em algum momento decisivo, mostrar sua verdadeira cara e demonstrar para a nação que sua aproximação com a direita mais fascista, comprometida com o passado que ele tanto combatera era apenas uma manobra  que lhe teria permitido chegar ao poder para enfim, implantar no Brasil a justiça social que o país tanto merece. Em outras palavras, o que se dizia é que no fundo, bem lá no fundo, FHC não esquecera de suas convicções democratas e humanistas, e que apesar das aparências, um homem como ele só poderia ter como objetivo acabar com mazelas como o fisiologismo, a corrupção, a tortura, a violência policial, o desrespeito aos índios, enfim, todas essas heranças do passado colonial e do período militar, que impediam a construção de uma verdadeira nação independente, verdadeiramente democrática, politicamente transparente, culturalmente livre, economicamente igual e socialmente justa.

Pois bem, o tempo passou, e FHC perdeu todas as oportunidades que teve para demonstrar que seus incautos eleitores estavam certos. Ao longo de seus mandatos, os sinais que permitiriam aferir a consciência do presidente sociólogo se sucederam e em nenhum desses momentos ele demonstrou sua suposta verve democrata e de esquerda, essa suposta  vontade de mudar de campo e dar uma banana aos seus novos aliados de direita para direcionar de vez o seu governo rumo à esquerda. A compra de votos no Congresso para garantir sua reeleição (fartamente noticiada e comprovada até com gravações), conduzida à maneira de seu coleguinha Fujimori, foi talvez o mais condenável desses momentos.

Mas não foi o único. Há a maneira antidemocrática de FHC governar. Logo ele, o "sociólogo de esquerda", é recordista absoluto de Medidas Provisórias, cujo uso como instrumento de governo é explícitamente anticonstitucional. Como diz o jurista Bandeira de Melo (veja nesta edição), FHC tornou-se um monarca. Houve o episódio do SIVAM. Sabe-se lá quantos milhões manipulados para entregar para estrangeiros o controle da Amazônia. Houve também o tráfico de influência, com a participação do próprio presidente (em telefonemas que vieram à publico) para favorecer determinadas empresas no processo de privatização das telefônicas. Houve o descalabro da venda da Vale, com financiamento público do BNDES. Houve ainda a autoritária e truculenta relação estabelecida pelo seu governo com o MST, mostrando um total descaso com a questão agrária e a causa dos trabalhadores rurais, que culminou aliás com uma postura leviana face ao massacre de Eldorado dos Carajás (sob o comando de um governo do PSDB), que matou 19 trabalhadores sem-terra, e que a d. Ruth teve a ousadia de chamar de “incidente” no programa do Jô Soares. Um presidente com um passado e uma consciência de esquerda não teria se indignado contra isso? Não teria sido fulminante na sua reação para punir os responsáveis por atos de autoritarismo tão brutais quanto os da ditadura que ele antes combatia? 

Houve ainda os seguidos casos de vazamento de informações financeiras, em que se favoreceram banqueiros, filhos de ministro, gente da oligarquia econômica e política do país. Mais uma vez, o presidente-sociólogo fez pouco caso, manobrou para abafar a CPI dos bancos, temendo “respingos” sobre seu governo, comportando-se de maneira idêntica a qualquer um de seus antecessores nestes 500 anos de dominação e exploração. Houve as denúncias do Dossiê Caribe. Dizem os defensores do presidente que tratou-se de um dossiê sem provas. Mas os bancos das Ilhas Caimã sempre disseram que dariam todas as informações necessárias se o pedido partisse oficialmente do governo brasileiro. Alguma vez o governo fez pedido nesse sentido? Também ficamos sabendo que os grandes bancos do país não pagam nem nunca pagaram o Imposto de Renda. O que o nosso governo “de esquerda” fez contra esse descalabro da desigualdade no tratamento dado a ricos (os bancos) e pobres (o povo) ? Nada, como sempre. Os exemplos são muitos. Se avolumam de tal forma que soa demagógico demais FHC falar que tem “asco” da corrupção. Se tem asco, o que ele fazia, então, abraçado a Paulo Maluf em outdoor da campanha eleitoral para o governo do Estado em 98? Ou o “asco” só apareceu agora? O que é chocante no comportamento de FHC é a menira como reage às manifestações populares de descontentamento com tantos escândalos. É nhenhenhem, coisa de radicais, de fascistas. Mas o que incomoda é que invariavelmente NADA nunca é feito para averiguar e punir os responsáveis. Qual é, então, o compromisso ético do nosso presidente?

