Folha de S Paulo, 01.11.18:B-18
EVERARDO MACIEL
A reforma tributária
de FHC e o colapso fiscal
A sonegação fiscal, em países
emergentes, é a maior distorção produzida pelos impostos
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Destaques
Privilegiando as importações
A possibilidade de uma política a nível nacional
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Foi feita, de forma silenciosa, talvez a maior
reforma tributária da renda de pessoas jurídicas da história
brasileira
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EVERARDO MACIEL
ESPECIAL PARA A FOLHA
Poucos temas frequentam com tanta assiduidade a agenda política
brasileira contemporânea quanto a reforma tributária. De igual
modo, poucas matérias são tratadas com tanta imprecisão
e equívocos quanto ela.
Reforma tributária parece, em certos momentos, um desaguadouro
para o qual convergem demandas por simplificação tributária,
conflitos intrafederativos, propostas de transposição de
soluções adotadas em outros países, reclamos por uma
mais efetiva justiça distributiva, exercícios de experimentalismo
tributário, indignações pela assimetria entre o pagamento
de impostos e a realização do gasto público, queixas
contra o tamanho da carga tributária, dissimuladas tentativas de
facilitar a evasão e a elisão fiscais, propósitos
sinceros de corrigir desigualdades regionais, de estimular as exportações,
de robustecer a competitividade da economia nacional etc. etc. etc. Nesse
contexto, com raras e honrosas exceções, abundam proposições
conflituosas, pouco ou mal elaboradas, sem nenhum compromisso com o indispensável
realismo fiscal e amparadas tão-somente em exercícios abstratos
que passam ao largo de simulações com dados efetivos.
Ficções fiscais
É verdade que só recentemente se tornaram disponíveis
informações tributárias confiáveis, seja porque
o processo de inflação crônica que precedeu a adoção
do Plano Real convertia em ficções numéricas as escassas
estatísticas tributárias, seja porque as declarações
de impostos (mormente os federais) eram pouco informativas e processadas
em ritmo extremamente lento. Essa circunstância representava uma
extraordinária restrição à realização
de pesquisas e à elaboração de propostas na área
tributária.
Algumas questões que informam o debate tributário merecem
atenção especial: o tamanho da carga tributária, a
demanda por isonomia tributária entre produção doméstica
e importações e distorções econômicas
geradas por tributos do sistema tributário brasileiro.
Crescem gastos e impostos
É inequívoco que, nos anos recentes, houve um aumento
significativo na carga tributária brasileira (de algo ao redor de
24%, no início da década passada, para cerca de 33% em 2000).
Pondere-se que parte desse aumento é atribuível à
cobrança de tributos passados, com exigibilidade suspensa em virtude
de ações judiciais ou simplesmente sonegados pela inércia
da máquina arrecadadora, à adoção de instrumentos
mais eficazes de fiscalização e à eliminação
de brechas fiscais. Entretanto, essa explicação não
é suficiente para esclarecer a elevação da carga tributária.
Houve, sem lugar a dúvidas, aumento de alíquotas e alargamento
das bases de cálculo.
Resta apontar a verdadeira motivação do crescimento da
carga tributária: expansão significativa do gasto público.
A carga tributária cresce não por movimentos autônomos
de impostos, mas por exigências decorrentes do expansionismo da despesa
pública. É simplismo focar o tema apenas pela ótica
tributária. A matéria deve ser remetida ao domínio
da política fiscal: a uma visão integrada de arrecadação
de tributos e realização do gasto público.
Colapso fiscal
No caso específico brasileiro, as explicações
para expansão do gasto público apontam na direção
das políticas monetária e cambial, das políticas sociais
vinculadas ao modelo de Estado sancionado na Constituição,
das políticas públicas concorrentes associadas a um imperfeito
e contraditório desenho de federalismo fiscal etc. Aqui não
se faz um juízo de valor sobre esses gastos, mas apenas um registro
sobre os riscos do colapso fiscal, com inspiração demagógica,
que resultaria de uma política de redução de carga
tributária que desconsidere uma reformulação profunda
do gasto público. Ainda que óbvia, essa conduta prudencial
é convenientemente omitida nas discussões sobre carga tributária.
