Como é recente, leitor, o passado remoto! Escrevendo
em 1811, no "Correio Braziliense", o pai do jornalismo brasileiro, Hipólito
da Costa, referiu-se nos seguintes termos ao governo português, então
sediado no Brasil: "Os ministros portugueses, quando (...) sacrificam os
interesses de sua pátria, desculpam-se sempre com o capcioso subterfúgio
de dizer que a nação (...) não pode resistir às
grandes potências. (...) É meramente uma capa com que procuram
encobrir a sua ignorância e o não saberem manejar os negócios
de que se encarregam".
Passaram-se quase dois séculos, mas o subterfúgio continua
o mesmo. A cada momento, os ministros brasileiros referem-se à "correlação
de forças" (leia-se: o poder dos EUA) para tentar justificar as
suas atitudes subalternas. Em todos os ministérios relevantes, pululam
figuras especializadas em construir carreiras confortáveis à
custa do interesse nacional.
Lembro as palavras do grande Hipólito da Costa a propósito
das negociações da Alca (Área de Livre Comércio
das Américas). Por incrível que possa parecer, e a despeito
dos sinais claríssimos de que os EUA estão cada vez mais
protecionistas e menos dispostos a fazer concessões, as negociações
continuam.
Na semana passada, reuniões na Venezuela definiram alguns pontos
importantes relativos à Alca. As negociações prosseguem
nos dias 12 e 13 de maio, no Panamá. Aproveitando-se da fraqueza
e da covardia da maioria das lideranças latino-americanas, os EUA
forçam a continuação dos entendimentos nos temas do
seu interesse.
Ao mesmo tempo, o Executivo e o Congresso dos EUA vão estabelecendo,
sem a menor cerimônia, restrições mais severas ao comércio
internacional e novas medidas de defesa das suas empresas contra a concorrência
estrangeira. No final da semana passada, por exemplo, o Senado e a Câmara
dos EUA anunciaram um acordo para ampliar os já elevados subsídios
aos agricultores norte-americanos ao longo dos próximos seis anos.
No curto prazo, um dos objetivos dos negociadores
dos EUA na Alca é criar o maior constrangimento possível
para o governo brasileiro que será eleito no final deste ano.
Nas reuniões na Venezuela, estabeleceu-se que os países integrantes
de uma eventual futura Alca terão que entregar até 15 de
janeiro de 2003 (15 dias depois da posse do novo governo brasileiro) as
suas propostas de liberalização de mercados em cinco áreas
cruciais: bens industriais, agricultura, serviços, compras governamentais
e investimentos diretos estrangeiros. Estabeleceu-se, também, que
as tarifas de importação de referência para a abertura
comercial serão aquelas que estiverem em vigor em 15 de janeiro
de 2003 ou as que forem consolidadas na OMC (Organização
Mundial do Comércio) até fins de 2004, prevalecendo as que
forem mais baixas.
Decididamente, o próximo governo brasileiro não terá
muito tempo para respirar. Tanto mais que as metas dos EUA são,
segundo se noticia, extremamente ambiciosas. No que diz respeito, por exemplo,
a investimentos, os EUA querem que seja concedido igual tratamento ao capital
estrangeiro e ao capital nacional. Quanto a compras governamentais, a pretensão
norte-americana é que as regras da Alca se apliquem não só
em nível federal mas também aos governos estaduais e municipais.
Não podemos perder de vista, leitor, que isso tudo está
acontecendo depois que a Câmara de Representantes dos EUA concedeu
ao Executivo, em fins de 2001, um mandato negociador muito limitado, que
praticamente retira da negociação da Alca todos os principais
temas de interesse do Brasil, como já foi explicado em artigos anteriores
publicados nesta coluna.
E ninguém, no governo brasileiro, parece
fazer a pergunta óbvia: o que é
que o Brasil ainda está fazendo nessa mesa de negociações?
Não é verdade que o Brasil não possa defender
decentemente os seus interesses. Mas, como dizia Hipólito da Costa,
se os nossos representantes têm razão em dizer que a nação
não pode sustentar a sua independência, então "deixem
de ser Governo Soberano e metam-se debaixo da tutela de alguma potência".
Paulo Nogueira Batista Jr., 47, economista,
pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e
professor da FGV- SP