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instrumentos urbanísticos  versão preliminar


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planejamento | espaço | Estado e mercado | infraestrutura | uso do solo



instrumentos-urb/ jw, 6.9.20






















Croquis da equipe de Haussmann para intervenções viárias em Paris, 1850. Fonte: Pinon, Pierre. “Atlas du Paris Haussmannien: la ville en heritage du Second Empire à nos jours", Paris : Parigramme, 2002.

instrumentos urbanísticos
João Sette Whitaker Ferreira

 

O Estado tem duas formas de intervir no espaço construído: provendo a infraestrutura e regulando o uso e ocupação do espaço resultante. “Instrumento urbanístico” diz respeito ao segundo caso, e é o termo utilizado para referir-se ao conjunto de ações legalmente possibilitadas ao Poder Público para intervir nos processos urbanos e especialmente na produção do espaço, regulamentando, controlando ou direcionando-a. É um mecanismo dado ao Estado para capacitá-lo a conduzir a relação dialética entre Estado e mercado, base da produção do espaço da cidade.

Qualquer intervenção no espaço que se utilize de ferramentas legais elaboradas com esse intuito, vale-se de ’instrumentos urbanísticos‘. Mais comumente, o termo refere-se aos instrumentos de controle do uso e ocupação do solo, como as leis de zoneamento, os Planos Diretores, os incentivos fiscais, as normas edilícias e construtivas, etc.

Os instrumentos urbanísticos podem ser considerados mais ou menosinterventores” no sentido que podem correponder  a maior ou menor poder ao Estado para disciplinar os processos de produção e reprodução individuais que se desenvolvem na cidade. Entretanto, o grau com que eles acabam ou não conseguindo esse objetivo depende de questões mais amplas e complexas do que a simples eficácia técnica do instrumento, como ilustrado a seguir por um exemplo recente.

O Estatuto da Cidade, aprovado em 2001, regulamentou uma série de instrumentos urbanísticos, como o direito de preempção, a concessão real de uso para fins de moradia, as Zonas Especiais de Interesse Social, entre outros, que pretendem ser um avanço no sentido de dar ao Estado maior capacidade para efetivar a chamada “reforma urbana”, conjunto de transformações que, respondendo à demanda dos movimentos populares e dos urbanistas progressistas, permitiria a implementação de uma cidade socialmente mais justa. Sua implementação, entretanto, vem enfrentando dificuldades, que eram previsíveis: a questão não é exatamente ter tais instrumentos à disposição, embora isso seja essencial, mas sim saber até que ponto faz parte da lógica da sociedade, nesse caso, da sociedade de elite efetivá-los.

Historicamente, os instrumentos urbanísticos nascem, na Europa, junto com o fortalecimento do Estado burguês, no bojo da transição a um novo estágio de desenvolvimento. Com a passagem do estágio de desenvolvimento predominantemente extensivo para o intensivo, abandonam-se os princípios do liberalismo clássico, a favor da socialdemocracia e o Estado de bem-estar com a ampliação da intervenção do Estado (na França e na Alemanha, pela força de regimes bonapartistas) capaz de assegurar a provisão da infraestrutura necessária ao novo estágio.

No campo urbanístico, tratava-se de assegurar reformas que garantissem, em essência, três elementos: 1) a higienização da cidade, abrindo ruas e permitindo insolação e ventilação para diminuir a alta incidência de epidemias e aumentar a expectativa de vida (que era de 30 anos em 1850, na Europa) e a reprodução da força de trabalho; 2) o controle social, por meio de avenidas amplas o suficiente para manobrar tropas que pudessem aplacar as constantes revoltas populares (dezenas delas eclodiram em Paris entre 1848 e 1850) e 3) a promoção de intervenções que produzissem valorização imobiliária em benefício aos altos círculos sociais próximos do poder. Assim pode ser resumida a mais paradigmática dessas intervenções, as reformas promovidas por Haussmann em Paris entre 1850 e 1870, que culminaram na construção da “cidade luz”, ícone da industrialização nascente (a Torre Eiffel sendo seu símbolo máximo).

