Folha de S Paulo, 2002.5.19 B2
OPINIÃO ECONÔMICA
Olho
neles
RUBENS
RICUPERO
Não é
de minha índole fazer denúncias, mas sinto-me
no dever de alertar os membros do Congresso
e os candidatos que acaso me leiampara grave
fato que está sendo tramado nas negociações da Alca,
sem que a opinião nacional conheça os detalhes e suas implicações
irreversíveis.
De mão
beijada
Em recente passagem
pelo Brasil, soube que os negociadores brasileiros
receberam instruções para aceitar como ponto de partida nas
negociações tarifárias não, como é usual,
o nível da tarifa consolidada na OMC, mas o nível efetivamente
cobrado pelo país. Para compreender
o que isso significa, é bom que se saiba que todo país se
obriga, na OMC, a não ultrapassar um certo patamar na tarifa aplicada
a cada produto. É essa obrigação legal, que não
pode ser violada, que se chama de tarifa consolidada -em inglês "bound",
ou "amarrada". Na prática, contudo, os governos com frequência
reduzem a tarifa por razões de conveniência, conservando a
consolidada como válvula de segurança. A utilidade de tal
procedimento viu-se recentemente confirmada pelo ocorrido no auge da crise
argentina, quando o ministro Cavallo, não podendo mexer no câmbio,
elevou todas as tarifas de importação argentinas até
o máximo consolidado na OMC, que, no caso, era de 35%. Esperava,
assim, aliviar o rombo na balança comercial. É óbvio
que a base normal das negociações tem de ser a tarifa consolidada,
a única com existência legal e imutável, enquanto a
tarifa praticada pode variar ao sabor das circunstâncias. Por pressão
dos americanos, propôs-se, todavia, na Alca, adotar a tarifa efetivamente
praticada em determinada data, e o Brasil, para espanto dos negociadores
experimentados, aceitou isso -o que quer dizer, por exemplo, que, ao negociar
a redução de tarifas em produtos que tenhamos consolidado
no pico, em lugar de partir de 35% (justamente os produtos que queremos
ou precisamos proteger mais), seremos forçados a começar,
digamos, de 12% ou 10%. Em outras palavras, estamos
entregando de mão beijada (lembram-se do famoso gesto atribuído
a Mangabeira durante a visita do general Eisenhower?) de 23 a 25 pontos
percentuais!
pPooderíamos
até compreender essa complacência submissa se navegássemos
em mar de rosas, como a China, que tem polpudos saldos comerciais e, no
balanço de pagamentos, opulentas reservas, nada tendo a temer da
volatilidade financeira internacional, dos perversos humores das agências
de avaliação de crédito ou dos mercados estrangeiros.
Será necessário provar que é exatamente o contrário
o que nos caracteriza?
Outra hipótese
para justificar a docilidade acomodatícia seria os nossos principais
parceiros, os norte-americanos, estarem emitindo claros sinais de que se
dispõem a abrir-nos as portas do seu mercado ao aço, ao suco
de laranja, ao açúcar, ao etanol, às carnes e ao tabaco,
isto é, aos produtos em que somos indiscutivelmente competitivos
em preço e qualidade.
Ora, é precisamente
o oposto o que se dá no momento em que, a cada semana ou quinzena,
somos bombardeados por novos atentados ao livre comércio. Primeiro,
foram as salvaguardas contra o aço, que paralisam o crescimento
da participação do Brasil em nosso principal mercado. Em
seguida, foi a vez da lei agrícola, cujos subsídios de dez
anos de duração garantem a perpetuação da concorrência
desleal contra a soja, o açúcar, o etanol, os sucos, o tabaco
e o algodão. Dias atrás, a emenda aprovada no Senado à
TPA (Trade Promotion Authority) excluiu efetivamente das negociações
na Alca ou na OMC qualquer correção ou atenuação
dos instrumentos de defesa comercial (antidumping, direitos compensatórios,
salvaguardas) de que temos sido uma das vítimas privilegiadas desde
os anos 60 e 70 (calçados, têxteis, aço etc.). Para
não me acusarem de exagero, lembro que a primeira autoridade americana
em comércio internacional, o sr. Robert Zoellick, assinou com seus
colegas da Secretaria de Agricultura e de Comércio carta alertando
o Senado de que, na eventualidade de ser aprovada a emenda, ver-se-iam
forçados a recomendar ao presidente que vetasse a TPA. Esta já
vinha viciada da Câmara com dispositivo sem precedentes, obrigando
os negociadores americanos a tortuoso e complicado procedimento de consultas
a numerosas comissões da Câmara e do Senado para inviabilizar
qualquer redução na proteção de que gozam os
produtos mais sensíveis. Em número de 297 são aqueles
em que os EUA consolidaram a menor diminuição possível
na Rodada Uruguai (15% ao longo de seis anos). Incluem todos os produtos
de interesse prioritário para o nosso país (os listados acima).
