O
processo de urbanização brasileiro
Falas e façanhas |
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Prefácio *
Em pouco mais de uma geração a partir dos meados deste século, o Brasil se transformou de um país predominantemente agrário em um país virtualmente urbanizado. Em 1950, tinha uma população de 33 milhões de camponeses --em crescimento-- com 19 milhões de habitantes nas cidades, ao passo que hoje tem a mesma população no 'campo' -agora diminuindo- mas a população urbana sextuplicou, para mais de 120 milhões. É claro que transformações quantitativas de tal magnitude implicam em transformações qualitativas de profundidade. O país, se não está inteiramente 'urbanizado', tem seguramente caráter preponderantemente urbano. As condições de produção nas áreas urbanas - nas 'cidades' - são agora as da virtual totalidade da economia e as condições de vida nas aglomerações urbanas são aquelas da maioria da população. Acima de tudo, as aglomerações urbanas constituem a base e o palco das transformações futuras da sociedade assim como de sua economia. O impacto da urbanização e planejamento Rapidez e intensidade têm caracterizado o processo de urbanização desde seus primórdios no último quartel do século passado. Escrevendo em 1970, quando São Paulo já havia se tornado o símbolo e epítome da urbanização no país, o geógrafo Juergen Langenbuch assim se referiu a seu crescimento no período 1874-1920:
Em mais vinte anos, alcançaria 1 300 000 habitantes... Mas se o ritmo da urbanização era explosivo já desde o século passado, é a partir do segundo quartel deste que a escala alcançada pela mesma começou a provocar iniciativas por parte do Estado e modificações na administração pública. Um dos resultados nesse sentido é o aparecimento de uma nova atividade governamental com a finalidade específica de tratar dessas entidades novas que estavam surgindo: as aglomerações urbanas. É o nascimento do planejamento e em particular, do planejamento urbano, cujos primórdios podem ser situados no Estado Novo - no advento do qual Otavio Ianni via, significativamente, a consolidação de "uma vitória importante ... da cidade sobre o campo".
Trinta anos mais tarde os planos urbanísticos e a atividade de planejamento no Brasil chegavam a seu auge, na década de sessenta-início de setenta. Recebiam, nessa época, um duplo estímulo: no plano das idéias, a produção efervescente da reconstrução pós-guerra principalmente na Europa; e no plano material, o reconhecimento governamental de que o processo de rápida urbanização em curso, que alcançava todo o Brasil, era definitivamente uma das transformções fundamentais da sociedade brasileira e requeria intervenção estatal, consagrando precisamente o que se denominou de planejamento urbano. Entendia-se por planejamento urbano o conjunto das ações de ordenação espacial das atividades urbanas que, não podendo ser realizadas ou sequer orientadas pelo mercado, tinham que ser assumidas pelo Estado, tanto na sua concepção quanto na sua implementação. Em sua época de ouro, foram elaborados grandes e às vezes grandiosos 'planos integrados de desenvolvimento' (os PDI) para todas as cidades brasileiras exceto aquelas poucas que ficavam à margem do surto de urbanização. Tais planos, mais por falta de critério de delimitação do campo do que seria 'planejamento urbano' do que por arroubos de ambição excessiva, abarcavam todos os aspectos possíveis e imagináveis da vida das cidades, desde obras de infraestrutura física à renovação e desenho urbanos, ordenação legal do uso do solo e paisagem urbana, até a provisão de serviços tão pouco espacial-específicos quanto saúde e educação pública. O estímulo governamental ao planejamento urbano manifestava-se de várias formas: se as cidades não eram obrigadas por lei (como viriam a ser mais tarde, pela Constituição de 1988) a ter seu plano de desenvolvimento, certamente não poderiam esperar obter financiamento para obras de infraestrutura se não o tivessem - e vários programas, a começar pela Planasa (Plano Nacional de Saneamento), ofereciam 'fundos' de urbanização na forma de crédito subsidiado. Foram criados vários órgãos a nível ministerial, com o SERFHAU (Serviço Federal da Habitação e Urbanismo, criado em 1964) à frente, para administrar os recursos alocados à atividade -os próprios planos eram financiados- e prestar assessoria às cidades menores cujos governos locais não saberiam nem o que exatamente era um 'plano urbanístico' e muito menos tinham condições de conhecer os meandros entre os fundos disponibilizados e os escritórios especializados, que por eles fariam os planos. A onda de planejamento local centralmente orquestrado com sua
desova
de planos de desenvolvimento integrado durou uma década, com
pico
na virada de sessenta para setenta. Mas em alguns anos começou a
se generalizar um crescente sentimento de frustração
quanto
aos planos: vistosos em sua concepção, pouco deles era
efetivamente
'implantado' e o crivo entre a 'teoria' e a 'prática' de
planejamento
(urbano) tornava-se tão gritante que não podia mais ser
ignorado.