As reformas de Haussmann consolidaram de vez o uso dos instrumentos urbanísticos na França, assim como a provisão maciça de infra-estrutura (a outra vertente da intervenção estatal): construiu-se a base viária, a rede de esgotos, os bulevares, e regulamentaram-se as normas edilícias, o código de obras, o uso do solo, ao mesmo tempo em que os edifícios “haussmannianos”, de frente para os novos bulevares, tornaram-se uma fonte de enriquecimento fabulosa para uma pequena casta de engenheiros e arquitetos próximos do prefeito e do imperador (Louis-Napoléon Bonaparte, ou Napoleão III). Aquele que a historiografia clássica considera, às vezes pouco criticamente, o “pai” do urbanismo moderno, foi também o responsável pela consolidação do ferramental dado ao Estado para controlar e regulamentar a produção do espaço urbano.

Um segundo momento em que os instrumentos urbanísticos foram detalhados e aprimorados deu-se no pós-crise de 1929, na passagem para o estágio intensivo com elementos keynesianos de Estado do Bem-Estar, após o New Deal de Roosevelt nos EUA, e em especial na reconstrução da Europa, após a Segunda Guerra, quando o auge do estágio intensivo, embasando no âmbito urbano a consolidação de políticas sociais-democratas e economia orientada ao consumo de massa,, e traduzidos frequentemente em preceitos do modernismo exigiam uma particularmente forte regulamentação estatal para sustentar a organização urbana que se denominava de funcionalista. Em um sentido diferente do urbanismo haussmanniano, agora com uma matizhumanistaque o Estado do bem-Estar Social lhe conferia, os instrumentos urbanísticos eram agora utilizados para garantir uma mínima generalização homogênea do acesso á infra-estrutura urbana pelo conjunto da sociedade. Zoneamento (que na Alemanha, ou mais exatamente, na Prússia já existia desde o século XVIII e nos EUA, desde o início do século), direito de preempção, controle de gabaritos, restrições construtivas, regulamentação do espaço público, passaram a se generalizar como instrumental clássico à disposição do Estado na condução das políticas urbanas.

No Brasil, a efetividade dos instrumentos urbanísticos em trabalharem no sentido de seu objetivo declarado se depara com o antagonismo estrutural da sociedade de elite: em um país em que a promoção de uma economia em pleno desenvolvimento com base no mercado interno --e correspondente elevação do nível de reprodução da força de trabalho-- é entravada pela constante expatriação de excedente, e onde a inserção no capitalismo mundial se deu essencialmente pela capacidade em oferecer mão-de-obra barata, instrumentos que foram consolidados para dar ao Estado capacidade em promover cidades mais homogêneas e socialmente equilibradas na distribuição da infra-estrutura e no acesso à terra urbanizada (como foi o caso da construção do Bem-Estar Social) parecem estruturalmente fadados ao fracasso, que se opõem à lógica de um aparelho de estado feito paradesestruturar” e não o contrário. Nesse sentido, os alcances e limites desses instrumentos sempre serão condicionados por este antagonismo estrutural. Muitos urbanistas de tendências socialistas, porém, vêm em sua aplicação e consolidação uma etapa necessária na tentativa de se construir uma sociedade e cidades um pouco menos desiguais.

É muito possível que, embora não abale a estrutura do sistema, o uso desses instrumentos, quando aplicados e testados por administrações verdadeiramente comprometidas com os anseios populares, possa consolidar um novo paradigma de gestão do Estado sobre a cidade, que podem ser, no âmbito urbano, um começo no longo caminho da transformação da nossa sociedade.

Whitaker Ferreira, 200?, xyxyxyxyx


Referências

DEÁK, Csaba (1985) Rent theory and the price of urban land/ Spatial organization in a capitalist economy PhD Thesis, Cambridge, especialmente "Gênese do planejamento urbano"

FERREIRA, João Sette Whitaker (2005) “A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no BrasilAnais do Simpósio Interfaces das representações urbanas em tempos de globalização, UNESP Bauru e SESC Bauru, 21 a 26 de agosto.

FERREIRA, João Sette Whitaker (2003) “Alcances e limitações dos Instrumentos Urbanísticos na construção de cidades democráticas e socialmente justas”. Texto de apoio às discussões da Mesa 1 - "Plano Diretor e Instrumentos Tributários e de Indução do Desenvolvimento”, Vª Conferência das Cidades - Câmara Federal/CDUI e Ministério das Cidades, 02 de dezembro.

RIBEIRO, Luiz César de Queiroz, e Cardoso, Adauto Lucio (1894) “Planejamento urbano no Brasil: paradigmas e experiências” in Espaço & Debates, nº 37,  Ano XIV, São Paulo



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