A maior oportunidade de FHC mostrar sua suposta consciência de esquerda surgiu agora. Ele é o presidente em exercício no momento histórico em que se relembram os 500 anos de dominação do Brasil. Um momento único que um verdadeiro homem de esquerda, um verdadeiro democrata, um humanista, do quilate de um Mandela, de um Allende, aproveitaria sem nenhuma dúvida para deixar sua marca e promover a reviravolta política, social e econômica que todos nós esperamos: dar dignidade aos poucos índios que sobraram após 500 anos de massacre; promover em definitivo a justiça racial (que passa pela equidade econômica); implantar uma ampla e justa reforma agrária, rompendo as relações arcaicas de dominação no campo; erradicar a corrupção endêmica que assola o país; salvar o meio ambiente brasileiro, nossa rica natureza, dizimada pela avareza do capitalismo e suas empresas devidamente protegidas pelos sucessivos governos; reverter o quadro de apartheid social, promovendo uma verdadeira distribuição da renda e políticas que não favoreçam apenas os poderosos, mas que permitam o acesso à dignidade da cidadania aos milhões de excluídos do nosso país.

Enfim, seria o momento certo, ao fazermos 500 anos do nosso “descobrimento”, para firmarmos frente ao mundo a definitiva imagem de um país que rompeu os laços do pensamento único globalizante, e foi buscar seu próprio caminho de igualdade e justiça, soltando enfim as amarras da dependência colonial. Infelizmente, temos que convir que FHC perdeu o bonde da história. Não será ele esse homem de esquerda, não será ele nosso Nelson Mandela.

Ao contrário, FHC utilizou escandalosamente este momento histórico para marcar sua postura arcaica e conservadora, à maneira tradicional de qualquer velho coronel. Para promover uma encenação teatral que homenagearia a versão oficial e vergonhosa do nosso “descobrimento”, mandou construir, através de seu fanfarrão (e suspeito) ministro do turismo, uma réplica da nau de Cabral, que custou aos cofres públicos a bagatela de 3,5 milhões de reais. A incompetência (ou malandragem?) foi tamanha que a nau não ficou pronta, impedida pela marinha de zarpar sob risco de afundar. Não teriam sido mais bem gastos esses mesmos 3,5 milhões se utilizados na causa dos índios, cujos protestos, talvez os mais legítimos deste momento histórico, foram truculentamente e autoritariamente calados por uma força policial digna dos tempos da ditadura? Atos como os que na calada da noite tentaram bloquear  caravanas de cidadãos que iam à Bahia protestar contra o governo, e que estavam dentro da mais perfeita ordem, não lembram o clima pesado dos anos de chumbo? 

FHC mostrou sua verdadeira consciência na virulência de sua reação. Chamou os brasileiros que se opõem a ele de fascistas. O general Cardoso elogiou uma força policial que chegou ao descalabro de agredir índios duramte um protesto público e pacífico(fato inédito até então) no dia dos 500 anos. Ao externar sua preocupação, dias antes das comemorações, com que a ação policial frente aos esperados protestos não resultasse em nenhuma morte, FHC chegou ao fundo do poço. Alguém pensou que era um arrobo de humanismo do nosso presidente-sociólgo, que repentinamente se lembrou do valor de uma vida? Não, apenas o medo que os “radicais” transformassem esse morto eventual em um novo mártir. Me desculpe o presidente, mas isso parece discurso de ditadorzinho de alguma Republiqueta das Bananas.

Mesmo que isso pese demais em seu enorme ego, FHC tem de se conscientizar que, definitivamente, nunca ficará para a história. Se a história lembrar dele, será ao lado de tantos outros falsos líderes, representantes da nossa oligarquia provinciana e dependente, que ao longo de 500 anos apenas contribuíram para a manutenção de um país marcado pela tremenda injustiça perpetrada por sua poderosa e asquerosa elite. 

Pois o último momento, o derradeiro sinal do destino para que FHC se tornasse um grande homem, a rara oportunidade de transformar os 500 anos de festejo do espetáculo capitalista no início de uma nova era de justiça e igualdade, ele já deixou passar. Duvido muito que ainda haja algum incauto disposto a acreditar na consciência esquerdista do falso príncipe da sociologia.

J.S.W.F
Dossiê Brasil