Folha de S Paulo, 2002.5.22 B2
ELIO
GASPARI
Dóceis,
acomodados, complacentes e submissos
O que aconteceria
se o analista Reuben Rescue, da casa bancária Bergdorf & Goodman
previsse dificuldades no comércio exterior brasileiro, por conta
da "docilidade acomodatícia" do futuro governo nas negociações
com os outros países do Mercosul?
Ou se o secretário-geral
do FMI denunciasse a "complacência submissa" do mesmo futuro governo
com as reivindicações dos sindicatos de trabalhadores?
Certamente o dólar
tomaria um tapinha e o risco Brasil subiria uns 20 pontos.
Felizmente, a casa
Bergdorf & Goodman só vende roupas (caras como uma propina de
privatização), o FMI não tem secretário-geral
e as duas adjetivações nada tem a ver com os riscos que o
mundo enxerga no Brasil do próximo governo.
Infelizmente, ambas
têm a ver com o verdadeiro risco Brasil, aquele que o atual governo
impõe aos interesses nacionais.
No último
domingo, num artigo na Folha, Rubens Ricupero,
secretário-geral da Conferência das Nações Unidas
sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), acusou o governo de ter
instruído os negociadores brasileiros que discutem a agenda da Alca
(Área de Livre Comércio das Américas) com os Estados
Unidos para praticarem tanto a "docilidade acomodatícia" quanto
a "complacência submissa".
Disse isso de peito
aberto, com todas as letras. Se tivesse dito ao telefone e alguém
o tivesse grampeado, estaria no centro de um escândalo nacional.
Como não fala em nome da banca, é brasileiro e expressa suas
opiniões em público, recebeu um desgraçado silêncio.
O assunto é
chato, mas muito mais relevante do que a repetição de banalidades
como "exportar é a solução". No interesse da qualificação
do debate nacional, aqui vai um resumo deselegante da denúncia de
Ricupero.
Os negociadores
brasileiros que estão conversando com os americanos foram instruídos
pelo governo para aceitar como ponto de partida nas negociações
tarifárias os níveis praticados pelo país.
Isso em vez de começar a conversa com as tarifas comprometidas junto
à Organização Mundial do Comércio.
Ricupero explicou
essa chatice muito direitinho. Um país pode importar comida de gato
cobrando 8% sobre o valor da mercadoria, ao mesmo tempo em que demarca
um teto tarifário de 25% junto à Organização
Mundial do Comércio. Numa dessas, os 10 milhões de desempregados
existentes no país resolvem aderir à comida de gato, as importações
do Chef's Blend sabor salmão triplicam e desequilibra-se a balança
comercial. O governo tem à mão o recurso legítimo
de elevar a tarifa do produto, por exemplo, para 25%.
Componente
elementar de soberania econômica
A capacidade de
mudar a tarifa da comida de gato, dos tecidos e dos automóveis,
respeitando o compromisso assumido na OMC é um componente elementar
de soberania econômica. Seu oposto é uma das características
de uma relação colonial. Nada a ver com protecionismo, diria
o sábio George W. Bush, depois de elevar as tarifas comerciais do
seu interesse eleitoral e/ou nacional.
A instrução
dada aos negociadores brasileiros entrega, "de mão beijada" (na
palavras de Ricupero) o direito do Brasil de negociar os seus interesses,
coisa que os americanos fazem muito bem.
Ricupero pediu ao
Congresso, aos candidatos a presidente e à torcida do Romário
que lhe dêem atenção. Talvez o Congresso e os candidatos
passem batidos, mas será a torcida do Romário quem perderá
seus empregos se o Brasil vier a ser transformado num "duty-free".
Quando o embaixador
fala em "complacência submissa" e "docilidade acomodatícia"
sabe o que diz. Além de estar na praça há mais de
40 anos, quando formou-se como primeiro da turma no Itamaraty, foi embaixador
nos Estados Unidos e ministro da Fazenda. Já viu casos inexplicáveis
de submissão explícita, quase sempre resultante da complacência
submissa de negociadores que ora não querem trabalhar, ora não
conseguem, porque não há no governo quem lhes dê instruções
relacionadas com a defesa do interesse nacional. Isso tudo, mais uma mordaça
que mantém seletivamente calados os funcionários do serviço
diplomático brasileiro.
Há alguns
anos um cacique da ekipekonômica dizia que "criar barreiras tarifárias
é coisa de país subdesenvolvido". Seria conveniente que essa
mesma nata de sábios ligasse para a Casa Branca e repetisse a pontificada
ao presidente Bush.
Para quem não
consegue ouvir as reclamações de Ricupero por padecer de
alguma forma de deficiência auditiva, a repartição
tem um número especial: 202-456-6213.