2002.3.14
.Internacionalidade.|..Política econômica

Uma (outra) aula de política econômica e de exterior
Dito
Folha de S Paulo, 02.03.14:B-2
OPINIÃO ECONÔMICA 

Aço, Alca e hipocrisia 
Paulo Nogueira Batista Jr.

O governo Bush está sendo bastante criticado no Brasil. Nem sempre, porém, com justiça e equilíbrio. Estamos perdendo de vista os inegáveis méritos desse governo. Primeiro, defende os interesses dos EUA. Cumpre, portanto, o seu papel. É verdade que falta uma certa sutileza ao presidente Bush e a vários dos seus auxiliares mais importantes. É um time que, de modo geral, não acredita muito na hipocrisia, contrariando nesse particular uma antiga tradição anglo-americana.

Há quem defenda a hipocrisia. La Rochefoucauld, por exemplo, lembrava que ela é "a homenagem do vício à virtude". Não deve, portanto, ser desprezada e condenada sem qualificações.

Por outro lado, leitor, deve-se considerar que, do nosso ponto de vista, a escandalosa sinceridade do governo Bush é uma vantagem importante, pois dificulta consideravelmente a vida dos inúmeros e operosos porta-vozes e aliados dos EUA no Brasil. Muitos deles recolheram-se a um silêncio tumular. Outros tantos engrossam as fileiras dos críticos do unilateralismo e da "inconsistência entre a prática protecionista e o discurso liberal dos EUA". A cortina de fumaça da cooperação internacional, do fim das fronteiras e da formação de uma economia "global" era indispensável para a sua ação eficiente aqui dentro. Graças a essas ilusões, foi possível dar cobertura a decisões antinacionais e influenciar o rumo da política econômica e internacional do Brasil nos últimos dez anos.

Agora, o jogo mudou. Como fica, por exemplo, a Alca (Área de Livre Comércio das Américas)? Por motivos que foram explicados mais de uma vez, nesta coluna, ela nunca teve sentido do ponto de vista de um país como o Brasil. A Alca sempre foi, essencialmente, um projeto dos EUA concebido para atender interesses estratégicos dos EUA. Transformaria o Brasil e o resto das Américas em uma extensão do território econômico dos EUA.

Os seus defensores no Brasil alegavam, contudo, que a Alca traria para os exportadores brasileiros extraordinárias oportunidades de acesso ao grande mercado dos EUA. Esse tipo de alegação perdeu muito da credibilidade que poderia ter.

Nos últimos meses, o Executivo e o Congresso dos EUA tomaram diversas iniciativas protecionistas em áreas importantes para o Brasil. No que se refere à agricultura, por exemplo, a Câmara de Representantes e o Senado votaram leis que confirmam a intenção de manter um elevado nível de subsídios à produção doméstica e à exportação. Em recente visita ao Brasil, o republicano Larry Combest, presidente da Comissão de Agricultura da Câmara, declarou: "Vamos seguir em frente com nossa responsabilidade e obrigação de proteger o produtor de agronegócios americano. Se a única maneira de elevar o comércio entre o Brasil e os EUA for tirar os produtores americanos de seus negócios, então o aumento do comércio não vai acontecer". Como se vê, nos EUA franqueza não é monopólio do Executivo.
 

Cont/. 
 

  

Internacionalidade

 

Em dezembro, a Autorização para Promover o Comércio ("Trade Promotion Authority", TPA, conhecida anteriormente como "fast track authority") foi aprovada pela Câmara dos EUA por apenas um voto. Essa TPA, arrancada a fórceps, concedeu ao Executivo um mandato extremamente limitado para negociar uma nova rodada da OMC (Organização Mundial do Comércio), a Alca e outros acordos comerciais. A aprovação por um único e escasso voto se deveu ao fato de que praticamente metade da Câmara queria uma autorização ainda mais protecionista.

A TPA aprovada pela Câmara impede, ou dificulta muito, concessões em quase todas as áreas de interesse do Brasil. Se for confirmada pelo Senado, como parece provável, o Brasil pouco ou nada poderá esperar de positivo da negociação da Alca.

O programa de proteção à siderurgia, anunciado pelo presidente Bush na semana passada, foi o mais recente passo nessa escalada protecionista. O governo dos EUA tem dito que foi "benevolente" com o Brasil. Explicou, também, que as novas restrições às importações de aço são fundamentais para que o Senado aprove a TPA.

No Brasil, esses argumentos têm sido recebidos com merecido repúdio pela opinião pública. As siderúrgicas brasileiras estão dando, como diria Nelson Rodrigues, "arrancos triunfais de cachorro atropelado".

Os defensores da Alca, dentro e fora do governo brasileiro, ficaram ainda mais desorientados. Não sabem o que dizer e, muito menos, o que fazer. Seria interessante percorrer os arquivos dos jornais dos últimos anos para recuperar o que eles andaram prometendo aos brasileiros para justificar o perigoso engajamento do país nas negociações relativas à formação da Alca.

Algumas dessas figuras não desistem, porém. O ministro das Relações Exteriores, Celso Lafer, vem reagindo à agressiva movimentação dos EUA com um cuidado excessivo. A sua última contribuição ao anedotário diplomático brasileiro foi a sugestão de que o Brasil poderia usar a Alca como "moeda de negociação" para abrandar as restrições dos EUA à importação de produtos siderúrgicos.

Veja, leitor, como se contorce o chanceler brasileiro! Justificada inicialmente como fantástica oportunidade de acesso ao mercado dos EUA, a Alca vai se transformando, aos poucos e sutilmente, em algo distinto: um argumento para tentar reduzir a incidência de novas investidas protecionistas dos EUA sobre o Brasil...


Paulo Nogueira Batista Jr., 46, economista e professor da Fundação Getúlio Vargas-SP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela é..." (Boitempo Editorial).

E-mail - pnbjr@attglobal.net
 
 
 

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