Privilegiando
as importações
Críticos do sistema tributário
brasileiro assinalam o tratamento oneroso dispensado pelas contribuições
sociais à produção doméstica vis-à-vis
sua não incidência nas importações. Realmente,
a importação não constitui fato gerador do PIS e da
Cofins, ao contrário do que ocorre em relação à
receita bruta das empresas brasileiras. Tal descompasso, é claro,
compromete francamente a desejada isonomia tributária, privilegiando
as importações. |
À luz dessa evidência é que
o Executivo encaminhou ao Congresso Nacional, em agosto de 2000, proposta
de emenda constitucional que prevê a incidência das contribuições
sociais nas importações e, por consequência, elimina
a desigualdade de tratamento tributário. Infelizmente,
o projeto ainda não conseguiu prosperar, em virtude de inesperadas
reações políticas, precisamente daqueles setores da
sociedade que perfilhavam a tese de isonomia. Isso serve para demonstrar
que o debate sobre matéria tributária pode tomar rumos imprevisíveis,
ditados por razões fortuitas ou motivos
insondáveis. |
A possibilidade de uma política a nível nacional
O desvio da sonegação
A literatura de finanças públicas é farta em exemplos
de distorções econômicas provocadas por impostos. O
que não se ressalta, contudo, é que esses exemplos presumem
contexto em que inexiste ou é pouco relevante a sonegação.
Essa, entretanto, não é a realidade dos países emergentes.
Nesses países, parodiando conhecido aforismo, pode-se dizer que
feito o imposto, feita a sonegação.
Ao contrário das distorções econômicas decorrentes
da adoção de certos impostos, são raros os registros,
na literatura especializada, dos efeitos perversos da sonegação.
Vejamos, todavia, alguns exemplos. Haverá alguma distorção
econômica maior, na tributação dos cigarros, do que
o descaminho nas exportações que, no Brasil, estabelece a
competição entre produtos com diferencial de preços
da orcem de 65%? Pode-se imaginar distorção de mercado maior
do que a que foi vista, recentemente, no setor de combustíveis,
por força da sonegação de impostos? Existirá
forma melhor de levar à ruína a indústria brasileira
que submetê-la à competição com o subfaturamento
ou o descaminho nas importações?
A sonegação, dirão alguns, se enfrenta com fiscalização
e medidas punitivas. Em países emergentes, essa é uma verdade
parcial. Não bastam fiscalização e medidas punitivas,
é indispensável que a concepção do imposto
já previna, tanto quanto possível, sua própria sonegação.
Impostos complexos, por exemplo, são terreno fértil para
a evasão fiscal, para não falar na elisão. A sonegação,
nessas circunstâncias, deve merecer tratamento preventivo, antes
que curativo.
Ao fim e ao cabo, o que se pretende afirmar é que a sonegação,
em países emergentes, é a maior das distorções
econômicas produzidas por impostos, de longe superior a qualquer
outra. Por conseguinte, a providência primeira que se deve ter, no
exame dos sistemas tributários desses países, é o
potencial de sonegação presente na própria concepção
do imposto, confrontado com os instrumentos à disposição
dos órgãos de fiscalização e a tradição
tributária do país. Impostos que não funcionam são
incapazes de prover recursos fiscais e geram enormes desequilíbrios
competitivos. Enfim, não servem.
Reforma tributária
Retomemos o tema da reforma tributária. É necessária
a reforma tributária? Já foi feita? Deve ser feita? É
impossível fazê-la? O que fazer? Como fazer? Quando fazer?
São todas perguntas razoáveis.
Lembremos que as bases tributárias clássicas
são renda, patrimônio e consumo. Uma reforma tributária,
quando requerida, deve especificar seus objetivos em relação
a cada uma dessas bases.
Em 1995, uma missão, constituída pelo Departamento de
Assuntos Fiscais do Fundo Monetário Internacional e integrada por
especialistas de notório reconhecimento internacional, ao examinar
o IRPJ brasileiro, assinalou de forma concisa e peremptória: "...
o Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas, no Brasil, é demasiado
complexo...". Nada tão objetivamente verdadeiro. Esses mesmos especialistas,
quatro anos depois, em outro trabalho, afirmavam: "...depois de uma surpreendentemente
bem-sucedida reforma na tributação do Imposto de Renda das
Pessoas Jurídicas...". Talvez, também, verdadeiro.
O que se fez no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, em
matéria de reforma tributária da renda? Eliminou-se a correção
monetária dos balanços (certamente a melhor explicação
da complexidade do imposto de renda das pessoas jurídicas). Foram
reduzidas as alíquotas marginais. Vinculou-se a compensação
de prejuízos à realização de lucros. Uniformizou-se
o tratamento tributário entre empresas financeiras e não-financeiras
(inclusive em relação à Cofins, ao PIS e à
Contribuição Social sobre o Lucro Líquido). Integrou-se
o IRPJ com o IRPF (mediante isenção dos lucros e dividendos
distribuídos). Estabeleceu-se a tributação em bases
mundiais e dos preços de transferência. Fixou-se, de forma
inédita em todo mundo, um tratamento discriminatório em relação
aos paraísos fiscais. Instituiu-se o conceito de juros remuneratórios
do capital próprio com tributação equiparada ao de
juros de empréstimos. Adotou-se um regime de tributação
das aplicações no mercado financeiro equivalente ao fixado
para os resultados oriundos dos investimentos nas atividades produtivas.