Virou lugar-comum que os planos 'ficavam na prateleira' e os meados dos
anos '70 presenciaram a extinção
dos
planos integrados (sintomàticamente, o Serfhau
foi extinto em 1974). Por algum tempo, em uma
atitude
mais pragmática -e modesta-, elaboravam-se ainda planos
'setoriais'
-um sistema de saneamento, um programa habitacional ou um plano de
transportes-
mas, com o abandono do II PND em 1976,
o planejamento urbano perdeu todo o seu vigor e virtualmente cessou com
a recessão de 1982-3. Durante o
período
de recuperação/recessão alternadas de 1985
até hoje, o planejamento urbano chegou a ser promovido a
atividade
obrigatória pela Constituição de 1988, mas
permanece
restrito a iniciativas isoladas e anêmicas, que na melhor das
hipóteses
arrolam 'problemas' mas nem preconizam, e muito menos propõem
'soluções',
a não ser pífias, mas que amiúde simplesmente
procuram
desviar a atenção das áreas críticas do
processo
urbano, promovendo problemas falsos (como conservação da
natureza), intangíveis (como qualidade de vida) ou
inócuos
(como 'impacto ambiental'). O que é o processo urbano? Florestan Fernandes, 1976 "Prefácio à segunda edição" A revolução burguesa no Brasil O processo de urbanização teve início logo após a consolidação da nova nação-Estado quando da dominação dos movimentos separatistas e/ou republicanas que estouravam do Sul ao Norte com focos em Minas Gerais e o próprio Rio de Janeiro mas abrangendo um leque de províncias do Rio Grande do Sul ao Pará (1849). Completada o que Caio Prado Jr chamava de 'trajetória reacionária', e que assegurou a continuidade da formação social de origem colonial, elitista e patrimonialista, esta sociedade consolidada procedeu ao preparo da inevitável passagem do trabalho escravo ao trabalho assalariado. Logo em 1850 duas medidas fundamentais foram tomadas: a promulgação da Lei das Terras e a supressão de fato da importação de escravos. A primeira preparava a condição institucional da existência do trabalho 'livre', isto é, do trabalho assalariado: transformando a terra em propriedade privada, priva o trabalhador de seu meio de sobrevivência e que assim, para viver, é obrigado a vender sua força de trabalho e por seu preço - o salário - comprar seus próprios meios de sustento no mercado. A segunda medida livrava a nova relação de trabalho - o assalariamento - da competição da escravidão e com isso, acelerava sobremaneira a transição dessa para aquela. De fato, desprovida de sua fonte principal de reprodução - sua taxa de reprodução vegetativa sendo negativa -, nos 27 anos que seguiram a abolição do tráfego de negros, a população de escravos caiu de 2 500 000 em 1850 para 723 000 em 1887, enquanto a população do país crescia de 8 000 000 para 14 000 000 de habitantes, de modo que a proporção dos escravos caiu de um em cada três habitantes (31%) ao nível quase-desprezível de um em vinte (5%). Assim vingavam as bases lançadas em 1850 na acelerada implantação do trabalho assalariado como relação de produção predominante no país. Os trabalhadores desprovidos de seus meios de
subsistência afluíam
às cidades onde tornar-se-iam assalariados na
produção
e circulação de mercadorias. No processo, as cidades,
além
de começarem a crescer, iam perdendo suas características
enquanto contraponto ao campo, uma vez que incorporavam agora a
produção
de mercadorias, para se transformarem em aglomerações
urbanas.
A dicotomia campo-cidade ia desaparecendo. O trabalho assalariado
-vale dizer, o desenvolvimento do capitalismo-, industrialização
e urbanização não são apenas
inseparáveis
ou interrelacionados: são um só processo. Parafraseando
Marx,
pode se dizer que urbanização é o crescimento do
proletariado
... Nessa ótica, ambos os 'slogans': "São Paulo
não
deve parar" e seu anverso "São Paulo deve parar", referindo-se
ao
epítome nacional da urbanização, revelam-se
igualmente
inócuos, refletindo apenas a falta de compreensão da
natureza
do processo em questão. Para parar São Paulo, seria
necessário
reverter o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, nada menos. Os
dias
da vida edênica do país, do idílio exótico,
da natureza imutável, do tempo suspenso, enaltecida
também
em seu hino nacional, estavam contados. A sociedade continuaria uma
sociedade
de elite, mas também, uma sociedade capitalista, com sua
formação
social específica e que imprimiria suas características
sobre,
entre outras coisas, a vida urbana brasileira, diversa em sua
particularidade
da urbanidade de todos aqueles países -Inglaterra,
França,
Alemanha, Estados Unidos- de onde provém o 'pensamento' urbano
brasileiro.
