Alguns sinais permitem que se perceba
se um presidente – e consequentemente seu governo - é ou não
verdadeiramente comprometido com os valores mais caros de justiça,
de igualdade e de humanidade, mesmo que seja lá no fundo da sua
consciência.
Quando de sua primeira eleição,
muitos dos incautos eleitores de FHC ainda argumentavam que seu passado
de “sociólogo de esquerda” (os cientistas políticos conhecedores
da obra garantem que esse esquerdismo era bastante relativo) era a garantia
de que apesar de suas alianças espúrias com Toninho Malvadeza
ou Maluf, ele tinha na verdade cartas na manga para, em algum momento decisivo,
mostrar sua verdadeira cara e demonstrar para a nação que
sua aproximação com a direita mais fascista, comprometida
com o passado que ele tanto combatera era apenas uma manobra que
lhe teria permitido chegar ao poder para enfim, implantar no Brasil a justiça
social que o país tanto merece. Em outras palavras, o que se dizia
é que no fundo, bem lá no fundo, FHC não esquecera
de suas convicções democratas e humanistas, e que apesar
das aparências, um homem como ele só poderia ter como objetivo
acabar com mazelas como o fisiologismo, a corrupção, a tortura,
a violência policial, o desrespeito aos índios, enfim, todas
essas heranças do passado colonial e do período militar,
que impediam a construção de uma verdadeira nação
independente, verdadeiramente democrática, politicamente transparente,
culturalmente livre, economicamente igual e socialmente justa.
Pois bem, o tempo passou, e FHC perdeu todas
as oportunidades que teve para demonstrar que seus incautos eleitores estavam
certos. Ao longo de seus mandatos, os sinais que permitiriam aferir a consciência
do presidente sociólogo se sucederam e em nenhum desses momentos
ele demonstrou sua suposta verve democrata e de esquerda, essa suposta
vontade de mudar de campo e dar uma banana aos seus novos aliados de direita
para direcionar de vez o seu governo rumo à esquerda. A compra de
votos no Congresso para garantir sua reeleição (fartamente
noticiada e comprovada até com gravações), conduzida
à maneira de seu coleguinha Fujimori, foi talvez o mais condenável
desses momentos.
Mas não foi o único. Há
a maneira antidemocrática de FHC governar. Logo ele, o "sociólogo
de esquerda", é recordista absoluto de Medidas Provisórias,
cujo uso como instrumento de governo é explícitamente anticonstitucional.
Como diz o jurista Bandeira de Melo (veja nesta edição),
FHC tornou-se um monarca. Houve o episódio do SIVAM. Sabe-se lá
quantos milhões manipulados para entregar para estrangeiros o controle
da Amazônia. Houve também o tráfico de influência,
com a participação do próprio presidente (em telefonemas
que vieram à publico) para favorecer determinadas empresas no processo
de privatização das telefônicas. Houve o descalabro
da venda da Vale, com financiamento público do BNDES. Houve ainda
a autoritária e truculenta relação estabelecida pelo
seu governo com o MST, mostrando um total descaso com a questão
agrária e a causa dos trabalhadores rurais, que culminou aliás
com uma postura leviana face ao massacre de Eldorado dos Carajás
(sob o comando de um governo do PSDB), que matou 19 trabalhadores sem-terra,
e que a d. Ruth teve a ousadia de chamar de “incidente” no programa do
Jô Soares. Um presidente com um passado e uma consciência de
esquerda não teria se indignado contra isso? Não teria sido
fulminante na sua reação para punir os responsáveis
por atos de autoritarismo tão brutais quanto os da ditadura que
ele antes combatia?
Houve ainda os seguidos casos de vazamento
de informações financeiras, em que se favoreceram banqueiros,
filhos de ministro, gente da oligarquia econômica e política
do país. Mais uma vez, o presidente-sociólogo fez pouco caso,
manobrou para abafar a CPI dos bancos, temendo “respingos” sobre seu governo,
comportando-se de maneira idêntica a qualquer um de seus antecessores
nestes 500 anos de dominação e exploração.
Houve as denúncias do Dossiê Caribe. Dizem os defensores do
presidente que tratou-se de um dossiê sem provas. Mas os bancos das
Ilhas Caimã sempre disseram que dariam todas as informações
necessárias se o pedido partisse oficialmente do governo brasileiro.
Alguma vez o governo fez pedido nesse sentido? Também ficamos sabendo
que os grandes bancos do país não pagam nem nunca pagaram
o Imposto de Renda. O que o nosso governo “de esquerda” fez contra esse
descalabro da desigualdade no tratamento dado a ricos (os bancos) e pobres
(o povo) ? Nada, como sempre. Os exemplos são muitos. Se avolumam
de tal forma que soa demagógico demais FHC falar que tem “asco”
da corrupção. Se tem asco, o que ele fazia, então,
abraçado a Paulo Maluf em outdoor da campanha eleitoral para o governo
do Estado em 98? Ou o “asco” só apareceu agora? O que é chocante
no comportamento de FHC é a menira como reage às manifestações
populares de descontentamento com tantos escândalos. É nhenhenhem,
coisa de radicais, de fascistas. Mas o que incomoda é que invariavelmente
NADA nunca é feito para averiguar e punir os responsáveis.