Ampliaram-se as possibilidades de opção pelo regime de tributação
do lucro presumido. Instituiu-se o Simples (regime especial de tributação
integral das pequenas e microempresas). Tudo em nome de um projeto de reforma
gradual e permanente que se compadece com a racionalidade, a coerência
econômica, a simplicidade, a neutralidade tributária.
Fez-se, de forma silenciosa, provavelmente, a maior reforma tributária
da renda das pessoas jurídicas da história brasileira, conduzindo
o país à condição de paradigma internacional.
Tecnologia tributária
Mas a reforma não se esgotou em mudança da legislação.
Envolveu uma profunda mudança nas tecnologias utilizadas para o
cumprimento das obrigações tributárias (o Brasil tornou-se
não apenas pioneiro, mas líder internacional inconteste em
matéria de utilização da internet nas relações
entre o fisco e o contribuinte), e o aperfeiçoamento dos instrumentos
de fiscalização (expansão e qualificação
dos profissionais e utilização de tecnologias sofisticadas).
Os resultados foram compensadores. A arrecadação cresceu,
a sonegação caiu, melhorou a relação entre
fisco e contribuinte.
Em relação ao Imposto de Renda das Pessoas Físicas,
as mudanças foram todas orientadas no sentido de racionalizar e
simplificar a declaração, além de prevenir a evasão
e tornar a legislação previsível. O livro "Tributação
de Renda no Brasil Pós-Real" pretende registrar as mudanças
recentes no Imposto de Renda. Contar motivações, expor idéias,
relatar resultados. Falar pela voz dos que fizeram -obra coletiva dos que
integram a Secretaria da Receita Federal, desde os que concebem aos que
executam. Falar, também, pela voz dos que ouviram -advogados, economistas,
contadores e tributaristas, cuja avaliação livre é
incorporada a esse livro sob a forma de comentários. Tudo para que
se saiba o que é (e o que não é). Para que desse confronto
honesto possa o leitor fazer seu juízo, o legislador aperfeiçoar
ou mudar, e o Estado servir melhor ao cidadão.
É o fim da história, em matéria de reforma tributária?
Não.
Fez-se algo em relação à tributação
do patrimônio? Tanto quanto necessário, na proporção
exata da importância dessa base tributária em matéria
de arrecadação, em qualquer outro país. Ao menos,
na área federal, as alterações no Imposto sobre a
Propriedade Territorial Rural (ITR) aproximaram-no mais em relação
aos seus objetivos extrafiscais (uso compatível com a política
ambiental, punição da propriedade improdutiva, restrições
ao latifúndio).
O problema do ICMS
E quanto à tributação do consumo? Pouco se fez.
Desde o começo, há um erro. Pensou-se que o ICM, na década
de 60, seria um sucedâneo do IVC e, portanto, um imposto de titularidade
estadual. Não deveria ser, mas foi. Temos,
a partir de então, um enorme problema. Passamos a ser, hoje, a única
exceção, em todo mundo, que dispõe de imposto sobre
o consumo, em regime de valor agregado, cuja titularidade é cometida
a uma entidade subnacional -no caso, os Estados.
As consequências são dramáticas:
como conciliar a política nacional de exportações
com os interesses da arrecadação estadual? Como efetivar
o princípio do destino nas operações interestaduais?
Como uniformizar a legislação no âmbito nacional? como
assegurar a uniformidade de alíquotas por produtos ou classes de
produtos? Como prevenir a guerra fiscal?
A solução para tudo isso é
óbvia: instituição de um Imposto sobre Valor Agregado
(IVA) federal. Óbvia, entretanto inviável,
porque
reclama a refundação do federalismo brasileiro, com exigências
políticas insuperáveis.
Conforta-nos
admitir a possibilidade de mudanças simples, conquanto importantes:
unificação das alíquotas, regulamento único,
eliminação da guerra fiscal mediante vedação
de incentivos fiscais de qualquer gênero. Esse
é o escopo de proposta de emenda constitucional
encaminhada, em junho de 2001, ao Congresso. Por ora, nada se sabe
de seu destino. Esse, contudo, é outro capítulo -de outro
livro, talvez. |
Privilegiando as importações
Everardo Maciel é secretário da
Receita Federal. O texto acima é a apresentação do
livro "Tributação de Renda no Brasil Pós-Real" (vários
autores), que será lançado em Brasília no dia 20 de
novembro, na abertura de um seminário sobre política tributária
que irá marcar o aniversário de 32 anos da Receita.
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