|
Máquina
de crescimento
João Sette Whitaker Ferreira
A teoria da "Máquina de Crescimento Urbano" surgiu pela primeira vez em paper individual de Harvey Molotch, "The
city as a growth machine", em 1976, e foi retomada uma década depois com a colaboração de John Logan, no livro "Urban
Fortunes: the political economy of places".
Para Logan e Molotch, a cidade, além de um espaço da acumulação do capital, é também um espaço para
se viver, o que cria uma outra dimensão de conflitos sociais, também relacionada com aqueles entre capital/trabalho, mas mais intensamente ligada ao cruzamento dos interesses pelo valor de troca (o espaço como mercadoria capitalista) e o valor de uso (o espaço como lugar de se viver, como um bem
consumido). Logan e Molotch baseiam sua abordagem na constatação de que o ativismo humano é intenso nas cidades – norte-americanas,
foco
de suas análises – em torno de questões relativas à preservação de elementos ligados à qualidade de vida e dos espaços para seu uso. Assim, cria-se um campo de conflito entre aqueles que vêem o espaço como uma mercadoria lucrativa (os proprietários), e os que o vêem como um suporte para uma vida de qualidade e de relações sociais humanizadas e mais solidárias. Por isso, os autores dão especial atenção às estratégias e necessidades dos agentes humanos e de suas instituições na defesa de cada um desses interesses, em um conflito definido da seguinte forma:
"Pessoas que
sonham, planejam e se organizam para fazer dinheiro a partir da propriedade são agentes através
dos quais a acumulação
faz seu trabalho
no âmbito urbano. Grupos sociais que
se mobilizam contra
essas manipulações
encorpam os esforços humanos pela afeição, comunidade,
e subsistência.
Os limites
de nossa sociologia urbana
se desenham em torno
do espaço
de encontro (geográfico e analítico) entre esses dois campos
de confronto" (Logan&Molotch, 1987:12)
Essa disputa é também muito bem resumida por Arantes:
"A 'tese' em questão nada mas é ... do que uma explicitação
da contradição recorrente entre o valor de uso que o lugar representa para os seus habitantes e o valor de troca com que ele se apresenta para aqueles interessados em extrair dele um benefício econômico qualquer, sobretudo na forma de uma renda exclusiva". (Arantes, 2000:25)
Não se trata entretanto de fazer uma análise puramente comportamental, como o fez a Escola de Chicago , que Logan e Molotch criticam com ênfase. Mesmo assim, os autores observam, em uma ótica também behaviorista, que na mediação do conflito que apontam, as pessoas tendem a fazer coalizões e a organizar-se, e os lugares são espaços vitais para essas relações, e não somente uma base para um sistema econômico (Logan & Molotch, 1987:9).
À medida que coalizões são mais fortes, conseguem impor seus objetivos e apropriar-se do espaço, que não se conforma portanto naturalmente apenas como conseqüência de uma "lei de mercado".
Segundo Logan e Molotch, como a busca de valores de troca marca historicamente as cidades dos EUA, ela acaba impondo-se sobre a dimensão do valor de uso. Os autores mostram então que, na história das grandes cidades estadunidenses, o que eles identificam como "classes rentistas" sempre se organizaram em coalizões envolvendo proprietários fundiários, políticos locais, mídia, agências de serviços públicos, setores sindicais, instituições culturais como museus e universidades, equipes esportivas, comerciantes, enfim, todos aqueles que tinham algo a ganhar com o "crescimento" da cidade. O poder político dessas coalizões torna as cidades verdadeiras "empresas
devotadas ao crescimento
da renda agregada através
da intensificação
do uso
do solo urbano". Essa seria a "máquina de crescimento urbano".
Otília Arantes resume a idéia da máquina de crescimento da seguinte forma:
"...coalizões
de elite
centradas na propriedade imobiliária e seus
derivados, mais
uma legião
de profissionais caudatários
de um amplo arco
de negócios
decorrentes das possibilidades econômicas dos lugares,
conformam as políticas
urbanas à medida em que
dão livre curso
ao seu propósito
de expandir a economia local e aumentar a riqueza.
