O Estado
tem duas formas de intervir no espaço
construído: provendo a infraestrutura
e regulando o uso e
ocupação do espaço resultante. “Instrumento urbanístico” diz respeito ao segundo caso, e é
o termo utilizado para referir-se ao conjunto de ações legalmente possibilitadas ao Poder Público para intervir nos processos urbanos e especialmente na produção do espaço,
regulamentando, controlando ou direcionando-a. É um mecanismo dado ao Estado para
capacitá-lo a conduzir a relação dialética entre Estado e mercado, base da produção do espaço da cidade.
Qualquer
intervenção no espaço que se utilize
de ferramentas legais elaboradas com esse intuito, vale-se de ’instrumentos urbanísticos‘.
Mais comumente, o termo refere-se aos
instrumentos de controle do uso e ocupação do solo, como as leis de zoneamento, os Planos Diretores, os incentivos fiscais, as normas edilícias e construtivas, etc.
Os instrumentos
urbanísticos podem ser considerados mais ou menos “interventores” no sentido que podem correponder
a maior ou menor poder ao Estado para disciplinar os
processos de produção e reprodução
individuais que se desenvolvem na cidade. Entretanto, o grau com que eles acabam ou não conseguindo esse objetivo depende de questões mais amplas e complexas do que a simples eficácia técnica
do instrumento, como ilustrado a seguir por um exemplo recente.
O Estatuto da Cidade, aprovado em 2001, regulamentou uma série de instrumentos
urbanísticos, como o direito de preempção, a concessão
real de uso para fins de moradia, as Zonas Especiais de Interesse Social, entre outros, que pretendem ser um avanço no sentido de dar ao Estado maior capacidade para efetivar a chamada “reforma urbana”, conjunto de transformações que, respondendo
à demanda dos movimentos populares e dos urbanistas progressistas, permitiria a implementação de uma cidade socialmente mais justa. Sua implementação, entretanto, vem enfrentando dificuldades, que eram previsíveis: a questão não
é exatamente ter tais instrumentos à disposição, embora isso seja essencial, mas sim saber até que ponto faz parte da lógica da sociedade, nesse
caso, da sociedade de elite efetivá-los.
Historicamente,
os instrumentos urbanísticos
nascem, na Europa, junto com o fortalecimento do Estado burguês, no bojo da transição a um
novo estágio de desenvolvimento.
Com a passagem do estágio de desenvolvimento
predominantemente extensivo para
o intensivo, abandonam-se os
princípios do liberalismo
clássico,
a favor da socialdemocracia e o Estado de bem-estar com a
ampliação da
intervenção do Estado (na França e na Alemanha,
pela força de regimes bonapartistas)
capaz de assegurar a provisão da infraestrutura
necessária ao novo estágio.
No campo
urbanístico, tratava-se de assegurar reformas que garantissem, em essência, três elementos: 1) a higienização da cidade, abrindo ruas e
permitindo insolação e ventilação para diminuir a alta incidência
de epidemias e aumentar a expectativa de vida (que era de 30 anos em 1850, na Europa) e a reprodução da força de trabalho; 2) o controle social, por meio de avenidas amplas o suficiente para manobrar tropas que pudessem aplacar as constantes revoltas populares (dezenas delas eclodiram em Paris entre 1848 e 1850) e 3) a promoção de intervenções que produzissem valorização imobiliária
em benefício aos altos círculos sociais próximos do poder. Assim pode ser resumida a mais paradigmática dessas intervenções, as reformas promovidas por Haussmann em Paris entre 1850 e
1870, que culminaram na construção da “cidade luz”, ícone da industrialização nascente (a Torre Eiffel sendo seu símbolo máximo).
As reformas de
Haussmann consolidaram de vez o uso dos instrumentos urbanísticos na
França, assim como a provisão maciça de infra-estrutura (a outra vertente da intervenção estatal): construiu-se a base viária, a rede de esgotos, os bulevares, e regulamentaram-se as normas
edilícias, o código de obras, o uso do solo, ao mesmo tempo em que os edifícios “haussmannianos”, de frente para os novos bulevares,
tornaram-se uma fonte de enriquecimento fabulosa para uma pequena casta de engenheiros e arquitetos próximos
do prefeito e do imperador (Louis-Napoléon Bonaparte, ou
Napoleão III). Aquele que a
historiografia clássica considera, às vezes pouco
criticamente, o “pai” do urbanismo moderno, foi também o responsável pela consolidação do ferramental dado ao Estado para controlar e regulamentar a produção do espaço urbano.
Um segundo momento em que os instrumentos urbanísticos foram detalhados e aprimorados
deu-se no pós-crise de
1929, na passagem para o estágio intensivo com elementos keynesianos de Estado do
Bem-Estar, após o New Deal de Roosevelt
nos EUA, e em especial na reconstrução da Europa, após a Segunda Guerra, quando o auge do estágio
intensivo, embasando no âmbito urbano a consolidação de políticas sociais-democratas e economia
orientada ao consumo de massa,, e traduzidos
frequentemente em preceitos do modernismo exigiam uma particularmente forte
regulamentação estatal para sustentar a organização urbana que se denominava de funcionalista. Em um sentido diferente do urbanismo
haussmanniano, agora com uma matiz “humanista” que o Estado do bem-Estar Social lhe conferia, os instrumentos urbanísticos eram agora utilizados
para garantir uma mínima generalização homogênea do acesso á infra-estrutura urbana pelo conjunto da sociedade. Zoneamento (que na Alemanha, ou mais exatamente, na Prússia
já existia desde o século
XVIII e nos EUA, desde o início do século), direito de preempção, controle de gabaritos, restrições construtivas, regulamentação do espaço público,
passaram a se
generalizar como instrumental clássico à disposição do Estado na condução das políticas urbanas.
No Brasil, a
efetividade dos instrumentos urbanísticos em trabalharem no sentido de seu objetivo declarado se
depara com o antagonismo estrutural da sociedade de elite: em um país em que a promoção de uma economia em pleno desenvolvimento com base no mercado interno --e correspondente
elevação do nível de reprodução da
força de trabalho-- é
entravada pela constante expatriação de excedente, e onde a inserção no capitalismo mundial se deu essencialmente pela capacidade em oferecer mão-de-obra barata, instrumentos que foram consolidados para dar ao Estado capacidade em promover cidades mais homogêneas e socialmente
equilibradas na distribuição da infra-estrutura e no acesso à terra urbanizada (como foi o caso da construção do Bem-Estar Social) parecem estruturalmente fadados ao fracasso, já que se
opõem à lógica de um aparelho de estado feito para “desestruturar” e não o contrário. Nesse sentido, os alcances e limites desses instrumentos sempre serão condicionados por este antagonismo estrutural.
Muitos urbanistas de tendências socialistas, porém,
vêm em sua aplicação e consolidação uma etapa necessária na tentativa de se construir uma sociedade e cidades um pouco menos desiguais.
É muito possível que, embora não abale a estrutura do sistema, o uso desses instrumentos, quando aplicados e testados por administrações verdadeiramente comprometidas com os anseios populares, possa consolidar um novo paradigma de gestão do Estado sobre a cidade, que podem ser, no âmbito urbano, um começo no longo caminho da transformação
da nossa sociedade.
Whitaker
Ferreira, 200?, xyxyxyxyx