Folha de S Paulo, 2002.5.9 B2
OPINIÃO ECONÔMICA
A
Alca e o mito do isolamento
PAULO
NOGUEIRA BATISTA JR.
"Em dez anos, o mundo
estará dividido em quatro blocos: o asiático, o pan-americano,
o europeu e o bloco dos excluídos. Se não se posicionar em
relação à Alca, o Brasil corre o risco de liderar
este último", declarou recentemente o presidente da Câmara
Americana de Comércio de São Paulo, Álvaro de Souza.
A afirmação
é questionável. Não há qualquer indicação
de surgimento de um bloco asiático e é duvidoso que um bloco
pan-americano possa se formar com a exclusão do Brasil. Mas o interessante
nesse tipo de afirmação é que ela explora
habilmente uma vulnerabilidade bem característica da psicologia
brasileira: o pânico de ficar "isolado".
Mas a verdade, leitor,
é que os defensores da Alca estão em apuros. Apelam cada
vez mais para argumentos falaciosos ou emocionais. Querem
predispor a opinião pública brasileira a acreditar na seguinte
disjuntiva simplista: ou aderimos à Alca, com todos os seus problemas
e restrições, ou ficaremos "à margem do mundo", isolados
na América e limitados na nossa capacidade de exportar.
Os EUA, entretanto,
nada fazem para facilitar a vida dos seus porta-vozes e defensores no Brasil
e no resto da América Latina. Ao contrário, continuam dando
abundantes e descaradas demonstrações de que não acreditam
no livre comércio.
O mais recente sinal
foi a aprovação, pela Câmara de Representantes, da
"farm bill", que ampliou generosamente os subsídios à agricultura.
Menosprezando os protestos de outros países, o deputado Larry Combest,
presidente do Comitê de Agricultura da Câmara, declarou que
a nova lei agrícola é "para a América rural, e não
o México rural, o Canadá rural ou a Europa rural". Evidentemente,
será agora ainda mais difícil superar as tradicionais resistências
dos agricultores europeus à diminuição da proteção
e dos subsídios de que desfrutam.
Esvazia-se assim
completamente o argumento (que sempre foi bastante ridículo) de
que, na Alca e nas negociações com a União Européia,
o papel do Brasil seria concentrar-se em sua suposta vocação
agrícola, oferecendo amplas concessões em áreas como
bens industriais, serviços, propriedade intelectual, investimentos
estrangeiros e compras governamentais em troca do livre acesso aos mercados
agrícolas dos EUA e da Europa.
Chegou o momento
de reavaliar, sem inibições, a estratégia de negociação
comercial que o Brasil vem seguindo. A não participação
do Brasil em uma eventual Alca ou em uma zona de livre comércio
com a União Européia não nos condena à introversão
e não nos impede de continuar ampliando as nossas exportações
para esses e outros mercados.
A expansão
do comércio internacional não pressupõe o livre comércio,
isto é, a remoção completa -ou quase completa- das
barreiras tarifárias e não-tarifárias. Afinal, as
três maiores potências econômicas do planeta, os EUA,
a União Européia e o Japão, que mantêm forte
e crescente inter-relacionamento comercial, nunca tiveram acordos de livre
comércio entre si.
Tampouco tem cabimento
a idéia de que não participar da Alca nos deixaria isolados
na América. Como notou o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães,
a maioria dos países das Américas não compete de forma
significativa com o Brasil nos mercados norte-americanos. Os países
que poderiam concorrer mais fortemente conosco, o Canadá e o México,
já estão no Nafta (Acordo de Livre Comércio da América
do Norte) e a criação da Alca não modificaria a sua
posição competitiva.
Se o temor é
que uma Alca sem o Brasil nos levaria à perda de mercados sul-americanos
para exportações norte-americanas, nada impede que o governo
brasileiro negocie acordos de livre comércio com países vizinhos,
sem ter de assinar acordo semelhante com os EUA. Para os países
sul-americanos, o Brasil é um mercado muito importante, às
vezes mais importante do que os EUA. Nenhum desses países teria
interesse em se isolar do Brasil, lembra o embaixador (ver Samuel Pinheiro
Guimarães, "Brasil não precisa da Alca para ser globalizado",
www.agenciacartamaior.com.br).
Está ficando
cada vez mais claro que o governo Fernando Henrique Cardoso enredou o país
em negociações comerciais altamente problemáticas.
É uma parte
importante da pesada herança econômica que terá de
ser suportada pelo próximo governo.
Paulo
Nogueira Batista Jr., 47, economista, pesquisador visitante do Instituto
de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-SP.