Folha de S Paulo,
02.4.17:A5
JANIO DE FREITAS
A
nova aventura
A maior e mais original aventura de Hugo Chávez
não é a que se propôs com a "revolução
bolivariana pacífica e democrática", incluídos o golpe
e contragolpe, é a que vai começar.
Muitos têm tentado instituir um regime capaz
de alguma justiça social, todos afinal derrotados, exceto só
Fidel Castro, por golpes em que se associaram o empresariado rico e militares
por eles seduzidos. Não é com Fidel Castro e suas concepções,
aliás, que mais se parecem as pretensões e os métodos
institucionais até aqui usados por Hugo Chávez. É,
sim, com o grupo de militares liderado no Peru pelo general Alvarado, que
introduziu nova modalidade institucional e reformas profundas na estrutura
social peruana, com o fim comum a todos os bem-intencionados: o golpe seguido
da reversão, à força, de todas as inovações
sociais ainda destruíveis.
Chávez inicia um processo de responsabilização
de militares pelo golpe e de complacência, pretensamente cativante,
com a parcela do empresariado que conduziu sua derrubada. Já o efêmero
presidente do golpe, Pedro Carmona, recebe de Chávez o privilégio
da prisão domiciliar, que nenhum ladrãozinho da rua recebe.
E Carmona decretou o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal e se
pôs como líder civil da insurreição sangrenta.
A imprensa e o telejornalismo da Venezuela nunca
mereceram maior consideração, sempre instrumentos de interesses
dos setores mais anti-sociais, não só venezuelanos. Esse
arremedo de jornalismo teve participação tão importante
no golpe quanto os militares, como criador, em longo trabalho, do clima
de desestabilização do próprio país. No domingo,
os jornais sustaram sua distribuição, surpreendidos na madrugada
pelo retorno de Chávez e dos outros contra os quais eram feitas
as mais demolidoras acusações e pedidas as mais drásticas
providências.
Chávez pretende fazer-se aceito, no pós-golpe,
a partir da complacência com os setores que puseram os militares
a seu serviço, como é usual nos golpes latino-americanos.
Mas, simultaneamente, pretende levar adiante suas reformas sociais. É
a fórmula do impasse. E, portanto, da autodestruição.
A elite econômica da Venezuela tem sido
terrivelmente intolerável com qualquer concessão à
massa imensa de vida na dificuldade e na pobreza. Mas não há
como conceder padrões menos sórdidos à pobreza, na
Venezuela e em qualquer país de renda superconcentrada, sem reduzir
o que a elite econômica aufere, nos seus ganhos exorbitantes e posses
ilimitadas. E mexer nisso é, comprova toda a história latino-americana,
atrair golpe.
De outra parte, o potencial de Chávez passou
a depender ainda mais da grande massa, que lhe deu 60% dos votos na eleição
presidencial e cuja reação, agora, ativou os militares antigolpistas
para restaurar os poderes constituídos. Atender a essa massa é
atrair a ação contrária dos fortes instrumentos da
elite econômica, mas não lhe dar o que espera é perdê-la
como sustentáculo.
Mesmo aqui, a mídia faz o jogo da elite
econômica venezuelana e da mídia americana, sempre contrária
a toda tendência de reformas sociais e de afirmação
de soberania nacional, logo batizada de nacionalismo com sentido pejorativo.
Toda a mídia brasileira afirma que Chávez fracassou nas suas
promessas de reforma, porque em três anos o povo pobre continuou
pobre e a Venezuela continuou enfrentando dificuldades econômicas,
inclusive internacionais.
É muito compreensível para esse
mesmo jornalismo, no entanto, que Fernando Henrique Cardoso considere necessários
oito anos de crescente desemprego e empobrecimento, de multiplicação
da dívida governamental por dez, de falta de crescimento econômico,
oito anos de desmentido a todas as suas promessas em duas campanhas eleitorais,
tudo isso só em nome de manter a inflação razoavelmente
baixa -e a um custo para o país e para a população
que só em décadas será pago, se puder sê-lo.
Mas deveria desempobrecer mais de 15 milhões em menos de três
anos.
Chávez poderia ser o pior dos atuais presidentes
latino-americanos, e está longe disso, mas condená-lo pelo
impossível, ou por ser amigo de Fidel Castro, ou porque Luiz Inácio
Lula da Silva o visitou e com ele foi fotografado, isso não é
decente da parte de quem a tudo tolera no Brasil.
O único tratamento adequado a golpistas,
para o presidente que pretenda sobreviver, é a plenitude da lei.
Não é preciso agir como a direita e seus militares, que substituem
a lei por assassinatos, tortura, perseguição e exílio
aos que o consigam em tempo. Mas um golpe fracassado nunca é um
golpe extinto. O exemplo mais notório, para citar ao menos um, é
o de Salvador Allende: em junho de 73 houve uma tentativa abortada de golpe,
em setembro Allende estava morto e o poder passava a quem mais o traíra,
Pinochet.