Qual é, então, o compromisso ético do nosso presidente?
A maior oportunidade de FHC mostrar sua suposta
consciência de esquerda surgiu agora. Ele é o presidente em
exercício no momento histórico em que se relembram os 500
anos de dominação do Brasil. Um momento único que
um verdadeiro homem de esquerda, um verdadeiro democrata, um humanista,
do quilate de um Mandela, de um Allende, aproveitaria sem nenhuma dúvida
para deixar sua marca e promover a reviravolta política, social
e econômica que todos nós esperamos: dar dignidade aos poucos
índios que sobraram após 500 anos de massacre; promover em
definitivo a justiça racial (que passa pela equidade econômica);
implantar uma ampla e justa reforma agrária, rompendo as relações
arcaicas de dominação no campo; erradicar a corrupção
endêmica que assola o país; salvar o meio ambiente brasileiro,
nossa rica natureza, dizimada pela avareza do capitalismo e suas empresas
devidamente protegidas pelos sucessivos governos; reverter o quadro de
apartheid social, promovendo uma verdadeira distribuição
da renda e políticas que não favoreçam apenas os poderosos,
mas que permitam o acesso à dignidade da cidadania aos milhões
de excluídos do nosso país.
Enfim, seria o momento certo, ao fazermos 500
anos do nosso “descobrimento”, para firmarmos frente ao mundo a definitiva
imagem de um país que rompeu os laços do pensamento único
globalizante, e foi buscar seu próprio caminho de igualdade e justiça,
soltando enfim as amarras da dependência colonial. Infelizmente,
temos que convir que FHC perdeu o bonde da história. Não
será ele esse homem de esquerda, não será ele nosso
Nelson Mandela.
Ao contrário, FHC utilizou escandalosamente
este momento histórico para marcar sua postura arcaica e conservadora,
à maneira tradicional de qualquer velho coronel. Para promover uma
encenação teatral que homenagearia a versão oficial
e vergonhosa do nosso “descobrimento”, mandou construir, através
de seu fanfarrão (e suspeito) ministro do turismo, uma réplica
da nau de Cabral, que custou aos cofres públicos a bagatela de 3,5
milhões de reais. A incompetência (ou malandragem?) foi tamanha
que a nau não ficou pronta, impedida pela marinha de zarpar sob
risco de afundar. Não teriam sido mais bem gastos esses mesmos 3,5
milhões se utilizados na causa dos índios, cujos protestos,
talvez os mais legítimos deste momento histórico, foram truculentamente
e autoritariamente calados por uma força policial digna dos tempos
da ditadura? Atos como os que na calada da noite tentaram bloquear
caravanas de cidadãos que iam à Bahia protestar contra o
governo, e que estavam dentro da mais perfeita ordem, não lembram
o clima pesado dos anos de chumbo?
FHC mostrou sua verdadeira consciência
na virulência de sua reação. Chamou os brasileiros
que se opõem a ele de fascistas. O general Cardoso elogiou uma força
policial que chegou ao descalabro de agredir índios duramte um protesto
público e pacífico(fato inédito até então)
no dia dos 500 anos. Ao externar sua preocupação, dias antes
das comemorações, com que a ação policial frente
aos esperados protestos não resultasse em nenhuma morte, FHC chegou
ao fundo do poço. Alguém pensou que era um arrobo de humanismo
do nosso presidente-sociólgo, que repentinamente se lembrou do valor
de uma vida? Não, apenas o medo que os “radicais” transformassem
esse morto eventual em um novo mártir. Me desculpe o presidente,
mas isso parece discurso de ditadorzinho de alguma Republiqueta das Bananas.
Mesmo que isso pese demais em seu enorme ego,
FHC tem de se conscientizar que, definitivamente, nunca ficará para
a história. Se a história lembrar dele, será ao lado
de tantos outros falsos líderes, representantes da nossa oligarquia
provinciana e dependente, que ao longo de 500 anos apenas contribuíram
para a manutenção de um país marcado pela tremenda
injustiça perpetrada por sua poderosa e asquerosa elite.
Pois o último momento, o derradeiro
sinal do destino para que FHC se tornasse um grande homem, a rara oportunidade
de transformar os 500 anos de festejo do espetáculo capitalista
no início de uma nova era de justiça e igualdade, ele já
deixou passar. Duvido muito que ainda haja algum incauto disposto a acreditar
na consciência esquerdista do falso príncipe da sociologia.
J.S.W.F
Dossiê Brasil