... No coração
dessas coalizões,
a classe rentista de sempre, hoje
na vanguarda
dos 'movimentos urbanos': incorporadores, corretores, banqueiros,
etc., escorados por um séqüito
de coadjuvantes igualmente
interessados e poderosos, como a mídia,
os políticos, universidades, empresas esportivas, câmaras
de comércio
e, enfim, nossos dois personagens
desse enredo
de estratégias:
os planejadores urbanos e
os promotores
culturais" (Arantes, 2000:27).
Portanto, segundo Logan e Molotch, existem agentes poderosos na condução dessas coalizões entre setores privados e o poder público por outro, para "conformar as políticas urbanas" em torno de um “consenso pelo crescimento”, tomado como um objetivo inquestionável de modernização e
sucesso das cidades. Como coloca Ana Cristina Fernandes (2001:36),
os autores dão especial atenção "aos 'interesses velados', aqueles não publicamente
defensáveis, dos promotores e outras frações das elites urbanas e do governo da cidade", em que se destaca a
participação do Estado: "estruturas políticas são
mobilizadas para intensificar o uso
do solo em benefício
do setor privado" (1987:16). Isto porque as intenções das classes rentistas se harmonizam com as necessidades do poder público, ambas interessadas no consenso pelo "crescimento". Esta é a essência da questão: a "máquina
de crescimento"
é, antes
de tudo, um fantástico instrumento
de canalização
dos fundos públicos em favor
de uma apropriação privada
dos ganhos que
o espaço
propicia. Nesse processo, o líder político local, como a personificação possível de uma figura que funde proprietário fundiário, empresário, empreendedor imobiliário
e governante, passa a ter um papel de destaque na liderança da "máquina de crescimento". A ele se associam, geralmente, as elites urbanas interessadas nos ganhos que esta irá promover.
Logan e Molotch
construíram sua teoria baseados em uma exaustiva observação histórica do processo de formação das grandes cidades norte-americanas, no qual abundam episódios com tais coalizões, geralmente centralizadas em torno de uma liderança política local forte. Entre os inúmeros exemplos, citam o caso de Chicago, que tinha uma população de menos de 4000 habitantes em 1835, ano em que chega William Ogden, que se tornaria com os anos prefeito, proprietário imobiliário
de peso, organizador e primeiro presidente da empresa de trens Union Pacific.
Como desbravador da linha de ferro, em combinação com seus outros negócios e seus cargos cívicos, Ogden tornou-se capaz de "fazer
de Chicago (como
uma 'obrigação pública')
a encruzilhada da América" (Logan & Molotch,
1987:54). Para os autores, a essas elites era dada a possibilidade de produzir a cidade conforme seus interesses, provocando
valorização fundiária, trazendo enormes lucros pessoais e favorecendo o "crescimento" de suas cidades, para o
"bem" de todos.
A abordagem de Logan e Molotch torna-se mais interessante ainda quando atualizada para o novo contexto econômico
pós-reestruturação produtiva (ou pós-exaustão do modelo de Bretton Woods) , no qual a idéia do “crescimento” se traduz na política de competitividade entre cidades pela atração dos importantes capitais financeiros
globalizados .
A transposição
dessa teoria para a realidade urbana brasileira é possível, mas deve ser cercada de cuidados. Para uma interpretação “brasileira” da teoria, ver FERREIRA, 2003.
Referências
LOGAN,
John e MOLOTCH, Harvey; "Urban
Fortunes: the political economy of place", University of California
Press, 1987.
JONAS,
Andrew e WILSON, David; "The urban
growth machine: critical perspectives two decades later",
Albany: Estate University of New York Press, 1999
FERREIRA, João Sette
Whitaker; “São Paulo: o mito
da cidade-global”, Tese de Doutorado, São Paulo: FAUUSP,
2003.
ARANTES, Otília B., MARICATO, Ermínia e
VAINER, Carlos; "O Pensamento Único
das Cidades:
desmanchando consensos”, Petrópolis: Ed. Vozes,
Coleção Zero à Esquerda, 2000.
FERNANDES, Ana Cristina;
"Da reestruturação corporativa à
competição entre cidades: lições urbanas
sobre os ajustes de interesses globais e locais no capitalismo
contemporâneo", in Espaço & Debates, nº41, ano
XVII, NERU, São Paulo, 2001. |