Folha de S Paulo, 02.03.14:B-2
OPINIÃO ECONÔMICA
Aço, Alca e hipocrisia
Paulo Nogueira Batista Jr.
O governo Bush está
sendo bastante criticado no Brasil. Nem sempre, porém, com justiça
e equilíbrio. Estamos perdendo de vista os inegáveis méritos
desse governo. Primeiro, defende os interesses dos EUA. Cumpre, portanto,
o seu papel. É verdade que falta uma certa sutileza ao presidente
Bush e a vários dos seus auxiliares mais importantes. É um
time que, de modo geral, não acredita muito na hipocrisia, contrariando
nesse particular uma antiga tradição anglo-americana.
Há quem defenda
a hipocrisia. La Rochefoucauld, por exemplo, lembrava que ela é
"a homenagem do vício à virtude". Não deve, portanto,
ser desprezada e condenada sem qualificações.
Por outro lado, leitor,
deve-se considerar que, do nosso ponto de vista, a escandalosa sinceridade
do governo Bush é uma vantagem importante, pois dificulta consideravelmente
a vida dos inúmeros e operosos porta-vozes e aliados dos EUA no
Brasil. Muitos deles recolheram-se a um silêncio tumular. Outros
tantos engrossam as fileiras dos críticos do unilateralismo e da
"inconsistência entre a prática protecionista e o discurso
liberal dos EUA". A cortina de fumaça da cooperação
internacional, do fim das fronteiras e da formação de uma
economia "global" era indispensável para a sua ação
eficiente aqui dentro. Graças a essas ilusões, foi possível
dar cobertura a decisões antinacionais e influenciar o rumo da política
econômica e internacional do Brasil nos últimos dez anos.
Agora, o jogo mudou.
Como fica, por exemplo, a Alca (Área de Livre Comércio das
Américas)? Por motivos que foram explicados mais de uma vez, nesta
coluna, ela nunca teve sentido do ponto de vista de um país como
o Brasil. A Alca sempre foi, essencialmente, um projeto dos EUA concebido
para atender interesses estratégicos dos EUA. Transformaria o Brasil
e o resto das Américas em uma extensão do território
econômico dos EUA.
Os seus defensores
no Brasil alegavam, contudo, que a Alca traria para os exportadores brasileiros
extraordinárias oportunidades de acesso ao grande mercado dos EUA.
Esse tipo de alegação perdeu muito da credibilidade que poderia
ter.
Nos últimos
meses, o Executivo e o Congresso dos EUA tomaram diversas iniciativas protecionistas
em áreas importantes para o Brasil. No que se refere à agricultura,
por exemplo, a Câmara de Representantes e o Senado votaram leis que
confirmam a intenção de manter um elevado nível de
subsídios à produção doméstica e à
exportação. Em recente visita ao Brasil, o republicano Larry
Combest, presidente da Comissão de Agricultura da Câmara,
declarou: "Vamos
seguir em frente com nossa responsabilidade e obrigação de
proteger o produtor de agronegócios americano. Se a única
maneira de elevar o comércio entre o Brasil e os EUA for tirar os
produtores americanos de seus negócios, então o aumento do
comércio não vai acontecer".
Como
se vê, nos EUA franqueza não é monopólio do
Executivo.
Cont/.
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Em dezembro, a Autorização
para Promover o Comércio ("Trade Promotion Authority", TPA, conhecida
anteriormente como "fast track authority") foi aprovada pela Câmara
dos EUA por apenas um voto. Essa TPA, arrancada a fórceps, concedeu
ao Executivo um mandato extremamente limitado para negociar uma nova rodada
da OMC (Organização Mundial do Comércio), a Alca e
outros acordos comerciais. A aprovação por um único
e escasso voto se deveu ao fato de que praticamente metade da Câmara
queria uma autorização ainda mais protecionista.
A TPA aprovada pela
Câmara impede, ou dificulta muito, concessões em quase todas
as áreas de interesse do Brasil. Se for confirmada pelo Senado,
como parece provável, o Brasil pouco ou nada poderá esperar
de positivo da negociação da Alca.
O programa de proteção
à siderurgia, anunciado pelo presidente Bush na semana passada,
foi o mais recente passo nessa escalada protecionista. O governo dos EUA
tem dito que foi "benevolente" com o Brasil. Explicou, também, que
as novas restrições às importações de
aço são fundamentais para que o Senado aprove a TPA.
No Brasil, esses
argumentos têm sido recebidos com merecido repúdio pela opinião
pública. As siderúrgicas brasileiras estão dando,
como diria Nelson Rodrigues, "arrancos triunfais de cachorro atropelado".
Os defensores da
Alca, dentro e fora do governo brasileiro, ficaram ainda mais desorientados.
Não sabem o que dizer e, muito menos, o que fazer. Seria interessante
percorrer os arquivos dos jornais dos últimos anos para recuperar
o que eles andaram prometendo aos brasileiros para justificar o perigoso
engajamento do país nas negociações relativas à
formação da Alca.
Algumas dessas figuras
não desistem, porém. O ministro das Relações
Exteriores, Celso Lafer, vem reagindo à agressiva movimentação
dos EUA com um cuidado excessivo. A sua última contribuição
ao anedotário diplomático brasileiro foi a sugestão
de que o Brasil poderia usar a Alca como "moeda de negociação"
para abrandar as restrições dos EUA à importação
de produtos siderúrgicos.
Veja, leitor, como
se contorce o chanceler brasileiro! Justificada inicialmente como fantástica
oportunidade de acesso ao mercado dos EUA, a Alca vai se transformando,
aos poucos e sutilmente, em algo distinto: um argumento para tentar reduzir
a incidência de novas investidas protecionistas dos EUA sobre o Brasil...
Paulo
Nogueira Batista Jr., 46, economista e professor da Fundação
Getúlio Vargas-SP, escreve às quintas-feiras nesta coluna.
É autor do livro "A Economia como Ela é..." (Boitempo Editorial).
E-mail
- pnbjr@attglobal.net
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