A Comissão de Finanças do Senado aumentou ainda a lista para
340 itens.
Paciência
e determinação
Diante disso, quando
me perguntam se devemos nos retirar das negociações ou abrirmos
mão do mercado externo, respondo que não, que temos de continuar
a negociar com boa-fé, paciência e determinação,
na esperança de que, passado o ano eleitoral, os americanos retornem
a suas melhores tradições. Não podemos esquecer, sob
pena de cometer grave injustiça, que, fora os casos discutidos,
felizmente limitados, os EUA continuam a ser um dos mercados mais abertos
do mundo. Exceto, desgraçadamente, nas áreas onde se concentra
nossa restrita competitividade. Só podemos esperar, porém,
modificar essa posição se defendermos nossos interesses de
forma decidida, como fizemos na Rodada Uruguai. Naquela ocasião,
por duas vezes, em Montréal (1988) e em Bruxelas (1990), interrompemos
o processo negociador ao nos negarmos a compactuar com um resultado que
excluía qualquer avanço em agricultura. Todos hoje reconhecem
que, se não fosse isso, mesmo a magra colheita daquela rodada não
se teria materializado. É por isso que não entendo por que
estamos cedendo sem ganhar nada em troca, comprometendo a possibilidade
de arrancar concessões na base da firmeza, como fazem os americanos.
E o Congresso
Nacional?
Nesse quadro, por
que se omite o Congresso Nacional? Por que, a exemplo do seu congênere
do Norte, não faz uso de suas prerrogativas para acompanhar a negociação,
antes que seja tarde? E os candidatos saberão acaso que, duas semanas
após a posse do novo presidente, haverá reunião da
Alca na qual todas essas decisões se tornarão irreversíveis?
O que tencionam fazer a respeito? E o presidente Fernando Henrique Cardoso
estará ciente de que seus principais auxiliares na direção
das negociações estão a impor aos negociadores posições
que violam o espírito e a letra do seu corajoso discurso de Québec?
Olho neles
Não sei se
minhas perguntas encontrarão resposta -e desde já me penitencio
se for provado que estou errado. Mas, lembrando a expressão de que
gostam os nossos vizinhos, permito-me recomendar "ojo" ou, em vernáculo,
olho
nos que impõem aos negociadores posições que nos condenam
à derrota enquanto é tempo de
salvar a prata da casa, se é que nos deixaram alguma.
FolhaSP,
4.2.15
A Alca ficou chata
E
como ficou chato ser moderno,
Agora
serei eterno.
O debate monotemático
sobre a Alca ganhou ares tão estridentes e redundantes que me provoca,
confesso, o mesmo tédio de Drummond. Sinto dificuldade em ler, por
dever de ofício, certas coisas que se publicam, pois é difícil
imaginar que alguma luz possa nacer de tanta superficialidade e ligeireza.
A não ser que seja no sentido com que Guerra Junqueiro se referia
à sebenta Coimbra do seu tempo: "Esta
universidade, para dar um pouco de luz, só mesmo se lhe atearem
fogo".
...
Cria-se a impressão
de que tudo depende dessas negociações quando o que elas
podem fazer é, no máximo, gerar oportunidades. Aproveitá-las
estará condicionado a múltiplos fatores, que se podem reduzir
a três grupos: 1) câmbio; 2) capacidade de oferta; 3) baixo
custo de transação, incluídos impostos, transporte,
seguro, portos, burocracia.
A diferença
entre as negociações e as demais categorias é que
as primeiras dependem de algo que não controlamos: a vontade alheia,
dos governos estrangeiros. Nosso controle sobre o resto não é
exclusivo, mas é bem maior do que no caso das negociações.
Só por isso seria lógico atribuir atenção pelo
menos equivalente ao que está no nosso alcance.