Folha de S Paulo, 01.04.14:B-3
COMÉRCIO
Samuel Guimarães foi demitido por Lafer
do órgão de pesquisa do Itamaraty
Brasil só tem a perder
com a Alca, afirma embaixador
JULIA DUAILIBI
DA REPORTAGEM LOCAL
A Área de Livre Comércio das Américas,
a Alca, vai destruir o projeto de desenvolvimento autônomo e de construção
da sociedade brasileira. A política econômica atual aumenta
a dependência econômica em relação ao exterior.
Tais opiniões, que no debate atual poderiam ser chamadas de nacionalistas
e protecionistas, são defendidas com vigor pelo embaixador Samuel
Pinheiro Guimarães, 61, exonerado na semana passada da direção
do Ipri (Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais
do Itamaraty).
Para ele, a inserção brasileira
no processo de globalização é "no mínimo despreocupada",
além de prejudicial à industria nacional.
Suas opiniões acabaram por fazer com que
ele se tornasse o primeiro diplomata brasileiro a ser exonerado de sua
função, por discordar da posição oficial do
Ministério das Relações Exteriores.
Com base na nova norma que proíbe funcionários
do Itamaraty de se pronunciarem sobre política externa sem autorização
do ministério, conhecida como "lei da mordaça", o ministro
Celso Lafer demitiu-o do cargo há nove dias.
Advogado, com mestrado em economia pela Universidade
de Boston, Guimarães já foi conselheiro da embaixada do Brasil
na França, chefe do departamento econômico e chefe da divisão
econômica para a América Latina do Itamaraty antes de assumir
a direção do Ipri em 1995. É autor do livro "500 Anos
de Periferia".
Leia abaixo os principais trechos da entrevista
concedida à Folha por e-mail e fax.
Folha - O que o sr. acha da política
brasileira para a globalização?
Samuel Pinheiro Guimarães -
A política brasileira tem se caracterizado por uma inserção
no mínimo despreocupada no processo de globalização,
em busca de fugaz e ilusória "credibilidade" junto à comunidade
financeira internacional. Reduziram tarifas unilateralmente; não
controlaram os capitais especulativos; aceitaram investimentos estrangeiros
sem compromissos de tecnologia ou de exportação; abdicaram
de instrumentos de promoção de exportações
e finalmente aceitaram regras que limitam a autonomia da política
econômica. O resultado é um notável desequilíbrio
em conta corrente e a necessidade de captar cerca de US$ 30 bilhões
anuais e, com o desaquecimento da economia americana, surge a possibilidade
crescente de sérias dificuldades de pagamentos.
Folha - Na visão do sr. o Brasil
tem condições de derrubar as barreiras não-tarifárias
norte-americanas para os produtos brasileiros?
Guimarães - Os países
desenvolvidos, cuja média tarifária hoje em dia é
baixa, utilizam as barreiras não-tarifárias, complexas, dúbias
e arbitrárias, para defender setores frágeis de suas economias
e reestruturá-los. Esses setores, em geral, dispõem de ampla
força política e de representação no Congresso
americano, que vota e faz implementar sistemas de normas técnicas
fitossanitárias a que se agregam sistemas antidumping, de direitos
compensatórios e de subsídios amplos e complexos. Julgar
que será possível ao Brasil desarmar essa teia de proteção
americana a partir das negociações da Alca é simplesmente
ilusório e diversionista. Os EUA já declararam com franqueza
que sua legislação interna não está em jogo
nas negociações.
Folha - O Brasil seria o país que
mais teria a perder com a Alca?
Guimarães - O Brasil é
um dos poucos países latino-americanos com características
de território, de população, de recursos naturais,
de nível de desenvolvimento, de industrialização e
de tecnologia que teria condições de construir uma sociedade
verdadeiramente democrática, desenvolvida, próspera e justa,
com alto grau de autonomia. Que teria condições de participar
em pé de igualdade com as chamadas grandes potências no cenário
internacional, cada vez mais arbitrário, violento e concentrador.
Assim, as negociações da Alca tornariam impossível
este objetivo, ao limitarem a possibilidade de o Estado brasileiro desenvolver
as políticas comerciais, industriais e tecnológicas necessárias
à construção da economia brasileira e ao fortalecimento
de sua sociedade.