O 'arquipélago' de territórios que compunham a economia
colonial
ia se transformando em algo como um espaço nacional sob a
pressão
da produção de mercadorias que requer um mercado
unificado,
mas o espaço era entrecortado por barreiras naturais e
artificiais,
retardando sua homogeneização e mantendo seu
caráter
fracionado. O Estado do Brasil era um Estado nacional, mas embargado
por
instâncias sub-nacionais e entraves funcionais
institucionalizados
que o fragilizavam e dele fizeram o 'gigante com pés de barro'.
A produção de uma compreensão/
interpretação
desse processo em sua especifidade só pode ser realizada
endògenamente
("O assunto de Colombo devia ser tratado por um americano"-enunciava
já
Machado de Assis), vale dizer, sem recurso à
importação
de idéias que inevitàvelmente se referem a processos
sociais
diversos do nosso. O que define uma agenda
não-desprezível,
pois que descrever, entender ou interpretar o processo de
urbanização
do Brasil implica na verdade, descrever, entender, interpretar a
natureza
de sua própria sociedade. Insuficiência crônica, ou a reprodução da escassez A par da natureza específica do processo urbano brasileiro, uma outra questão em aberto, enfatizada também pela exhaustão da onda planejamenteira, é qual a perspectiva de continuidade do processo urbano e que práticas a sociedade estará prestes a gestar para a organização de uma sociedade inteiramente urbanizada. A resposta a essa questão, como também àquela referente à natureza do processo urbano, reside no âmbito mais amplo da própria organização social: as perspectivas de evolução das eventuais crises, impasses ou dilemas da gestão urbana dependem inteiramente das perspectivas de desenrolar dos atuais processos de transformação da sociedade, ora em estado de quasi-ebulição. Em particular, as aglomerações urbanas terão saneamento mais acurado, transporte rápido de massas abrangente, transporte coletivo diversificado e de boa qualidade, redes adequadas de telefonia e de informações, áreas públicas e de lazer mais generosas e equipadas, serviços públicos acessíveis, ou patrimônio histórico respeitado e conservado e paisagem urbana condizente, se as transformações da sociedade os requererem, isto é, se a sociedade brasileira se livrar do lastro patrimonialista e dos entraves a seu desenvolvimento para entrar em um estágio de desenvolvimento fundado no aumento da produtividade do trabalho, que requer, enquanto necessidade histórica, uma elevação - sempre crescente - dos níveis de reprodução da força de trabalho e consequentemente, dos níveis de serviço das infraestruturas e serviços urbanos. Novos instrumentos de 'gestão' - práticas de
organização
espacial ao nível local - deverão nascer das novas
condições
técnicas e das novas práticas políticas
correspondentes
ao novo estágio - que ao nível da produção
social talvez possa ser caracterizado como intensivo, ou maduro, ou
tardio,
e que ao nível da re-produção social seguramente
tem
como uma de suas principais características a de ser urbano.
A gestão dos recursos ambientais, dos serviços
públicos,
a produção e regulamentação do uso do
espaço
urbano terão de se adaptar à evolução do
estágio
de desenvolvimento. Em última instância, a questão
que se coloca é quais os imperativos, aos níveis
institucional
e político, que decorrem dessa transformação, ou
mais
exatamente, das transformações na própria
sociedade
brasileira e em sua economia, transformações essas das
quais
o processo de urbanização faz parte. A resposta a essa
questão
será produzida pelas forças sociais em presença no
Brasil contemporâneo; a sua mera colocação
instrumenta,
no entanto, tomadas de posição individuais na
prática
diária da vida urbana - vale dizer, social. Se esta
coletânea
contribuir para tanto, através da interpretação da
natureza específica do processo urbano brasileiro, terá
atingido
seu objetivo. *
* Prefácio de Deák, Csaba e Schiffer, Sueli (Org, 1999) O processo de urbanização no Brasil Edusp, São Paulo |