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Estatuto
da cidade
João Sette Whitaker Ferreira
O 'modelo' de desenvolvimento brasileiro , baseado em forte concentração da renda e em uma segregação
sócio-espacial conseqüentemente significativa, fez com que a espoliação urbana (usando o conceito de Lúcio Kowarick) se
tornasse, já em meados da década de 70, a principal característica
dos grandes centros urbanos do país. Ainda em pleno regime militar, os excluídos do “milagre brasileiro” começaram a se mobilizar em torno da questão urbana, multiplicando os movimentos de reivindicação pela regularização dos
loteamentos clandestinos, pela solução para a falta de acesso à terra e à moradia, pela oferta de serviços públicos adequados, por infra-estrutura urbana nas favelas e nas periferias distantes, etc. Iniciava-se um processo de
mobilização social significativo, que passou a ser conhecido como o movimento pela Reforma Urbana.
Um primeiro resultado dessa mobilização
se deu em 1979, com a aprovação da Lei 6766, que regulava o parcelamento do solo e criminalizava o promotor de loteamentos irregulares. Na Constituinte de 1988, 130.000 eleitores subscreveram a Emenda Constitucional de Iniciativa Popular pela Reforma Urbana, e com isso conseguiram inserir na Constituição Federal os artigos 181 e 182, que introduzia o princípio da função social da propriedade urbana , e estabelecia alguns instrumentos urbanísticos, como o IPTU Progressivo, supostamente capazes de dar ao Poder Público melhores condições de regular a produção e apropriação
do espaço urbano segundo critérios mais democráticos e socialmente justos.
Tais artigos, no entanto, ainda precisavam ser regulamentados. E apesar do agigantamento dos problemas urbanos brasileiros, seriam necessários 11 anos de espera para que o capítulo da reforma urbana da nossa constituição – o Estatuto da Cidade – fosse definitivamente aprovado.
O Estatuto estabelece a necessidade de mecanismos de gestão democrática e participativa das cidades, por exemplo oficializando a obrigatoriedade do Orçamento Participativo. E regulamenta instrumentos legislativos de controle do uso e ocupação do solo e de
regularização fundiária que podem dar aos Poderes Públicos Municipais uma nova possibilidade de resgatar para o benefício da sociedade a valorização
provocada por seus próprios investimentos em infra-estrutura urbana, e de frear a retenção especulativa de imóveis vazios em áreas urbanas (embora o Estatuto por si só não garanta a
efetivação da ação estatal mais necessária para a
democratização do solo urbano, que seria a proliferação homogênea da oferta de infra-estrutura por toda a cidade).
Entre vários exemplos desses instrumentos, há o que promove a edificação ou utilização compulsórias de terrenos ou imóveis urbanos não edificados ou não utilizados; o Imposto Predial e Territorial Urbano-IPTU progressivo no tempo e a subseqüente desapropriação com títulos públicos de imóveis sem uso há mais de 5 anos; o direito de preempção, que dá ao Poder Público prioridade na compra de qualquer imóvel urbano em determinada área; as Zonas Especiais de Interesse Social
- ZEIS, que se destinam à provisão, sob legislação especial, de habitações populares. Vários instrumentos dizem respeito à
regulamentação de áreas ocupadas ilegalmente, como o usucapião de imóvel urbano (para terrenos privados ocupados há mais de 5 anos) ou a concessão de uso especial para fins de moradia (para terrenos públicos ocupados). Destaca-se ainda a exigência de Estudos de Impacto
Ambiental ou de Vizinhança, que visam controlar os grandes empreendimentos imobiliários.
Mas é importante destacar que o Estatuto da Cidade atrela os novos instrumentos à existência de uma Plano Diretor Municipal, o que por um lado é importante, já que trata-se de problemas urbanos cuja solução é de âmbito local, mas por outro faz com que mais uma vez sua regulamentação definitiva sofra o risco de tramitar por uns bons anos nas câmaras municipais. Além disso, muitos dos instrumentos citados podem, no momento de sua regulamentação no
município, sofrer interpretações variadas, sendo que alguns deles, introduzidos no Estatuto no bojo de negociações parlamentares entre vários grupos políticos no Congresso Nacional, acabam tendo um sentido oposto aos objetivos democráticos do Estatuto. As Operações
Urbanas , por exemplo, que estabelecem a possibilidade de parcerias entre o Poder Público e a Iniciativa Privada na
urbanização da cidade, são um perigoso instrumento de reafirmação do primado absoluto do mercado. A elaboração dos Planos Diretores Municipais poderá ou não evitar interpretações que contemplem exclusivamente os interesses de lucros privados, fazendo “sumir” os efetivos avanços sociais do Estatuto. Nesse sentido, a mobilização da
sociedade em cada município torna-se fundamental.
Referência
WHITAKER, João e
MARICATO,
Ermínia (2001) "Estatuto da cidade: essa lei vai pegar?” Correio da Cidadania Nº 272,
7-14 de julho.
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